‘É provável que governo use contabilidade criativa para fechar a conta na marra’, diz Marcos Mendes

Um dos criadores do teto de gastos, economista afirma que problema do arcabouço fiscal aprovado no Congresso é exigir um aumento de receita muito forte para cumprir as metas propostas

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Foto do author Luiz Guilherme  Gerbelli
Foto: Amanda Perobelli/Estadão
Entrevista comMarcos MendesPesquisador associado do Insper

Pesquisador associado do Insper, o economista Marcos Mendes avalia que o desenho final do arcabouço fiscal aprovado na Câmara dos Deputados é “inconsistente” e teme que o governo Lula comece “a usar a contabilidade criativa” para fechar as contas.

“O problema é que o arcabouço exige um aumento de receita muito forte para cumprir as metas propostas pelo governo”, afirma.

Embora a nova regra para as contas públicas tenha sido bem recebida pelo mercado, a leitura de Mendes, um dos criadores do teto de gasto, é a de que o “bom humor com relação ao fiscal já terminou”.

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“Houve umas duas ou três semanas de muita empolgação, mas a realidade dos fatos se impõe”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Empolgação com arcabouço durou duas ou três semanas, diz Mendes Foto: AMANDA PEROBELLI/ESTADAO

Qual é a avaliação que o senhor faz da aprovação final do arcabouço na Câmara dos Deputados?

As mudanças finais são apenas marginais. Elas não alteram a característica geral. É um modelo tipicamente de ajuste pelo lado da receita, com o agravante de que tem um ponto de partida de um desequilíbrio muito grande. A PEC da Transição (aprovada no fim do ano passado) permitiu que o déficit deste ano fosse orçado em mais de 2% do PIB e, agora, o governo está correndo atrás para tentar diminuir esse déficit. O primeiro problema do arcabouço é que o arcabouço exige um aumento de receita muito forte para cumprir as metas propostas pelo governo. Ao mesmo tempo que essas metas de primário são ambiciosas frente a situação que temos hoje – todo o mercado está vendo muita dificuldade para o cumprimento delas –, são, por outro lado, muito pouco ambiciosas quando você vê o resultado primário necessário para estabilizar a dívida pública. A gente está partindo de uma situação de desequilíbrio tão grande que até um resultado primário pequeno está sendo visto como muito pouco provável. E há outros problemas no arcabouço fiscal de incompatibilidade da regra com outras que estão colocadas.

O sr. poderia detalhar essa incompatibilidade?

A primeira é o aumento permanente do salário mínimo acima da inflação. Metade da despesa primária é afetada pelo aumento do salário mínimo e isso, ao longo do tempo, corrói a estabilidade fiscal de forma muito forte. O segundo ponto é que, ao revogar o teto de gastos, se revogou também a regra de correção da despesa mínima de saúde e educação. Volta a regra original de corrigir pela variação da receita. Como o governo vai ter de aumentar muito a receita, esse aumento vai puxar a despesa de saúde e educação. E o terceiro ponto é o piso para investimentos, que foi colocado no arcabouço e é mais um fator de rigidez. Quando se junta tudo isso, o resultado é uma improbabilidade muito grande de o arcabouço cumprir as metas e já ter de ser rediscutido a partir do ano que vem.

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Mas a proposta do arcabouço foi bem recebida…

A reação positiva do mercado foi porque se estava esperando algo muito pior, o que se chamou de “afastou o risco de cauda”, o risco de caos total. Agora, afastar o risco de caos total não é uma solução.

O que vai acontecer quando as metas não forem cumpridas?

Hoje, as expectativas do mercado, quando você olha aqueles indicadores do Prisma fiscal, publicado pelo Ministério da Fazenda, é de total desancoragem entre o que os analistas esperam e que o governo anuncia que vai ser o resultado primário. E essa desancoragem aumenta ao longo do tempo. Quando ficar patente – e se vier a ficar patente – que esse cenário que está lá no Prisma é real e que o governo não vai conseguir cumprir a meta, eu vejo algumas possibilidades. A primeira seria o governo passar a controlar despesas, acabar com programas ineficientes, rever a regra do salário mínimo, rever o mínimo de saúde e educação, rever o Fundo Constitucional do Distrito Federal.

Esse controle de despesas pode acontecer?

