Há muita incerteza no mercado financeiro sobre qual será a regra fiscal a partir de 2023, na visão do ex-secretário especial do Tesouro e Orçamento e atual CEO da Bradesco Asset, Bruno Funchal. “Não à toa, a curva de juros está tão alta”, afirma, ao comentar a piora de percepção recente, em meio ao aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 até o fim deste ano.
Funchal deixou o cargo em outubro do ano passado, diante de ameaças ao teto de gastos para avançar no benefício, para R$ 400, à época. “Mudou a regra, deu Auxílio de R$ 400. Agora, ao que tudo indica, todo mundo já está precificando, é que deve ter um Auxílio mais gordo”, cita, estimando 0,5% do PIB em despesa para um programa de renda.
O colchão de liquidez do Tesouro está bem, a dívida tem caído, e o primário está melhorando, mas a percepção de risco tem a ver com a perspectiva do futuro, pondera. Leia abaixo os principais trechos da entrevista, concedida no escritório da Bradesco Asset, em São Paulo.
A percepção do mercado sobre o cenário fiscal piorou com a PEC que aumentou o Auxílio a R$ 600. Qual sua avaliação?
Uma coisa é olhar o que está sendo entregue até agora e outra coisa é a perspectiva futura. Na gestão da dívida, o caixa, o colchão de liquidez (do Tesouro) está super robusto. Muito diferente de 2020. Quando entramos na pandemia, com gasto extraordinário, chegamos a ter um déficit de R$ 700 bilhões. Num ano que era para ter uma emissão de R$ 800 bilhões, foi de R$ 1,5 trilhão. Ou seja, dobrou a necessidade de fazer emissão (de dívida). Mas o Tesouro fez um trabalho bom de acelerar as emissões e acumular um colchão, que está bem robusto. Isso traz um conforto para a gestão da dívida e para o fiscal. Agora, o colchão está bem, a dívida tem caído e o primário está melhorando. Só que não é o que está refletido na curva de juros e nos parâmetros de mercado.
Por quê?
Porque tem muita incerteza. E isso tem a ver com a perspectiva do futuro. O efeito da PEC que gerou os R$ 600 é muito mais em relação ao temor de isso abrir uma discussão de aumentar o Auxílio de forma permanente e aí a conta, que é de R$ 41 bilhões, na ótica do Ministério da Economia, um gasto extraordinário para este ano, tende a se tornar uma despesa permanente. Já vemos todos os candidatos falando isso. Esse é um ponto de incerteza e, quando você faz a conta, é mais 0,5% do PIB de despesa para um programa de renda. Um programa de R$ 34 bilhões em 2020, que era o orçamento normal do Bolsa Família, vai chegar a R$ 150 bilhões em 2023. Na época em que estávamos discutindo os R$ 400, já tinha esse debate: vai ferir a regra fiscal para avançar no Auxílio? Decidiu-se que, no momento, por uma decisão política, era importante avançar, mesmo que tivesse que mudar a regra. Mudou a regra. Agora, ao que tudo indica, todo mundo já está precificando, é que deve ter um Auxílio mais gordo, de R$ 600. Adicional a isso é qual é a regra fiscal daqui para frente? Como é que fica? Hoje, embora tenha despesa extra teto, o teto ainda funciona.
Se funciona, por que não ancora as expectativas?
Por mais que não traga a mesma credibilidade de antes, está funcionando. Antigamente, ele ancorava expectativa, hoje está difícil de ancorar porque não sabemos o que vai ser da trajetória de despesa futura e aí não sabemos qual vai ser a trajetória de dívida. Assim, na execução no ano, se teve uma receita extraordinária e tem teto, ela não vira despesa automaticamente, melhora o primário. É por isso que o primário tem melhorado.
E o governo tem falado de fechar o ano com superávit...
