Por abrigar a maior biodiversidade do mundo, a Amazônia tem potencial para centralizar diversas frentes de pesquisa voltadas para as soluções verdes que o mundo tanto anseia. Com isso, diz o CEO da Natura, João Paulo Ferreira, a região pode se tornar o ‘Vale do Silício da bioeconomia’, principalmente se o poder público e o setor privado destinarem investimentos para esse fim e perceberem o quanto a iniciativa pode trazer um diferencial competitivo para o Brasil diante dos pares globais.
Ao mencionar o maior pólo tecnológico dos Estados Unidos, o executivo faz referência ao trabalho da Natura para promover um movimento semelhante no Brasil, com foco em bioinovação. No ano passado, a companhia investiu R$ 292 milhões nessa área. Há 10 anos, a empresa iniciou as operações do Ecoparque, um complexo industrial e de pesquisa sediado em Benevides, município do Estado do Pará.
Desde 2014, o centro se dedica à pesquisa de bioativos, práticas industriais sustentáveis e produtos bioinovadores. Segundo a empresa, o Ecoparque movimentou R$1,2 bilhão na região amazônica nesse período. A previsão de Ferreira é que outro espaço de pesquisa, o Núcleo de Inovação Natura Amazônia (NINA), situado no mesmo local, seja ampliado até novembro de 2025, período em que o Brasil sediará a 30.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-30).
Até a realização da COP-30, o Estadão vai publicar uma série de entrevistas para discutir problemas e soluções para a sustentabilidade e a transição climática nos mais diversos setores da economia, e as expectativas dos principais representantes do setor empresarial e da economia sobre o evento.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
A Natura nasceu no final dos anos 1960, focando na junção entre natureza e negócios, muito antes de as temáticas ESG ganharem a agenda pública. Isso trouxe algum tipo de diferencial para a empresa no mercado?
Sem dúvida. Foi uma coisa curiosa a sensibilidade do fundador da Natura (Antônio Luiz Seabra) em batizar a empresa com esse nome, em uma época na qual existia um fascínio por ingredientes sintéticos. Essa filosofia foi orientando a escolha de fazer negócio sempre buscando o que chamamos hoje de impacto positivo. Nós fomos para a Amazônia buscar na biodiversidade brasileira artigos de altíssima performance cosmética que só existem ali. Isso virou a nossa vantagem competitiva. Foi muito vanguardista esse posicionamento.
Há empresas que avançam pouco em sustentabilidade por entenderem que o tema envolve mais gastos do que retorno. O que poderia colaborar para modificar esse tipo de concepção?
Eu não concordo com o ponto de vista de que sustentabilidade e regeneração não são um diferencial apreciado pelos consumidores. Eles atribuem, sim, valor a práticas, produtos e serviços ambientalmente responsáveis. Se não fosse isso, a Natura não teria se tornado líder no mercado latino-americano de cosméticos. Mas é bem verdade que, se os aspectos socioambientais só forem levados em conta posteriormente, para remediar externalidades negativas, isso vai se tornar um pedágio. O caminho para que essa atuação seja um diferencial está na inovação e na capacidade de, na origem, gerar produtos que incorporem esses objetivos à sua concepção. Na Natura, um produto, ainda no laboratório, é avaliado sobre qual a sua pegada de carbono, qual renda vai gerar à rede de consultoras. Tudo isso é feito na prancheta e ajustado para que, ao mesmo tempo, possa equilibrar esses objetivos com os lucros. Esse é o segredo.
Qual o papel da inovação?
Pesquisa e desenvolvimento de ponta dedicados aos nossos diferenciais ambientais podem gerar uma vantagem competitiva gigante para o Brasil. Um objetivo que seria estimulante para o País, a partir da COP-30, é que nos posicionemos como líderes globais em serviços na bioeconomia, mas isso tem da vir da inovação. É claro que ajuda muito se o campo do jogo for nivelado. A Natura fez toda a sua história perseguindo essa filosofia empresarial porque achava que era o certo. Mas isso custa. Nós transformamos isso em vantagem de negócio, mas foi um investimento feito de forma voluntária. Mas o mundo não pode mais se permitir uma atuação voluntária no campo socioambiental. Internamente, já dissemos que sustentar o mundo como ele é hoje não é uma boa ideia. Nesse sentido, ter regulamentações, impostos, padrões contábeis que levem em conta a valoração de externalidades é super bem-vindo e vai gerar estímulo para que outras empresas busquem essa atuação, não por ser uma obrigação moral ou imposição legal, mas por ser fonte de inovação e vantagem competitiva.
Como a Natura tem atuado neste tipo de debate?