Eu acho muito pouco provável que isso aconteça, porque vai contra a orientação política e econômica do governo e também não encontra respaldo no Congresso. Aí a gente vai para uma segunda possibilidade, que é o governo simplesmente rever as metas. Eu também acho isso pouco provável.

Por quê?

A racionalidade econômica dos principais economistas do governo é que, no fundo, a meta fiscal não importa muito. O mercado pede, e (o governo) apresenta uma meta fiscal. Rever essa meta ficaria com aquela sensação de que não está entregando o que o pessoal quer ouvir. Com o arcabouço, não é mais crime descumprir a meta. Já tem lá todo um ritual. Se descumprir a meta no ano que vem, a despesa cresce menos, ativam-se alguns gatilhos para controlar a despesa obrigatória. Uma outra possibilidade é deixar o barco correr dentro da regra estabelecida. Descumpre a meta, justifica por qual motivo descumpriu, cria uma justificativa e aciona os mecanismos que estão lá no arcabouço.

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E essa saída resolveria?

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O problema é que esses mecanismos são frágeis. Só diminuir o ritmo de crescimento da despesa e acionar alguns gatilhos da regra não vão resolver a questão fiscal, não vão colocar o resultado primário de volta em direção para a meta. E, segundo, porque a pressão por aumento de gastos é tão grande, o que vai fazer com que esses mecanismos, ainda que fracos, comecem a gerar um problema político por conta do controle de gastos. Eu acho que essa não vai ser a saída completa. Vai ser o primeiro caminho, vai ser o primeiro momento. E aí vem outra possibilidade que eu acho muito provável, de começar a usar a contabilidade criativa, começar a encontrar meios de fechar as contas na marra. Tem sinais fortes disso no cenário.

Quais são esses sinais?

Uma notícia que me causa mais preocupação é a de que o ministro da Fazenda está conversando com a Petrobras para a companhia desistir no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) de R$ 30 bilhões de demandas de pagamento de impostos e pagar logo esses impostos. Está havendo uma pressão do governo sobre uma empresa que deveria estar sendo gerida para atender o interesse de todos os acionistas e, se isso acontecer, estará se submetendo ao acionista majoritário. E esse negócio de fazer triangulação com empresa estatal e banco público foi o cerne das manobras contábeis lá do Arno Augustin (secretário do Tesouro entre 2007 e 2014). Como Petrobras e bancos públicos estão fora do conceito de déficit público, fazendo uma transação do Tesouro com a Petrobras, você consegue, de forma artificial, diminuir a dívida líquida e aumentar o resultado primário. Eu acho que pode ser que voltem a ter esse tipo de prática, de usar estatais e bancos públicos para tentar fechar as contas.

Mas quando ficar evidente que o governo não vai cumprir, esse bom humor termina?

Eu acho que o bom humor com relação ao fiscal já terminou. Houve umas duas ou três semanas de muita empolgação, mas a realidade dos fatos se impõe. A verdade é que a economia brasileira está muito sujeita a oscilações da economia internacional. Ainda que a gente seja muito fechado para importações, hoje, o carro chefe da economia é a exportação de commodities, de petróleo. O que acontece na China e com a taxa de juros dos Estados Unidos nos afeta fortemente. Em alguns momentos, tem um alinhamento de astros, aí surge um bom humor aqui. Mas isso não resiste a uma primeira mudança de ventos. A gente está muito vulnerável. A gente não consegue construir instituições econômicas sólidas e ficamos muito vulneráveis aos balanços e oscilações da economia internacional.

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Tem uma agenda grande de revisão de despesas no Ministério do Planejamento. Ela não vai sair do papel?

Essa agenda já vem sendo tentada desde o governo Temer. Na verdade, até da gestão Levy (Joaquim Levy, ministro da Fazenda no início do segundo mandato do governo Dilma). E até hoje não surtiu muito efeito. Você não conseguiu transformar essas avaliações em decisões de política pública. Houve um aumento do status dessa dessa iniciativa, colocando numa secretaria do Ministério do Planejamento. Agora, é uma questão de ver se vai efetivamente gerar resultados. Será fantástico se gerar resultados. Você faz economia fiscal, melhora a qualidade do gasto público, a focalização, a capacidade do Estado de reduzir pobreza, de ajudar quem precisa ajudar, mas os obstáculos são grandes. Vale lembrar que aprovaram até PEC no governo Bolsonaro dizendo que tinha de reduzir benefícios tributários, mas ficou por isso mesmo.