Pois é. O último Relatório Bimestral de Receitas e Despesas mostrou que o déficit caiu de R$ 65 bilhões para R$ 59 bilhões. E, mesmo com os R$ 41 bilhões de despesas programados para este ano por causa dos R$ 600, tem um primário melhor. Isso é ainda o teto funcionando. A dúvida é, dependendo de quem ganhar (as eleições), qual vai ser o modelo. Não está claro. Aí não tem como ancorar expectativa e fica difícil calcular a trajetória de dívida. Essa dificuldade se traduz nos preços. É muito mais 2023 para frente do que o realizado em 2022. A própria Fitch mudou o viés, de negativo para neutro, não podemos ignorar. O Brasil, comparado a outros países, conseguiu reverter muito a parte fiscal, reduzir a dívida. O problema é a incerteza daqui para frente.
Cabe já discutir agora uma nova âncora fiscal?
Faz parte do processo agora, inclusive. Se formos pensar em agenda, estamos entrando num período eleitoral. Agenda de propostas econômicas, de produtividade, de crescimento. Para crescer, precisamos aumentar a produtividade e reduzir o custo da economia, que é o juro. Como se reduz o custo da economia? Trabalhando o fiscal. Qual é a proposta? Por enquanto, não tem. E esse é o grande ponto.
Os investidores com os quais o senhor conversa trazem essa preocupação firme?
Trazem. Não só Brasil, mas exterior também. No fundo, essa incerteza já está precificada na curva. Não à toa, os juros estão bem altos.
Há um temor de retrocesso, o senhor diria?
No fiscal, de gastar mais? Sim. É inevitável. O ponto a ser discutido é qual é o caminho para voltar a ancorar expectativas e trazer credibilidade. Quais são as prioridades e como cabem no Orçamento. O principal é discutir as alternativas. Por enquanto, está tendo pouca discussão, em geral.
Ainda neste governo, a antecipação de dividendos das estatais é um problema?
Faz parte da lógica desse pacote do extraordinário. Teve um gasto extraordinário da PEC (R$ 600) e o que eu imagino é que vamos pagar essa despesa extraordinária com fluxo de receita extraordinária, que é o dividendo. Pagando essa dívida neste ano, a dúvida é 2023. A preocupação é como é que ficam as despesas recorrentes. O papel do teto era controlar as despesas. Nós sabíamos, daqui a um ano, quanto seria a despesa. É simples, pega a despesa de hoje e ajusta pela inflação. Hoje, não sabemos porque não sabemos qual vai ser a referência.
Em meio às incertezas, o mercado passou a exigir mais prêmio para financiar a dívida e o Tesouro ajustou as emissões de títulos. Há motivo para preocupação?
O Tesouro se prepara para ter no mínimo de três a quatro meses de vencimento em caixa. No último dado disponível, que é o Relatório Mensal de Dívida, está com R$ 1,220 trilhão em caixa, 9,75 meses (suficiência de caixa) em junho, então está muito confortável. Esse colchão foi sendo acumulado ao longo de 2021 e 2022, já com a previsão de que ano eleitoral é de mais volatilidade. Como está com um colchão confortável, em períodos de mais instabilidade, quando os juros estão mais altos, ele tira o pé, não precisa emitir para rolar dívida. Assim, entra recompondo o caixa em condições de calmaria e não pressiona a curva de juros.
Em 2023, Selic alta, desaceleração da atividade e queda das commodities vão pesar na arrecadação?
Esse é mais um ponto para ter uma regra que controle despesa. Por que a dívida caiu tanto? Ainda tinha o teto, trava na despesa, e o excesso de arrecadação foi usado para a controlar a dívida. O que gerou esse aumento de arrecadação foi crescimento, inflação e commodities. Já está ocorrendo a reversão das commodities. O crescimento vai ser menor, de 2% neste ano para 0,8% em 2023, e a inflação, de 5,2%, após 7,6%. Deve ter efeito. Mas não deve nominalmente cair. Uma inflação de 5% e crescimento positivo, tendo a regra do teto, manteria gordura. Mas a gordura diminuiu e, sem despesa controlada, é um fator de risco.
A inflação converge à meta em 2024? Há algum risco?
Em 2024, converge para algo próximo da meta. (Os riscos são) fiscal e guerra, com choque de oferta e desafio dos combustíveis. Se não fizer o trabalho no fiscal, o Banco Central vai ter que fazer no monetário. Já experimentamos um fiscal mais apertado depois do teto e conseguimos ver os juros caindo. Não caiu a 2% por causa da pandemia. Já estava em 4,5% antes da pandemia porque tinha o fiscal controlado.
