‘Os governos ficaram viciados em consultorias e pararam de investir em pessoal’, diz economista

Professora italiana defende investimento em servidor e é contra regras que limitam gasto público

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Foto: Dida Sampaio/Estadão
Entrevista comMariana MazzucatoEconomista, professora do University College London

Professora do University College London, a italiana Mariana Mazzucato foi nomeada pela revista GQ britânica como uma das 50 pessoas mais influentes da Grã-Bretanha e descrita pelo New York Times como uma economista a quem recorrem líderes mundiais, como o Papa Francisco, e executivos de grandes empresas, como Bill Gates. No Brasil, ela mantém proximidade com nomes do PT.

Em 2015, foi a Brasília para se reunir com a então presidente, Dilma Rousseff, e os ministros da época Joaquim Levy (Fazenda), Aldo Rebelo (Ciência e Tecnologia), Aloizio Mercadante (Casa Civil), Jaques Wagner (Defesa), Renato Janine (Educação) e Nelson Barbosa (Planejamento). Agora, ela deve participar, de forma online, de um novo seminário do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), previsto para este mês, e conversa com a ministra da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos, Esther Dweck, para desenvolver um trabalho de consultoria.

“Estamos falando de criar um programa de treinamento para o funcionalismo público (....). Temos professores que são brilhantes e estão na fronteira dessa questão do repensar a burocracia, para que servidores possam ser criativos, flexíveis e ágeis, cumprindo as metas de desenvolvimento sustentável”, disse ela, por telefone, ao Estadão.

O trabalho de consultoria, porém, é alvo de críticas do novo livro de Mazzucato. The Big Con: How the Consulting Industry Weakens Our Businesses, Infantilizes Our Governments, and Warps Our Economies (O grande golpe: como a indústria de consultoria enfraquece nossos negócios, infantiliza nossos governos e distorce nossas economias, em tradução literal), escrito em parceria com Rosie Collington, foi lançado neste ano nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Alemanha.

Segundo a professora, a crítica feita na obra diz respeito apenas às grandes consultorias. “Meu foco é a indústria de consultoria, as grandes empresas. Elas não têm interesse em fortalecer governos. Elas precisam de contratos. O modelo de negócios é ir de um contrato para outro.”

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Mazzucato afirma que os governos estão se tornando dependentes de consultorias como McKinsey, Bain e BCG, além das grandes auditorias como Deloitte, PwC, EY e KPMG, o que inibe investimentos na capacitação do funcionalismo. Diz também que, “se houver um serviço público forte, com formação e capacidade para pensar um trabalho criativo, dinâmico, flexível e ágil, todos os problemas (de um país) serão mais fáceis de resolver”.

Confira trechos da entrevista.

Por que escrever sobre as consultorias?

Venho estudando o Estado há anos e percebendo que ele está enfraquecendo. Um dos motivos para isso é a atuação das consultorias. Não estou falando de consultores individuais. Meu foco é a indústria de consultoria, as grandes empresas. Elas não têm interesse em fortalecer governos. Elas precisam de contratos. O modelo de negócios é ir de um contrato para outro. Os governos não perceberam que isso os prejudicava e fazia com que acabassem não investindo em seu pessoal. Eles ficaram viciados em consultorias. Em parte, isso aconteceu por causa do risco. Os governos têm medo de errar. Eles pararam de investir em pessoal e agora precisam da ajuda de terceiros, mas, se esses terceiros não têm interesse em fortalecer o governo, temos um problema. Estou falando da necessidade de investir no serviço público, na capacidade administrativa. Assim como as empresas sabem que precisam investir na capacitação de funcionários, o mesmo deveria acontecer nos governos. Como temos essa falsa visão de que o governo não cria valor, de que é apenas um regulador ou um reparador de falhas do mercado, não haveria justificativa para investir.

Recentemente, a sra. escreveu que os governos estão percebendo os perigos de confiar demais em consultorias. Quais são esses perigos?

Houve muitos escândalos. Na Austrália, a McKinsey recebeu US$ 6 milhões para fazer para o governo uma modelagem de descarbonização da economia e cometeu todos os tipos de erros. No Reino Unido, a Deloitte fez um serviço de testar e rastrear a covid que foi um fracasso. Na África do Sul, houve um grande escândalo (em um caso de corrupção) no trabalho de uma consultoria (McKinsey) para a (estatal de energia elétrica) Eskom. (Procuradas, a McKinsey não quis se pronunciar sobre o assunto e a Deloitte Brasil informou não comentar casos de outras firmas-membro da organização pelo mundo).

