'O risco é a inflação global se tornar sistemicamente mais elevada', diz Luiz Awazu, diretor do BIS

Para o ex-diretor do BC brasileiro, aumento da inflação em todo o mundo está se mostrando um formidável desafio e a economia não está livre de novos choques e surpresas

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SÃO PAULO E NOVA YORK - Luiz Awazu Pereira da Silva, diretor-geral adjunto do Banco de Compensações Internacionais (BIS, uma espécie de banco central dos bancos centrais), vê como risco mais importante de longo prazo a inflação se tornar sistemicamente mais elevada, o que levaria a uma mudança de "regime inflacionário", saindo do período que ficou conhecido como a "grande moderação".

"Se a dose de aperto (alta dos juros) for insuficiente, ou se políticas fiscais inconsistentes forem adotadas, a inflação pode se consolidar nas expectativas de todos e virar um problema bem maior", diz o ex-diretor do Banco Central e ex-secretário no Ministério da Fazenda, ambos os cargos relacionados a assuntos internacionais. "Os bancos centrais não podem jamais ser complacentes. O aumento da inflação está se mostrando um formidável desafio e a economia não está livre de novos choques e surpresas."

Luiz Awazu Pereira da Silva, diretor-geral adjunto do Banco de Compensações Internacionais,vê como risco mais importante de longo prazo a inflação se tornar sistemicamente mais elevada Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Awazu avalia ainda que, diante de uma alta mais contundente de juros pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano), a maioria dos mercados emergentes está mais bem preparada agora do que nos anos 90, com regimes de política econômica mais robustos, centrados em metas de inflação e taxas de câmbio flexíveis. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Em que medida a inflação no mundo pode ser importada pelos países emergentes neste ano?

O retorno da inflação tem sido um fenômeno global. Ganhos de eficiência mundial que reduziam custos locais foram revertidos depois da pandemia. Somente na Ásia a inflação permaneceu relativamente moderada, pelo menos até recentemente, pois nos últimos meses houve retomada importante na maioria dos países, com exceção da China e Japão. Em três de cada quatro economias avançadas, a inflação agora ultrapassa 5%. Em mais da metade dos mercados emergentes, está acima de 7%. As categorias de consumo cujos preços são mais globalizados - como energia e alimentos - são justamente as que mais puxam a inflação. Nos países emergentes, principalmente na América Latina, alimentos e energia têm um peso importante. Neles, os preços de itens que representam metade da cesta de consumo estão subindo mais de 7%. Alimentos e energia juntos constituem parte fundamental de gastos das famílias, especialmente as mais pobres. Temos de estar atentos a esses efeitos redistributivos e sociais. A energia é um insumo para quase todas as atividades econômicas. Por isso, altas em energia e alimentos tendem a se espalhar para outras categorias de consumo e provocar o que nós economistas chamamos de efeitos de segunda ordem.

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Quais os riscos à frente?

A inflação pode permanecer alta para além deste ano, por causa de problemas na oferta e produção. O conflito na Ucrânia poderá causar novos aumentos de preços de energia, alimentos e outras commodities, o que levaria a novas altas em preços de bens e serviços. Se houver novos lockdowns na China, isso causaria problemas adicionais nas cadeias globais de produção. O risco mais importante de longo prazo é o de a inflação se tornar sistemicamente mais elevada, levando a uma mudança de paradigma ou de "regime inflacionário", saindo do período que ficou conhecido como a "grande moderação". Quando a inflação é baixa e estável, naturalmente chama menos atenção e sua influência sobre a formação de salários e preços é menor. Mas, se a alta de preços se torna mais generalizada, esta dinâmica pode mudar, levando a uma espiral inflacionária em que altas de preços e salários se retroalimentam. Nós, do BIS, vamos analisar todos esses temas em profundidade no Relatório Econômico Anual, que será publicado no fim de junho.

O ritmo mais veloz de aperto monetário dos bancos centrais principais pode impactar de que maneira os emergentes, considerando um Fed mais agressivo daqui por diante?

Eu vejo pelo menos três razões pelas quais a postura mais agressiva do Fed é menos preocupante agora do que no passado. Primeiro, o fato de que vários países emergentes já elevaram significativamente suas próprias taxas de juros. De maneira correta, eles se adiantaram a países avançados. Segundo, o Fed melhorou sua comunicação, aprendendo com o passado. Não há agorasurpresas sobre seus movimentos, como ocorreu no chamado "Taper Tantrum", em 2013 (nome dado à reação dos mercados à diminuição das políticas expansivas do Fed). Finalmente, a maioria dos mercados emergentes está mais bem preparada agora do que nos anos 90, por exemplo. Eles têm regimes de política econômica mais robustos, centrados em metas de inflação e taxas de câmbio flexíveis. A regulação financeira e prudencial melhorou depois da crise global de 2008, o que fortaleceu os sistemas financeiros, tornando-os mais estáveis e resistentes a choques.

O que mais houve de avanço nas políticas de países emergentes?

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Muito importante também é que os países ampliaram seus instrumentos para além da taxa de juros: adicionaram mais regulação financeira com as chamadas medidas macroprudenciais, intervenções para reduzir volatilidade nos mercados cambiais, e, em situações especiais, até mesmo medidas específicas sobre os fluxos de capital. Muitos países têm usado essas ferramentas mesmo em períodos de relativa tranquilidade nos mercados financeiros internacionais, justamente para fortalecer seus sistemas financeiros e torná-los mais resilientes a turbulências globais. Todos esses fatores contribuíram de alguma forma para estabilizar os fluxos de capital e as taxas de câmbio nos últimos meses, mesmo após as recentes turbulências geopolíticas. Apesar disso, os bancos centrais não podem jamais ser complacentes. O aumento da inflação está se mostrando um formidável desafio e a economia não está livre de novos choques e surpresas.