Por que é tão difícil rever gastos tributários no País?

Por trás de cada gasto tributário, tem um ganhador explícito muito claro que se mobiliza. A forma como o Congresso é eleito e organizado é muito permeável a grupos de pressão. É só ver as bancadas temáticas. Tem todo tipo de bancada. No momento em que se faz um movimento para retirar um benefício específico, os afetados se mobilizam fortemente. Uma vez que você instala determinados benefícios fica muito difícil de retirar. E aí me lembra uma outra coisa importante que está acontecendo nesse governo. Até hoje, toda a regra de aumento real do salário mínimo tinha data para acabar. Agora, como vai ser uma regra permanente, para acabar, você vai ter de ir ao Congresso e aprovar o fim dela. Fica politicamente muito mais difícil. É um passo bastante equivocado desse governo.

O ganho real do salário mínimo virou um ponto muito sensível na última campanha. Como combinar, então, a questão fiscal e social?

O aumento do salário mínimo é uma forma ineficiente de diminuir a pobreza. Tem que tirar isso da cabeça. O aumento é muito bom para quem está empregado no setor formal e tem sua remuneração referenciada ao salário mínimo. Essas pessoas obviamente ganham. Mas quem é trabalhador pobre, de baixa produtividade, e que não consegue produzir o equivalente a um salário mínimo não vai ser empregado. Cada vez que você dá aumento real do salário mínimo, você joga para informalidade a massa dos pobres menos produtivos e capacitados que não consegue entrar no mercado de trabalho formal. Além disso, com a vinculação de benefícios sociais e previdenciários ao salário mínimo, existe um custo fiscal extremamente elevado com outras consequências sobre a economia como, por exemplo, o aumento da taxa de juros de equilíbrio, que trava o crescimento e impede a absorção de mais pessoas no mercado de trabalho. Essa é, claramente, uma agenda de trabalhadores sindicalizados com empregos garantidos, que são uma parte importante da base de apoio do partido do governo.

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O melhor, então, seria o fortalecimento de programas focalizados?

Claro, programas focalizados. E, infelizmente, o próprio Bolsa Família também perdeu muito da focalização. Quando lá no governo do Bolsonaro fizeram o valor mínimo de R$ 600 por família e gerou aquele boom de famílias unipessoais, você perdeu tremendamente a capacidade de focalizar nas famílias mais pobres e aumentou o custo do programa do governo.

Para além dessa questão fiscal, qual é a avaliação do sr. desses primeiros meses de governo?

O grande legado que este governo tem a deixar é a reforma tributária. Se ele conseguir passar a reforma em boas condições, vai ser um grande legado. Vai ser uma mudança muito importante e com impacto de médio e longo prazo. Esse é o carro-chefe. Na parte de gestão fiscal, infelizmente, deixa a desejar com esse arcabouço fiscal inconsistente. Nas outras áreas de política pública, a gente ainda tem uma interrogação grande do que vai sair na educação. Há muita esperança de melhoria na gestão da educação, mas ainda é cedo para ter resultados. E me preocupa muito a relação entre o Congresso e o Poder Executivo. Como eu tenho falado há algum tempo, eu acho que está havendo um desbalanceamento de poder muito forte. O Congresso tem adquirido muitas prerrogativas, muito espaço dentro do Orçamento sem ter a responsabilização política. Fica um processo desequilibrado em que o Poder Executivo acaba sendo responsável pelo resultado das políticas públicas, e o Congresso tem uma interferência muito grande, seja por emendas parlamentares, por derrubada de vetos presidenciais ou por rejeitar medidas provisórias.

Como lidar com esse problema?

É um cenário bastante difícil de mudar porque você tem de propor medidas para tirar o poder do Congresso. Em dois governos em que os presidentes tinham pouca habilidade política e confrontaram o Congresso, a resposta (dos parlamentares) foi tomar decisões que retiraram o poder desses governos. Estou falando do governo Dilma e Bolsonaro. O governo Dilma acabou sofrendo o impeachment, e o governo Bolsonaro acabou se submetendo, num segundo momento, ao Congresso.

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