BRASÍLIA E SÃO PAULO – Em maio de 2020, dois meses depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificar a covid-19 como uma pandemia, a empregada doméstica Marilza Gomes dos Santos foi dispensada da casa em que trabalhava, em Brasília. Sua empregadora tinha lúpus – e, portanto, era do grupo de risco, o que apressou a demissão. Depois de dois anos à procura de emprego, há um mês ela conseguiu voltar para o mercado de trabalho como doméstica.
“Foi um período muito difícil. Estava morando com meus três filhos e criando um neto pequeno, que era a nossa prioridade. Sobrevivemos com o auxílio (emergencial), cesta básica e doações da igreja. Eu, que pagava aluguel, precisei ir para um assentamento”, conta ela. Depois de meses sem nenhum trabalho, Marilza conseguiu um bico como folguista de babá em finais de semana, mas nada fixo aparecia. “Entrava nos sites, tentava vagas, mas não aparecia nada, todas as portas estavam fechadas”, diz.
Marilza se soma a milhões de brasileiros que apenas encontram espaço no mercado de trabalho em serviços domésticos, como faxineiras, babás e cozinheiras, mesmo num cenário de melhora do emprego. Esse contingente, que despencou na pandemia pelas restrições do distanciamento social, vem se recuperando com força neste ano. Depois do fechamento massivo de postos de trabalho, o número de empregados domésticos chegou a 5,85 milhões no segundo trimestre do ano – o equivalente à população da Dinamarca.
É o maior patamar desde o quarto trimestre de 2019, antes do início da pandemia. Do ponto mais crítico da crise sanitária, no segundo trimestre de 2020, para cá, 1,4 milhão de postos de trabalho já foram recuperados. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do segundo trimestre – os últimos divulgados – e foram compilados pela consultoria IDados a pedido do Estadão.
“O trabalho doméstico foi uma das áreas mais atingidas pela pandemia, senão a mais atingida, porque as famílias não queriam ficar com ninguém estranho dentro de casa pelo perigo do contágio (de covid-19)”, diz José Pastore, professor da FEA-USP e presidente do Conselho de Emprego e Relações de Trabalho da Fecomercio-SP. “Houve muitas demissões, mas agora as pessoas voltaram a contratar nessa área, o que está ligado a essa retomada geral depois da pandemia. No último dado da Pnad, de um trimestre para o outro, houve um aumento de 4,5% nos trabalhadores domésticos, o que é muito expressivo”, observa.
Hoje, Marilza ganha R$ 1,5 mil no novo emprego, com carteira assinada, como o que tinha antes da pandemia. “Foi indicação de uma ex-patroa, para trabalhar para uma família que se mudou de Salvador para cá. Agora meus filhos também estão trabalhando. Finalmente as coisas estão melhorando, agradeço a Deus todos os dias”, diz.
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A diarista Maria de Lourdes Torres da Silva, de 43 anos, também ficou desempregada em 2021. Ela teve de se mudar para o Paraná e precisou deixar todos os seus trabalhos em São Paulo. Só conseguiu se recolocar neste ano, quando retornou para a capital paulista. “Era muito difícil arrumar emprego como diarista no Paraná. Quando eu voltei, a maioria das minhas patroas já estava com outras pessoas”, diz. “Mas tem mais ou menos quatro meses que consegui trabalho, porque as pessoas que ficaram no meu lugar não deram certo e me chamaram de volta.”
Hoje, com a retomada do mercado de trabalho, Maria de Lourdes consegue uma renda mensal de R$ 1,8 mil. Ela mora com um companheiro e um filho de 13 anos na zona leste de São Paulo. A vida dela sempre foi dedicada ao trabalho doméstico. Alagoana, chegou a São Paulo há 24 anos. Por três anos, trabalhou numa casa de família. Depois, sempre foi diarista. “As minhas amigas sempre me indicavam trabalho e foi com a ajuda delas que consegui meus empregos.”
Informalidade
O crescimento no número de domésticos revela uma fragilidade estrutural do emprego no Brasil. Os trabalhadores domésticos costumam estar na informalidade, o que impede um ganho de renda fixa mensal. São 4,37 milhões nessa situação, de acordo com um mapeamento do Instituto Doméstica Legal, quase 75% da categoria.
“Quem não tem serviço fixo sempre passa por alguma coisinha. Agora, eu comecei a trabalhar direitinho, e a minha vida está mudando. Mas (antes) sempre que chegava uma conta de luz e vinha outra em seguida, eu me atrapalhava toda”, conta Maria de Lourdes.
Em 2013, o Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das domésticas numa tentativa de ampliar a formalização do setor. A medida passou a regulamentar e consolidar direitos trabalhistas da categoria, como, definição da jornada de trabalho e contribuição para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
“A PEC das domésticas contribuiu para que as trabalhadoras domésticas tenham os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador. Ao menos perante a lei, esta é uma categoria profissional como outra qualquer, mas há uma mudança cultural a ser feita também”, afirma Joana Costa, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
“Em termos de formalização, um estudo nosso discute evidências empíricas, que indicam que a PEC das domésticas não afetou as chances de ter carteira assinada, mas também não aumentou significativamente as chances de ser informal ou se tornar desempregada. O único efeito robusto encontrado teria sido a redução de horas”, acrescenta.
Essa precariedade na oferta de trabalho se dá para um segmento que sempre luta contra a discriminação, que são as mulheres, em particular, as negras.”
Cida Bento, conselheira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades
Perfil feminino
Os números do trabalho doméstico também retratam uma realidade profundamente desigual na questão de gênero. Do contingente de quase 5,85 milhões de pessoas que trabalham nessa área, 5,36 milhões são mulheres – o que também equivale a 13% de toda a população feminina ocupada no País.
“Essa precariedade na oferta de trabalho se dá para um segmento que sempre luta contra a discriminação, que são as mulheres, em particular, as negras”, afirma Cida Bento, conselheira do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. “Se você pegar qualquer estatística ao longo do tempo, você vai ver que as mulheres negras são sempre a maioria (em trabalho doméstico). Isso é um indicativo de que há uma baixa oferta de outras possibilidades para essas mulheres.”
Na avaliação da especialista, o Brasil precisa de um bloco de políticas públicas para transformar essa realidade. São medidas que englobam qualificação profissional, maior formalização do serviço doméstico no País e combate ao racismo estrutural no mercado de trabalho.
“São políticas públicas que precisam capacitar a mulher negra para ocupar diferentes lugares, inclusive no trabalho doméstico, se assim ela quiser, garantir o cumprimento da legislação que as domésticas conquistaram, e adotar medidas de combate ao racismo, o que é fundamental para possibilitar que as pessoas avancem no mercado de trabalho”, afirma.
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