Os governos estão acordando para o fato de que as consultorias são um problema porque eles estão confiando demais nelas. O subtítulo do livro é a “infantilização do governo”. Essa é uma expressão de um político conservador britânico (Theodore Agnew, ministro de Eficiência e Transformação no governo de Boris Johnson) que percebeu quanto o governo estava gastando em consultoria no Brexit e na pandemia. Ele disse que, se continuarmos fazendo isso, vamos infantilizar o serviço público. Os servidores não vão aprender fazendo. Há outro problema: os erros das consultorias. O que o livro diz é que esses erros não são uma surpresa, porque as consultorias não têm experiência em muitas áreas em que atuam. E elas fazem isso mesmo assim porque há uma grande insegurança no governo e nos negócios, que precisam passar políticas incômodas para seus acionistas. Políticos e empresas preferem que alguma outra pessoa erre no lugar deles. Se o político erra, pode ser preso ou parar na primeira página dos jornais.

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Assim como empresas sabem que precisam investir em funcionários, o mesmo deveria acontecer nos governos

Para a sra., as consultorias podem ser úteis de alguma forma?

Elas podem ser funcionais. Mas, primeiro, os conflitos de interesse precisam ser públicos. Depois, deve haver incentivos para o cliente se fortalecer. Deveria haver, nos contratos, a possibilidade de testar se a consultoria tornou o cliente, seja o governo ou uma empresa, melhor. Assim, não seria preciso contratar uma consultoria novamente após ela prestar um serviço. Também é importante que os cidadãos saibam quanto o governo está gastando com consultoria e quais outros contratos as consultorias têm. Por exemplo, se uma consultoria faz uma estratégia climática para a Austrália, os cidadãos devem saber que a consultoria também trabalha para todas as empresas de petróleo do país. Mas devo repetir que não culpamos todas as consultorias. Culpamos a indústria. É um modelo de negócios que tem sido impulsionado pela maximização do lucro no curtíssimo prazo. Não estamos falando de pessoas como uma professora, uma enfermeira ou um acadêmico que dá consultoria com base em sua expertise.

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Qual a diferença? A sra. mesmo dá consultorias...

Eu escolhi ser acadêmica. Posso elevar meu rendimento dando palestras ou consultorias. Mas faço isso em áreas que estudo há 20 anos, como estratégia industrial. No livro, falo da grande indústria de consultoria, que não tem incentivo para fortalecer o cliente. Quando você traz algo que agrega valor e quando o governo e as empresas estão realmente obtendo algo de sua profunda experiência, é muito mais difícil criticar. Mas há casos como o da Deloitte, que estava ganhando mais de um milhão de libras por dia com o governo do Reino Unido durante a covid. Eles estavam fazendo rastreamento (de pessoas contaminadas com o vírus) sem ter experiência nisso. O governo é o culpado. Como pode contratar uma empresa que não tem expertise em testar e rastrear? Não estamos dizendo que os governos devem fazer tudo sozinhos. Começamos o livro com exemplos em que os governos costumavam usar consultorias de modo periférico. Agora eles as usam de modo central. Isso é um problema.

Mariana Mazzucato no Palácio do Planalto em 2015, quando se reuniu com ministros do governo Dilma  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em 2019, a sra. falou que a esquerda estava perdendo em todo o mundo porque focava muito em redistribuição e pouco em criação de riqueza. Ainda acha isso? Como o governo brasileiro deve trabalhar para criar riqueza?

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A esquerda focou muito, historicamente, em redistribuição. Isso não significa que não se deva trabalhar a redistribuição, mas pode não haver nada para redistribuir se não houver criação de riqueza. O governo precisa usar as diferentes ferramentas que têm, como compras e financiamentos, para atrair o máximo de investimento possível das empresas. Assim, pode alcançar ambições ousadas, como neutralidade em carbono ou se preparar para a próxima pandemia. São desafios que exigem muita inovação do setor privado, e o governo precisa saber como direcionar isso. Isso é sobre criação de riqueza, coinvestir, compartilhar riscos e recompensas, criar ferramentas - como política de compras orientada para resultados - para promover a inovação. A esquerda precisa parar de pensar que o Estado está aí para, na melhor das hipóteses, regular, redistribuir e administrar para o bem comum. Na passagem anterior de Lula pela presidência, fiquei impressionado como o Brasil se preocupou tanto com inovação como com redução de pobreza. Por exemplo, o BNDES colocou condições no programa de empréstimo para o setor farmacêutico e biotecnológico. Houve garantias de que os recursos fossem direcionados a investimentos para resolver problemas que afetavam os mais pobres. É muito importante juntar crescimento impulsionado por inovação e crescimento inclusivo, certificando-se de que as recompensas da inovação beneficiem o maior número possível de pessoas.

