Governo tem ‘encontro marcado com lado do gasto’ e precisará bloquear R$ 50 bi em 2024, afirma Salto

Economista-chefe da Warren Rena avalia que preocupação maior é com a sobrevivência do arcabouço, em meio a pressões políticas

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Atualização:
Foto: Dida Sampaio/Estadão
Entrevista comFelipe Saltoeconomista-chefe e sócio da Warren Rena

BRASÍLIA - O economista-chefe e sócio da Warren Rena, Felipe Salto, afirma que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem um “encontro marcado com o lado do gasto”. Ele calcula que a meta fiscal de 2024 só será cumprida – considerando o piso da meta, de déficit de 0,25% do PIB – se o Ministério da Fazenda conseguir elevar a arrecadação em ao menos R$ 120 bilhões e contingenciar (bloquear preventivamente) cerca de R$ 50 bilhões em despesas.

A meta do próximo ano prevê déficit primário zero nas contas públicas – ou seja, equilíbrio entre receitas e despesas, sem considerar o pagamento dos juros da dívida. Mas há uma tolerância para esse alvo, que permite que o governo tenha um rombo de até 0,25% do PIB, algo próximo a R$ 30 bilhões.

O economista, que foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, destaca, porém, que sua maior preocupação não é com a situação fiscal de 2024 e, sim, com a sobrevivência do arcabouço – nova regra para controle das contas públicas – no médio prazo. “O problema é como o governo vai dar sustentação ao arcabouço, já que ele não vai conseguir ficar tirando da cartola, todo ano, medidas pelo lado da receita”, diz Salto em entrevista ao Estadão.

Felipe Salto, economista-chefe da corretora Warren Rena Foto: Fernando Nectoux/Warren

Nesse cenário, o economista avalia que o primeiro grande teste do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, será daqui a seis meses, em março de 2024. Na ocasião, o governo apresentará o primeiro relatório bimestral de receitas e despesas referente ao próximo ano e terá de sinalizar, formalmente, se a meta de déficit zero será ou não cumprida.

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“Se o relatório apontar para um descumprimento, vai vir uma pressão forte para mudar a meta. E é aí que o governo terá de resistir e dizer: Nós vamos fazer o arcabouço ser cumprido”, diz. Isso significa contingenciar gastos e, em caso de efetivo descumprimento da meta, acionar gatilhos pelo lado da despesa já em 2025. A seguir, os principais trechos da entrevista.

A Warren Rena projeta déficit de 0,9% do PIB em 2024. Ou seja, distante da meta de déficit zero. O que o governo teria de fazer para equilibrar receitas e despesas?

Importante ressaltar que a projeção de déficit de 0,9% do PIB (para 2024) tem um viés de melhora. Talvez a gente revise essa estimativa, ainda não sei para quanto. O fato é que ganhou um pouco mais de concretude a realização de novas receitas agora que elas foram, ao menos, materializadas nas Medidas Provisórias e nos Projetos de Lei. E nessa projeção de déficit de 0,9% tem só R$ 50 bilhões de recuperação de receita, já incluindo a reoneração dos combustíveis. Mas, feita essa ressalva, eu acho que o desafio do governo é gigantesco para o ano que vem. Ele anunciou uma meta zero, não precisaria ter anunciado essa meta, que era muito ousada desde o início.

O sr. defende uma revisão da meta de 2024?

Não. Se mudar agora, fragiliza toda a estratégia do governo e vai por água abaixo a lógica do arcabouço. Mesmo que ele não consiga o zero, o fato de manter esse compromisso vai fazer com que o resultado primário seja melhor no ano que vem (em relação a 2023). Isso é fundamental. Isso é mais importante do que cumprir a meta zero: melhorar o máximo possível deste ano para o próximo.

Mas é possível zerar o déficit no ano que vem?

Acho que é possível; mas, hoje, não é a minha aposta.

O que precisaria ser feito para que esse resultado fosse alcançado?

Há R$ 211,9 bilhões em despesa discricionária (não obrigatória, como investimentos) no Orçamento. Portanto, o governo consegue contingenciar, pelas regras do arcabouço, uns R$ 50 bilhões, já que é possível bloquear, no máximo, 25%. Então, tem uma ajuda pelo lado da despesa, no curtíssimo prazo, que é o contingenciamento. Partindo da nossa projeção atual – de déficit de 0,9% do PIB –, se o governo contingenciar R$ 52 bilhões e levantar outros R$ 70 bilhões em receitas novas, além dos R$ 50 bilhões que já estamos prevendo, acredito que seja possível alcançar o limite inferior da banda (déficit de 0,25% do PIB). Isso jogaria a despesa discricionária para algo como R$ 160 bilhões, o que representa 1,4% do PIB, próximo do que deverá encerrar 2023. Ou seja, não se trata de um corte impeditivo, mas não significa que será fácil. O que mais me preocupa, na verdade, é o médio prazo.