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Como equilibrar esse dilema, entre mais inflação ou uma possível recessão?

Se os bancos centrais não conseguirem calibrar a sua dose certa de aperto monetário, no tempo certo, para tentar conter tendências inflacionárias de curto prazo, podem acabar induzindo uma queda excessiva de atividade e até uma recessão. E isso deve ser evitado. Se a dose de aperto for insuficiente, ou se políticas fiscais inconsistentes forem adotadas, a inflação pode se consolidar nas expectativas de todos e virar um problema bem maior. Nos anos 70 por exemplo, tivemos dois choques de preço do petróleo e uma guerra (no Vietnã) e não houve uma tomada de consciência dos limites de produtividade na época, continuamos com políticas expansionistas que levaram à inflação elevada do final da década e a necessidade de um "momento Volcker"  (Paul Volcker, presidente do Federal Reserve à época) de juros. Portanto, é necessário calibrar a política monetária com o devido cuidado relativo à sua dose e ao seu momento, o que é o dia a dia de todo banco central.

O fluxo de recursos estrangeiros para os emergentes é crescente. Isso vai seguir assim? 

O volume de capital que ia para a Rússia antes da guerra já era muito pequeno. As estatísticas do BIS mostram que os bancos já haviam reduzido pela metade sua exposição àquele país desde 2014. O benefício para outros países desse potencial redirecionamento de fluxos não é significativo. Mais significativo, a longo prazo, é a queda potencial de fluxos de capital para outros países. Não é impossível que, em um mundo geopoliticamente mais fragmentado, os fluxos de comércio e capital se alterem significativamente. Alguns mercados emergentes vão sair perdendo, e outros podem se beneficiar. Desde o início da pandemia, empresas e governos buscam formas de proteger suas cadeias de produção. Em alguns casos, isso pode levar à chamada desglobalização. Muito se fala sobre "re-shoring", ou seja, voltar a produzir mais domesticamente, ou em mercados mais próximos. Empresas americanas poderiam redesenhar suas cadeias de produção para que uma parte maior da produção de insumos intermediários ocorresse no Brasil ou outros países da América Latina, em vez da Ásia. Isto poderia impulsionar o crescimento a longo prazo nestes países e atrair mais investimento diretos e fluxos de capital.

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Neste momento, o investidor estrangeiro chega a "ignorar" os problemas fiscais que estão ocorrendo nesses países?

Eu não creio que os investidores estrangeiros estejam ignorando problemas fiscais. Há evidências sugerindo exatamente o contrário, de que investidores estão prestando cada vez mais atenção às condições domésticas, o que inclui a situação das contas públicas, o nível de inflação e a robustez do crescimento. Após a pandemia, o risco soberano certamente aumentou em muitos países emergentes, o que se refletiu em piores classificações de crédito da dívida. O endividamento certamente piorou, mas, no Brasil e em outros países, piorou menos do que se previa no auge da pandemia. As taxas de juros reais também continuam bastante baixas pelos padrões históricos, embora ainda possam aumentar. Os perfis de dívida pública são relativamente longos. E já há ajuste fiscal ocorrendo em vários países, e é importante que continue.

O que também pode pesar na decisão de aporte?

No fim das contas, o que importa é a perspectiva de crescimento de longo prazo, que automaticamente melhora o perfil da dívida e reduz a preocupação dos investidores sobre risco soberano. Infelizmente, em vários países, especialmente na América Latina, o crescimento potencial diminuiu nas últimas duas décadas. Esta tendência precisa ser revertida. É importante ressaltar que as políticas monetária e fiscal não são suficientes para melhorar o crescimento potencial de uma economia. É fundamental que os governos façam reformas estruturais para impulsionar o emprego e a produtividade. Isso é o que vai atrair investimento direto durável no futuro.

Caso a situação fiscal siga problemática nessas economias, quais os riscos e consequências de influxo de recursos em um cenário de aumento mais acentuado de juros nos EUA?

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Ter uma boa situação fiscal é fundamental para diminuir a vulnerabilidade a fluxos de capital externo, especialmente num ambiente de taxas de juros globais mais altas. Contas públicas saudáveis levam os investidores a exigir juros menores para investir em dívida pública ou privada de um país, o que reduz o custo de financiamento e é benéfico para o crescimento. Para termos um quadro fiscal saudável é necessário um esforço inicial quando se vive sempre "no limite" do orçamento. Eu diria também que a grande maioria dos países emergentes depende, para o financiamento de sua dívida, de absorver poupança externa, portanto, de se financiar no mercado internacional. Reconhecer essa realidade não significa ignorar demandas sociais existentes, estruturais ou emergenciais como na pandemia. Significa dar prioridades adequadas e conduzir reformas necessárias para abrir mais espaço para essas demandas fiscais, deixando a autoridade monetária fazer o seu trabalho de combater a inflação. Os esforços de consolidação fiscal, que já começaram em vários países, precisam continuar. É a melhor forma de mitigar as turbulências nos fluxos de capital. E quando a política fiscal é sólida, há mais margem de manobra para fazer o que é necessário na política monetária, o que no momento significa aumentar os juros para combater a inflação.

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