Esses temas são altamente complexos e dependem de atuação sistêmica. Nenhuma entidade individualmente consegue fazer uma transformação dessa intensidade. Portanto, é fundamental promover a colaboração entre a iniciativa privada e o governo, além do terceiro setor e das comunidades extrativistas. Nesse sentido, nós buscamos agir como um bom cidadão corporativo, tentando colaborar com o debate. O próprio PL do mercado de carbono foi um debate em que, institucionalmente, a Natura se envolveu bastante. Igualmente, na regulamentação sobre a biodiversidade, a Natura participou. No ambiente internacional, começamos a trabalhar na Amazônia peruana, na colombiana, na equatoriana, tentando facilitar o encontro entre governos. E tem sido bastante frutífero tentar criar uma norma regulatória latino-americana para acesso à biodiversidade.
A empresa esteve representada na COP-29. Os resultados da conferência trouxeram otimismo ou apreensão?
Eu vi os movimentos da COP-29 na direção correta: criação e regulamentação do mercado global de carbono, definição de investimentos para compensações. Também é positivo o fato de que as últimas COPs tenham acontecido em países que são grandes produtores de combustíveis fósseis (Emirados Árabes e Azerbaijão). O fato de haver esse debate acontecendo ao redor do mundo, mesmo em países que são grandes produtores desses combustíveis, é bom. Isso mostra interesse genuíno da sociedade no tema, embora ainda haja dúvidas de como se organizar, através de mecanismos multilaterais, que têm se provado muito difíceis. Na COP-30, o Brasil viverá um momento histórico em que poderá se posicionar como um dos líderes, senão o líder mundial, na mudança para a economia de baixo carbono.
Muita gente espera que o Brasil apresente essas respostas, como soluções baseadas na natureza. Essa COP vai poder, de fato, trazer esses resultados?
O Brasil tem todas as condições para ser um líder global da bioeconomia. Tem vantagens comparativas e competitivas inigualáveis: uma matriz energética limpa, extensões enormes, abundância de produtos naturais, uma biodiversidade sub-aproveitada… todas as condições para liderar o mundo nas próximas décadas na transição, não só energética, como climática. Talvez, a COP-30 seja o equivalente ao que foi a Rio 92, potencialmente. E o fato de ela acontecer na Amazônia é muito emblemático. A urgência dessa transição e o reconhecimento da necessidade de mecanismos que remunerem os serviços ambientais vão ser um divisor de águas. Tudo está apontando para que a COP-30 seja um encontro a ser lembrado por muitos anos no futuro.
A Natura já tem fábricas na região onde ocorrerá a COP-30. A empresa está preparando algo relacionado a essas plantas para o evento?
Nós não somos visitantes na Amazônia. Estamos lá há 25 anos pesquisando, trabalhando com as comunidades extrativistas, que hoje são mais de 10 mil famílias. Será um prazer mostrar um pouco do nosso trabalho lá, de como nós transformamos esse potencial em produtos de alta performance valorizados por consumidores no mundo inteiro. Isso mostra que, mais do que um discurso retórico, a bioeconomia é uma realidade. Imagina quantos setores podem se beneficiar disso a partir de pesquisa e desenvolvimento no local. Então, simultâneo à COP, vamos inaugurar nosso mais novo centro de pesquisa e desenvolvimento na Amazônia. Já estamos estabelecidos lá em uma instalação muito moderna chamada Ecoparque, e chegou o momento de inaugurar um novo centro, dado o volume de investimentos que temos feito lá, e para poder receber pesquisadores de fora, que trabalhem não só para os interesses da Natura, mas para outros setores que possam orbitar ao redor daquele ambiente que, carinhosamente, queremos que seja o Vale do Silício da biodiversidade.
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Como os olhos do mundo voltados para Belém, é possível que mais empresas possam enxergar esse potencial?
A COP-30 tem, sim, o potencial de atrair outros setores para transformar essa vantagem da biodiversidade amazônica brasileira em vantagem competitiva. Talvez muitas empresas desconheçam o que é de fato operar (na Amazônia). Para muitas, existe, talvez, a imagem de uma floresta intocada. Não é isso a Amazônia. Para começo de conversa, são mais de 30 milhões de pessoas vivendo lá. É a conexão com as pessoas que define o caminho para poder trabalhar, pesquisar e prospectar. Só tem um jeito de estabelecer essa conexão: estando lá. Acredito, portanto, que, ao vivenciar o que é a Amazônia, muitos vão se animar a fazer isso.
E como a Amazônia pode virar esse Vale do Silício?
Com a colaboração. Nós buscamos fazer isso quando criamos a ideia de um Ecoparque. Mesmo a Natura estando presente lá há tanto tempo, somos poucas gotas nesse rio gigante que é a Amazônia. Só tem um jeito de fazer grande diferença, é atrair outros atores, criar espaços de encontro entre esses vários atores e ter colaboração do governo, da academia. Hoje, estamos fazendo, por exemplo, parcerias com o Banco Mundial, com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), com outras empresas como o Fundo Vale, e fazendo mecanismos de financiamento muito inovadores baseados em contrapartidas ambientais. O mundo está ansioso por esse tipo de colaboração. Nós estaremos lá para tentar facilitar. Já tem muita coisa interessante acontecendo. A gente precisa dar visibilidade. Com isso, muito mais gente vai chegar.
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