Economista da ASA Investment e ex-secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt diz achar louvável o governo tentar lidar com a questão dos precatórios, mas que se preocupa com os efeitos colaterais que a classificação dos encargos como despesa financeira, e não mais como despesa primária, pode acarretar. “Para solucionar o problema do estoque não precisa disso”, afirma.
Em entrevista ao Estadão/Broadcast, ele avalia que o governo não conseguirá zerar o déficit primário em 2024 e projeta um déficit de 1,2% do PIB.
Bittencourt diz que o governo terá de mudar a meta já que, politicamente, não está disposto a fazer o contingenciamento que seria necessário para não ter de mexer nela. Para este ano, ele prevê um déficit primário de 1,3% do PIB.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
Como senhor está vendo o pedido do governo ao Supremo Tribunal Federal para a derrubada dos limites de pagamento dos precatórios estabelecidos no governo Bolsonaro?
Acho louvável que o governo tente endereçar essa questão desse estoque de medidas de sentenças (judiciais) que não foram pagas. Vinha-se de um volume de sentenças de R$ 30 bilhões, R$ 40 bilhões que, de um ano para outro, saltou para R$ 90 bilhões, num cenário que tinha o teto dos gastos. De fato, a solução que se encontrou lá atrás para o problema teve efeitos colaterais sérios e estava limitada num tempo, acabava em 2027.
Então, por esse aspecto, o governo está correto?
É muito importante o governo enfrentar esses efeitos colaterais sérios, evitando o represamento dessas despesas que andam fora da estatística fiscal. A preocupação que se tem é sobre quais serão os efeitos colaterais da proposta de solução que está sendo feita agora.
Por quê?
Porque a proposta de solução que está sendo dada agora, para a solução do estoque, do pagamento do que está represado, não precisa da parte mais controversa da proposta que a AGU (Advocacia Geral da União) enviou para o STF.
Que parte seria esta?
É aquela classificação dos encargos como despesa financeira e não mais como despesa primária. É importante a gente ter claro que, para pagar o estoque da maneira que o governo solicitou ao STF, ele não precisa dessa parte controversa. Ele pediu para pagar com crédito extraordinário, para abater o que tem no orçamento e que seja situado nas regras e que, de alguma maneira, não seja entendido como descumprimento das metas.
E por que precisa transformar os encargos em despesa financeira?
Essa é a questão, porque, para solucionar o problema do estoque, não precisa disso. E está tendo uma solicitação adicional relativa aos encargos, que é uma contraindicação de uma solução que não tem data para acabar. A contraindicação da solução do problema da PEC dos Precatórios era um efeito colateral ruim com data para acabar. O efeito colateral ruim dessa solução é que não tem data para acabar, que é essa classificação dos juros como despesa financeira e não primária.
Voltando um pouco lá atrás, as medidas adotadas pelo ex-ministro Paulo Guedes são inconstitucionais?
Há, sim, discussões sobre a não constitucionalidade do não pagamento da sentença judicial transitada em julgado. Mas também vigora um regime especial de pagamento de precatórios para Estados e municípios que implica em um diferimento no tempo deste pagamento. Se sempre houve esse desejo de manter em dia esses pagamentos, os gestores estatuais e municipais também, no limite de sua capacidade, deveriam abrir mão dessa prerrogativa de diferir o pagamento desses precatórios.
Estão pedindo um crédito de R$ 95 bilhões. Como o senhor vê isso, tem espaço fiscal para isso?
Acho que todo analista fiscal está com esse número na cabeça e não deveria ser surpresa a incorporação desse valor que está represado em algum momento do tempo de hoje até 2027. Acho que, neste ponto, o governo pediu o crédito extraordinário descontado o que ele tem de sentenças no Orçamento. O que ele está querendo dar a entender que ele não vai se valer de um eventual espaço fiscal que seja aberto pelo pagamento dessas sentenças.
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Como seria feito isso?
Ele está dizendo que vai descontar do crédito extraordinário aquilo que já tem previsto de maneira ordinária no Orçamento. Ou seja, só vai fazer de extraordinário aquilo que não cabe no ordinário. Eu acho que o mercado já tinha, mais ou menos, em conta de que o governo teria de incorporar isso. Se vai incorporar via despesa primária ou via despesa financeira, o fato é que esse valor represado vai virar dívida. E, a partir do momento que nós temos déficit, tudo que fizermos de despesa adicional significa dívida adicional.
