Giannetti: ‘Risco é querer fazer crescimento a ferro e fogo, como tentou a Dilma. E deu no que deu’

Na avaliação do economista e filósofo, porém, economia brasileira termina o primeiro ano do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva melhor do que começou

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Atualização:
Foto: Daniel Teixeira/Estadão
Entrevista comEduardo GiannettiEconomista e filósofo. É integrante da Academia Brasileira de Letras

O economista e filósofo Eduardo Giannetti avalia que a economia brasileira termina o primeiro ano do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva melhor do que começou. O crescimento será maior do que o previsto, a inflação está dentro do intervalo da meta estabelecida, o desemprego está baixo e houve uma apreciação dos ativos denominados em reais.

“Eu acho que essa é uma grande conquista do ano”, diz. “Reflete muito a virada das expectativas pelo fato de que, num ano em que houve um aumento forte do juros nos Estados Unidos e no mundo, o real se apreciou e se valorizou em relação ao dólar americano”, afirma Giannetti, que contribuiu com o plano econômico de Marina Silva, hoje ministra do Meio Ambiente, nas vezes em que ela disputou a Presidência.

Com o último dado do Produto Interno Bruto (PIB) – alta de apenas 0,1% no terceiro trimestre -, Giannetti diz que um dos riscos na condução da política econômica no ano que vem é a “impaciência”, de “querer fazer o crescimento a ferro e fogo, uma espécie de marcha forçada, como tentou fazer a Dilma. E deu no que deu.”

Economia brasileira termina o ano melhor do que começou, diz Giannetti Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão:

Como o sr. avalia esse primeiro ano do governo Lula, que está chegando ao fim?

O ano está terminando melhor do que começou. Começamos 2023 com uma inflação preocupante, uma expectativa de crescimento em torno de 1% - ou menos - e muita incerteza sobre o que poderia ser a política econômica durante o governo Lula. Estamos terminando o ano com uma inflação dentro da faixa do intervalo da meta, uma boa expectativa de cumprimento em 2024, um crescimento que foi ao redor de 3% no ano - o triplo do que era previsto -, uma taxa de desemprego baixa e uma taxa de ocupação alta, e os ativos denominados em real estão apreciados. Eu acho que essa é uma grande conquista do ano.

Por quê?

Reflete muito a virada das expectativas ao longo de 2023 pelo fato de que, num ano em que houve um aumento forte do juros nos Estados Unidos e no mundo, o real se apreciou, se valorizou em relação ao dólar americano. Estamos com o real, hoje, num nível que eu diria muito surpreendente. De um modo geral, o saldo do primeiro ano é positivo. Não resolvemos os nossos problemas. Longe disso. Mas atravessamos um ano que parecia muito complicado de uma maneira razoavelmente boa.

Eu acho que são duas as principais conquistas do governo Lula na área econômica. A primeira é a apresentação de um arcabouço fiscal, que não é o ideal, mas que deu uma garantia de que não voltamos para o descontrole que prevaleceu no segundo mandato do Lula e, principalmente, durante o governo Dilma. E, em segundo lugar, a enorme conquista que é a apresentação de uma reforma tributária com a unificação de cinco impostos e o fato de ter sido muito bem conduzida do ponto de vista da negociação política com o Congresso, apesar de todas as concessões que precisaram ser negociadas no caminho.

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Mas a previsão para 2024 é de um crescimento menor. Qual é a expectativa do sr. para o próximo ano?

Apesar de termos crescido 3% neste ano, o fato é que nós estamos vivendo uma clara desaceleração do nível de atividade. O número (do terceiro trimestre) mostra que estamos caminhando para uma quase estagnação em termos de crescimento. O mais preocupante desse número do PIB trimestral é o investimento.

O que explica essa desaceleração?

Eu acho que há muitos fatores. O mais evidente se reflete no nível de investimento, que está muito baixo. Agora, por trás disso, paira ainda uma forte incerteza do lado fiscal, quanto ao cumprimento do que foi anunciado em relação ao arcabouço fiscal. Há uma incerteza em relação à constituição tributária que vai prevalecer no Brasil. Para você tomar uma decisão de investimento de longo prazo, precisa ter alguma previsibilidade de qual vai ser o arcabouço tributário que vai incidir sobre a sua atividade. E o fato de que os juros no Brasil, ao longo de 2023, permaneceram extremamente elevados, embora tenham começado a cair nos últimos meses. Mas continuam muito altos.