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Por quê?

Porque parte dessas receitas extras pode ser muito grande num primeiro momento e depois diminuir. Fundo exclusivo, por exemplo, pode ter uma arrecadação alta no começo, porque tem a tributação do estoque dos rendimentos. Só que depois, no segundo ano, vai cair para um valor bem menor, cerca de 20% ou menos. O problema é como o governo vai dar sustentação ao arcabouço, já que ele não vai conseguir ficar tirando da cartola, todo ano, medidas pelo lado da receita. Há, portanto, um encontro marcado com o lado do gasto.

Mas onde cortar?

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93,4% do Orçamento são despesas rígidas, como Previdência, Lei Orgânica de Assistência Social, Benefício de Prestação Continuada, Bolsa Família, abono salarial, seguro-desemprego e subsídio. Sobram 6,6% de despesas discricionárias (não obrigatórias), como investimento, custeio da máquina, bolsas de pesquisa e os mínimos de Saúde e Educação, já que o governo usa parte da discricionária para cumprir esses pisos. Isso, inclusive, é uma pressão que vai crescer nos próximos anos. Então, não tem outra saída: é necessário revisar cada linha do gasto. O CMAP (Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas) já produziu diversas avaliações. Mas foram utilizadas? Não. Precisa obrigar que essas avaliações sejam incorporadas no processo orçamentário.

Como fazer isso?

É necessário criar mecanismos que poderiam ser acoplados, por exemplo, ao próprio arcabouço, para fazer esses cortes anualmente. Não adianta ficar criando grandes revoluções no PPA (Plano Plurianual) ou um mega plano fiscal de médio prazo. Tem de ser aos poucos. E isso vale também para o gasto tributário (benefícios fiscais que são concedidos a empresas, setores e segmentos da população, reduzindo a arrecadação). O governo está dando uma boa sinalização, no sentido de incluir o componente de ajuste pelo lado da despesa na dança. Primeiro, foram os secretários da ministra Simone Tebet; depois, a própria ministra; e agora, o ministro Haddad.

Qual gasto tributário, na sua avaliação, poderia ser revisto?

Por exemplo: a gente gasta anualmente, só com abatimentos de despesas médicas no Imposto de Renda da Pessoa Física, R$ 20 bilhões. Isso o (ex-ministro da Economia) Paulo Guedes já tinha falado, mas não conseguiu mexer. Por que não? Uma pessoa faz uma consulta médica de mil reais, na melhor clínica de Brasília ou São Paulo, pega nota, apresenta na hora da declaração e fica por isso? Ou seja, ela paga menos imposto porque foi numa consulta que ela poderia muito bem pagar e não precisaria desse benefício.

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Isso foi um ponto delicado na eleição presidencial do ano passado. Há muita resistência...

Sem dúvida. Toda essa agenda fiscal e orçamentária é muito difícil e vai enfrentar resistências. Eu acho que o Haddad está fazendo bem em ir devagar com o andor, porque o santo não é de barro, mas pode acabar se espatifando.

Essa mesma lógica vale para o momento em que o governo, eventualmente, tiver de contingenciar gastos. Não será uma tarefa fácil, do ponto de vista político…

O primeiro grande teste será no final de março de 2024, quando o governo divulgará o relatório bimestral de receitas e despesas. Nesse momento, ele terá de dizer, formalmente, se está vendo ou não o cumprimento da meta até o final do ano. Se o relatório apontar para um descumprimento, aí vai vir uma pressão forte para mudar a meta. E aí é que o governo terá de resistir e dizer: “nós vamos fazer o arcabouço ser cumprido”. Aí que será o grande teste do ministro Fernando Haddad, porque ele terá de fazer o arcabouço funcionar.

Não tem outra saída: é necessário revisar cada linha do gasto

O sr. se refere ao contingenciamento e, mais para frente, o acionamento de gatilhos?

Exato. O arcabouço prevê que, se a meta for de fato descumprida, alguns gatilhos, pelo lado da despesa, já serão acionados em janeiro de 2025. O mercado está dando pouca importância para isso porque não olhou no detalhe, mas são gatilhos fortes. Exatamente os mesmos que estavam previstos no antigo teto de gastos. Só que a regra do teto era tão mal feita que era impossível acionar esses gatilhos.