É muito forte dizer que se trata de uma contabilidade criativa?
Eu tenho muita dificuldade de entender o porquê de isso ser necessário, porque esse tratamento do encargo como despesa financeira não era necessário para resolver o estoque de pagamentos que estão pendentes. A questão é por que se precisa desse tratamento diferenciado. Acho que tem um problema de comunicação do governo.
Por que você acha que o governo está fazendo isso?
Eu intuo que seja porque, no limite de despesa do arcabouço fiscal, o nível de despesa de precatório que está lá dentro não é compatível com o fluxo normal. O que quero dizer é que temos um número de inscrições que o Judiciário faz para a gente pagar no ano seguinte. O que a PEC dos Precatórios fazia era o seguinte: tudo o que o judiciário inscreveu para eu pagar neste ano eu não vou pagar tudo, só vou pagar parte. Represa no Orçamento e o que vai para pagamento é menor que o Judiciário pediu para se pago.
Isso enfraquece, em sua opinião, o arcabouço fiscal?
Essa parte da reclassificação dos precatórios definitivamente não é boa para a imagem da nova regra que foi criada. Mas a gente precisa considerar que outros tratamentos diferenciados estão sendo dados, e o mercado, talvez, está dando pouca importância. Lá no PLP 136, que compensa os Estados pela perda de arrecadação do ICMS com combustível, sugere a antecipação da parcela de 2024 para 2023 (essa compensação seria em três anos) com crédito extraordinário. Crédito extraordinário não é para isso. Crédito extraordinário anda no limite. Se estou fazendo despesas extraordinárias, era para pressionar o limite de gastos.
Qual sua projeção de déficit primário para este e o próximo ano. Vamos conseguir zerar o déficit em 2024?
A gente está para o ano com uma projeção de um déficit de R$ 135 bilhões ou 1,3% do PIB. É um déficit melhor do que o de R$ 141 bilhões projetado pelo governo, apesar de, no lançamento do arcabouço, ter falado que ia buscar um déficit na casa dos R$ 50 bilhões. Depois, voltou a falar em déficit na casa de 1% do PIB, mas a projeção oficial anunciada na semana passada é de R$ 141 bilhões.
E por que vocês estão com uma projeção de déficit melhor que a do próprio governo?
Porque, primeiro, o governo não coloca na projeção oficial o empoçamento, aquele recurso que libera para os ministérios e considera que a despesa será feita. Mas, muitas vezes, quando chega no final do ano, a despesa não é feita. Então ele pega aquele dinheiro que botou na mesa, e o nível de despesa dele cai. Eu coloco na conta o empoçamento, e o governo não coloca na projeção dele.
O governo vai conseguir zerar o déficit no próximo ano?
Acredito que não vai conseguir zerar o déficit no ano que vem porque o volume de receitas que está no Orçamento e sobre o qual há um sério ceticismo é muito grande. Quer dizer, o governo tem um pacote de R$ 168 bilhões entre renegociações, que dá R$ 97 bilhões, e medidas tributárias que dão uns R$ 70 bilhões. Mas a gente sabe que, nessas medidas tributárias, há coisas que vão ser desidratadas e coisas que nem vão ser aprovadas porque tem a questão da anualidade. Ou seja, tem medidas que precisam ser aprovadas até o final do ano e tem um volume de receitas com concessões sobre o qual também há um grande ceticismo.
Então qual é a sua projeção de déficit para o ano que vem?
Nossa projeção é de um déficit de 1,2% do PIB.
Sua projeção de déficit para este ano considera os R$ 24 bilhões que o BNDES vai devolver ao Tesouro?
Essa receita não é primária. Eu não considero essa devolução explicitamente, mas se considerasse eu teria de fazer uma redução da minha projeção da dívida bruta em algo como 0,25% do PIB diretamente lá, e não através do fluxo de receita primária, porque ela não é primária. Mas eu não considero que o BNDES vai fazer essa devolução.
O governo muda a meta no próximo ano?
Vai ter de haver essa discussão sim. Seria melhor que não tivesse e usasse todos os instrumentos do arcabouço fiscal, mas, na minha visão, isso ia requerer um grau de contingenciamento que o governo não está politicamente disposto a enfrentar. Acho que muda a meta.