Tem também o endividamento das famílias. Há um comprometimento muito elevado da renda disponível das famílias por conta desse endividamento. De novo, os juros inibem não só o investimento, mas também deixam as famílias com muito menos espaço para poder tomar decisões de consumo, uma vez que elas têm de pagar o serviço muito caro das dívidas que têm.

O sr. não vê como uma preocupação uma eventual tentativa do governo para ampliar os gastos com a desaceleração do crescimento?

Pairam dois grandes riscos em relação à condução da política econômica no segundo ano do governo Lula. O primeiro deles é esse: diante de um crescimento mais baixo, se prevalecer o que parece que está a caminho, uma desaceleração intensa da economia, um risco muito grande é a impaciência, de querer fazer o crescimento a ferro e fogo, uma espécie de marcha forçada, como tentou fazer a Dilma. E deu no que deu.

E como evitar esse risco?

É muito importante a equipe econômica - e acho que ela tem clareza sobre isso - convencer o presidente e prevalecer na sua postura de cautela, de não ceder para buscar um alívio no curto prazo, mas que pode ter consequências muito piores lá na frente.

Eu acho que um grande teste vai ser quando ficar claro no fim do primeiro trimestre de 2024 que a meta de zerar o déficit primário não vai ser cumprida e, portanto, o contingenciamento que está previsto na lei precisa ser implementado. Vai ser o teste de fogo do compromisso do governo com o equilíbrio fiscal. Nem diria equilíbrio, diria com o controle das contas públicas.

E como o sr. avalia a situação fiscal do País?

A situação fiscal brasileira não é periclitante. Nós não estamos na beira de um abismo. A dívida bruta do setor público é alta para um país de renda média - ao redor de 76% do PIB, 77% do PIB -, mas está muito abaixo das dívidas públicas líquidas da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que estão, na média, acima, na média, de 100%. Não é uma tragédia e não será o fim do mundo se a dívida pública brasileira, ao longo do ano que vem, crescer alguns pontos percentuais, dois ou três pontos. O que é extremamente importante é que a equipe econômica e o governo saibam administrar as expectativas e não permitam que se fixe uma ideia de que prevaleceu o descontrole. E é aí que eu acho a questão do contingenciamento importante. Essa administração das expectativas é o ponto mais delicado.

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Situação fiscal do País não é periclitante, afirma Giannetti Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

Essa importância de administrar as expectativas ficou claro quando se discutiu a mudança da meta fiscal…

Esse tipo de ruído é um gol contra que o governo faz.

Mudar a meta seria um problema num cenário em que o mercado já não acredita no resultado primário zero em 2024?

Depende muito de como isso é feito e de como é percebido. O governo tem uma expectativa - e me parece um pouco irrealista – para as receitas excepcionais que se materializariam no ano que vem. Eu acho que é uma expectativa que provavelmente vai se frustrar. Com o crescimento mais baixo, também a expectativa de arrecadação tributária, provavelmente, será menor. Ao mesmo tempo, tem gastos públicos e a necessidade de manter políticas sociais e algum nível de investimento do setor público. Nós não estamos na beira de um abismo fiscal. Agora, é preciso ter extremo talento e cuidado na maneira como se administram as expectativas do mercado financeiro.

Não podemos correr o risco de ter uma desconfiança em relação ao futuro que leve a uma depreciação da moeda, com impacto na inflação e jogando por água abaixo a expectativa de que o juro primário possa cair de maneira consistente no Brasil. Isso, sim, levaria nossa situação fiscal para um enredo muito preocupante, coisa que não é definitivamente o caso agora. No próximo ano, eu acho que o Banco Central já tem elementos para dar uma acelerada no ritmo da redução do juro primário. Isso vai trazer grande alívio para as contas públicas. Não altera o déficit primário, mas altera e muito o déficit nominal, que é o que realmente conta para a dívida pública.

Até onde o Banco Central pode chegar nesse ciclo de corte de juros?