O BC está trabalhando sozinho?
Não. É muito difícil você falar que não tem uma tentativa de controlar o fiscal. É muito mais em termos de incerteza mesmo de arcabouço. O BC está fazendo um trabalho bom e está dando um sinal de que é importante ter uma política coerente para que a gente tenha um ambiente de juros baixo. Juros baixos são um baita estímulo para crescimento econômico. No fundo, estamos escolhendo: mais gasto público, mais juros altos, menos investimentos e menos emprego. Essa é a troca que se quer fazer? Acho que a discussão é essa.
A volatilidade aumenta com as campanhas eleitorais, mas, se houver pistas sobre os planos para o fiscal, pode ajudar? Espera algum sinal já neste ano?
Gostaria que fosse para este ano, mas acho que vai ficar para o ano que vem. O momento para discutir é ótimo, porque faz parte de um conjunto, de uma proposta de agenda para o País. Vai ter mais volatilidade e só vai acabar mesmo quando tiver a definição.
Saída do Ministério da Economia
Como o senhor vê a redução de impostos promovida pelo governo?
Vejo como bem natural, partindo do Ministério da Economia do ministro (Paulo) Guedes. Se é para discutir uma intervenção do Estado para trazer condições, em vez de focar no aumento de gastos, é nos impostos, porque vai na linha de um apoio do Estado, de uma política fiscal mais expansionista, mas, por outro lado, tirando o peso do Estado do setor privado para que ele possa crescer. Acho natural, dado o perfil do ministro. Claro, o ideal é só começar a discutir desonerações depois de estar com superávit, voltar com a dívida para um nível razoável. O ideal seria reduzir nossa dívida para em torno de 60-65% do PIB e, depois, começar a reduzir, contar com gasto controlado, repensar o sistema tributário com uma carga menor. Mas sabemos como são as discussões de propostas de políticas fiscais.
Não seria melhor se viesse numa reforma tributária?
Com certeza. O governo está no direcionamento de reduzir carga. Isso é fato. Agora, quando você fala de reforma tributária, acho que é muito mais no sentido de reduzir complexidade do sistema. Se fizermos uma reforma que descomplica, é ganho de produtividade na veia. Se for falar de agenda de crescimento, é uma das medidas mais relevantes. Reforma tributária ampla, de IVA, não de Imposto de Renda.
Das propostas, qual a melhor ou qual teria chance de aprovação?
Pois é. Essa é a grande dificuldade. Na proposta que revisa todo o sistema do imposto sobre consumo, o grande ponto é como fazer todo mundo concordar. Então, é de política. Uma das dificuldades nessa discussão era que os Estados concordavam desde que não corressem nenhum risco de perder receita e a União compensasse tudo. Obviamente, tinha um embate com a União, que não topava. Vai mudar governo, vão ter novos governadores, vai ser discutido. Vai depender muito do que os novos governadores pensam. Você precisa de uma grande coalização. É o mais importante, mas é o mais difícil, o mais complexo.
O senhor vê risco de aumento de imposto no ano que vem ou de emissão de dívida maior?
É complicado falar, porque não sabemos quais são as propostas. Dependendo, é possível. Depende muito de como será a composição do Congresso. Hoje, o Congresso é muito refratário ao aumento de imposto.
Seria necessário para fechar a conta do governo?
Depende do tamanho da conta. Você sabe qual é? Eu também não sei. A curva de juros está aberta porque ninguém sabe. Sabemos dos R$ 600, que podem ser mais R$ 50 bilhões, e a dívida ainda ficaria mais ou menos estável. Então, não sei dizer.
Em relação aos dois candidatos à Presidência na liderança da corrida, o que o mercado já precificou?
Ainda tem muita incerteza, é muito difícil falar. Tem algo de fiscal precificado, então, os R$ 600 (de Auxílio Emergencial), independentemente de quem for, provavelmente vão ficar. Para além disso, é muito difícil porque não teve discussão de agenda. O bom é o seguinte: os dois candidatos já tiveram experiência no cargo, então, alguma informação passada já é usada para poder fazer estimativas. Mas é muito difícil porque passado não explica o futuro.