O sr. mencionou que os pisos da educação e da saúde são uma fonte importante de pressão no Orçamento, já que voltaram a crescer com base no desempenho da receita, e não apenas na variação da inflação. Como resolver isso?

Não há necessidade de esses mínimos constitucionais crescerem pela receita, porque o orçamento dessas duas áreas já é bastante significativo. Eles poderiam crescer, por exemplo, com base na regra do arcabouço –ou seja, 70% da variação passada da receita líquida. Uma possibilidade que não é nem tão draconiana como o teto de gastos, que só crescia pela inflação, e nem tão solta como a regra antiga que voltou a valer. Além disso, seria importante unificar esses mínimos, uma discussão que também envolve Estados e municípios. Às vezes, você precisa gastar uma montanha de dinheiro com o mínimo da educação; mas, na verdade, você precisaria mais desse dinheiro na saúde. Só que não é possível fazer compensações entre as duas áreas. Eu senti isso na pele, quando fui secretário de Fazenda de São Paulo.

Estados e municípios estão, mais uma vez, em uma situação fiscal delicada, inclusive pedindo um novo socorro à União. Como o sr. avalia esse cenário?

A piora fiscal de Estados e municípios era uma pedra cantada, desde a aprovação da Lei 194 (que impôs um teto para a alíquota do ICMS sobre produtos considerados essenciais, como combustíveis). Essa lei dizia assim, por exemplo: São Paulo, a sua alíquota (de ICMS) sobre a gasolina é 25%. A partir de agora, só pode ser 18%. Como isso? E quem paga essa conta? No caso de São Paulo, nós tivemos de entrar no Supremo (Tribunal Federal) para conseguir R$ 1 bilhão por mês. E, proporcionalmente, aconteceu a mesma coisa em todos os Estados. O Paulo Guedes falava: “Ah, os Estados estão cheios de dinheiro. Olha o caixa dos Estados”. Só que caixa é variável de estoque. O fluxo, que é o ICMS, já estava em trajetória de desaceleração, desde o meio do ano passado. Era só olhar os dados.

E qual a situação atual?

Agora, Inês é morta. O superávit primário, que era gigantesco, já é um déficit. O último dado do Banco Central, do setor público consolidado, mostra que a parte de Estados e municípios já é deficitária. E qual vai ser a solução? Governadores e prefeitos estão desesperados pedindo, de novo, mais dinheiro para a União. Alguns, como já estão fazendo, vão aumentar a alíquota modal do ICMS (aquela que é aplicada a itens considerados essenciais). Outros vão passar o pires na PEC 45 (proposta da reforma tributária) para pedir mais (recursos para o) Fundo de Desenvolvimento Regional. Outros vão ganhar Fundo de Participação dos Municípios majorado, que é o projeto do (deputado e líder do governo na Câmara) Zeca Dirceu. Então, nós estamos cometendo os mesmos erros.

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Podemos dizer que o governo também tem um encontro marcado com a questão dos precatórios?

É preciso dar uma solução para os precatórios para tornar esse regime civilizado, porque a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Paulo Guedes foi vexatória para o País. Ela significa um calote do calote, como eu falei na época. O juiz manda pagar o precatorista e, agora, você não só coloca ele na fila, como já fazia antes, mas também cria uma uma bola de neve – que tem data marcada para cair nas nossas cabeças, que é 2027. Ou seja: você não está cumprindo com o seu dever, que é pagar os precatórios, e está contratando um risco fiscal no futuro.

Qual a solução?

Primeiro, não tem mágica: tem que pagar essa despesa. É uma obrigação do Estado, fundamental para a segurança jurídica, já que o precatório foi derivado de uma decisão judicial que tem de ser cumprida. Agora, para mim, precatório é dívida. Então, deveria contabilizar todos os precatórios expedidos na dívida.

Mas isso não seria contabilidade criativa?

Não, porque a dívida seria sensibilizada. O governo vai aumentar a dívida. Vai aparecer lá, por exemplo, 2,5 pontos percentuais do PIB a mais de dívida. A vantagem de se fazer isso é que o precatório passa a ser uma despesa financeira: você paga um precatorista como se estivesse pagando um título público na data do vencimento. Isso resolve o problema definitivamente.

Ao tirar o precatório do resultado primário, isso pode abrir um espaço fiscal artificial.

Isso é fácil de resolver. Basta explicitar na Lei de Responsabilidade Fiscal que o espaço primário eventualmente gerado por essa mudança contábil só poderá ser destinado à amortização de dívida pública.

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