Com a redução clara do nível de atividade e as expectativas de inflação, e a própria inflação, convergindo para próximo da meta estabelecida, há elementos objetivos para dar uma acelerada no ritmo de corte da Selic. Eu não vou dizer números, mas eu acho que isso está colocado. Agora, o importante de tudo isso é que o ônus de serviço da nossa dívida pública caia e dê um pouco de margem de manobra no Orçamento e reduza também o crescimento da dívida pública do Brasil

O sr. falou de dois riscos na condução da política econômica em 2024 e mencionou a impaciência. Qual é o segundo risco?

O segundo grande risco está na relação entre Executivo e Legislativo. Nós sabemos, desde o início da redemocratização, que há uma dinâmica na relação entre Executivo e Legislativo ao longo do mandato. Tipicamente, o Executivo começa numa situação de poder, de dominância, capaz de iniciar e implementar uma agenda com o Congresso, mas, ao longo do mandato, esse capital político se enfraquece e a relação de forças começa a pender para o lado do Legislativo. O agravante é que, no quadro atual, por uma série de razões, o Congresso veio paulatinamente assumindo protagonismos em relação ao Orçamento, em relação às medidas provisórias e ao próprio andamento das políticas no Brasil. Eu acho que uma grande incógnita é como vai se desdobrar essa relação entre Executivo e Legislativo daqui para a frente.

E como o governo tem se comportado nessa relação?

O governo Lula tem sido muito habilidoso até aqui. E o Lula tem um talento e uma capacidade de liderança que tem permitido a ele, nesse início de mandato, ter uma relação cooperativa com o Legislativo. Em alguns momentos, até o Legislativo tem surpreendido para o bem, como no caso da Eletrobras e da lei do saneamento. Agora, nós sabemos que o fisiologismo tende a se tornar mais aguerrido à medida que o mandato avança e o Executivo tende a se enfraquecer. Nós vamos ter fatos relevantes em relação a isso - não sei exatamente quando - , mas que têm a ver com a renovação das presidências do Senado e da Câmara dos Deputados.

Muito da dinâmica dessa relação, entre Executivo e Legislativo, vai depender de como será feita essa transição. Os presidentes das casas têm enorme poder na definição e na votação das pautas. Nós temos de contar, realmente, com toda a habilidade da área política do governo para permitir que essa relação, em grande parte cooperativa, possa continuar prevalecendo no ano que vem. Mas aí mora um perigo: a última coisa que nós precisamos nesse momento é um jogo de conflito entre os três poderes no Brasil, como houve durante a maior parte do último governo.

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De certa forma, Lula enfrenta um cenário diferente dos seus outros mandatos. Ele governa com uma sociedade polarizada. Vai ser fácil controlar a ala política se ela demandar mais gastos em 2024, ano de eleição municipal?

É natural em qualquer governo que haja uma pressão para gastar. O fato é que tem muito dinheiro já empenhado, mas que não está sendo gasto no Brasil. O chamado empoçamento. Não tem projeto. Não tem capacidade operacional. Se a preocupação for, de fato, com realizações, a primeira providência é garantir que o que já está colocado – e não é pouco - seja usado, e usado com critério. A minha avaliação é que o governo Lula abriga dois núcleos bastante claros. Tem o núcleo que eu chamo PT raiz e o núcleo centro liberal. Felizmente, na minha avaliação, algumas áreas críticas, como a economia e o meio ambiente, estão em boas mãos, na do centro liberal. Outras áreas, como a mais visível delas, a política externa, ficaram com o PT raiz.

E como analisa esse arranjo?

É razoável dentro de uma democracia. O Lula gosta de ser o árbitro. Ele quer ouvir, ele pondera. E, nos momentos críticos, apesar de muitas vezes, ele, na sua incontinência verbal falar coisas que não ajudam, no momento de decidir tem prevalecido o bom senso e o senso prático do que realmente o Brasil precisa.

Mas não é ruim esse ruído?

Enquanto ele fica no plano simbólico, das palavras, de uma frase impensada, causa algum prejuízo naquela dimensão das expectativas. Mas, na hora em que se percebe que aquilo não tem desdobramento, não tem duração, é um plano passageiro, causa mais espuma.

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