A sra. mencionou o BNDES, mas há muitas críticas à atuação do banco durante os governos anteriores do PT. O BNDES costumava subsidiar grandes empresas e emprestar dinheiro a taxas inferiores às do mercado. A sra. já aconselhou a ex-primeira-ministra escocesa Nicola Sturgeon nessa área. Para a sra., qual o papel de um banco de desenvolvimento?

Primeiro, o papel de um banco público é ser anticíclico. Em segundo lugar, você não deve apenas dar subsídios, especialmente para as grandes empresas. Você deve sempre criar um programa que ajude a direcionar uma economia, por exemplo, a ser mais sustentável. Isso significa também trazer mais empresas, não apenas as grandes, para promover essa transição. As pequenas empresas precisam de apoio extra porque são pequenas, mas não só por isso. Devemos escolher as que estão dispostas, não as vencedoras. Além disso, se um governo não tem estratégia, os bancos públicos não servem para nada. Na Itália, temos um banco público e ele apenas dá subsídios, sem nenhuma condicionalidade. Na Alemanha, o banco de desenvolvimento tem colocado fortes condições, por exemplo, aos empréstimos concedidos à indústria siderúrgica. Hoje, a Alemanha tem o setor siderúrgico mais verde do mundo.

Quais seriam suas recomendações para o Lula na área econômica?

Meu comentário seria que vivemos um momento do capitalismo onde a participação do trabalho na renda global é a mais baixa de todos os tempos, e a participação dos lucros é a mais alta. Temos uma crise climática e mais pandemias chegando. Portanto, essa é uma oportunidade de ter uma estratégia de investimento em inovação para lidar com esses problemas: mudança climática, desigualdade na saúde, exclusão digital. Um governo progressista precisa fazer o que fala e mostrar que sabe usar o poder para trazer o setor privado e o setor público para enfrentar, com um plano concreto, esses desafios. Isso significa repensar a estratégia industrial, a política de inovação, os bancos públicos e o orçamento orientado para resultados para atingir objetivos concretos que afetam os cidadãos. Outra coisa é garantir que a capacidade da administração pública seja forte. Se houver um serviço público forte, com formação e capacidade para pensar um trabalho criativo, dinâmico, flexível e ágil, todos os problemas serão mais fáceis de resolver. Também precisamos de negócios funcionais, e não de negócios extrativistas. Precisamos de empresas que estejam dispostas a investir e não apenas obter subsídios. Esse tem de ser outro foco.

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Uma questão importante no Brasil é essa do serviço público. Muitos especialistas apontam a necessidade de o País realizar uma reforma administrativa. Como a sra. enxerga esse tema?

Não acho que o número de servidores importa. A maioria dos funcionários públicos nem ganha muito. O problema ocorre quando muita gente que trabalha no governo não é treinada, quando os servidores não são ágeis nem flexíveis. É preciso ter um sistema que proteja as pessoas que trabalham no governo, para não serem demitidas por capricho. Também tem de ter métricas que garantam o desempenho das pessoas, mas não metas que deixam as pessoas deprimidas. Há muito excesso de gestão de trabalhadores do setor público no Reino Unido. Mas sistemas que não têm gerenciamento de desempenho e onde, assim que você entra no setor público, você está protegido para sempre, não importa o que você faça, estão errados. Precisamos de governos capazes e dinâmicos e, claro, de gestão do trabalho para que os servidores aceitem a experimentação e o treinamento. Eles têm de estar sempre na fronteira do conhecimento. Isso significa que o setor público também precisa estar disposto a passar por treinamento.

Precisamos de empresas que estejam dispostas a investir e não apenas obter subsídios

A sra. costuma criticar políticas de austeridade. Hoje a principal discussão econômica no Brasil é sobre uma nova regra para limitar os gastos públicos. O que acha de adotar esse tipo de regra em um país como o Brasil, cuja relação dívida/PIB deve chegar a 88% este ano?

Não existe um número mágico para essa relação. O que importa é saber por que o déficit está crescendo. É porque você está apenas distribuindo dinheiro e não fazendo nada acontecer na economia? Ou você está investindo em todas as áreas que aumentam a produtividade, o crescimento de longo prazo e a inovação? Nesses casos, mesmo que o déficit suba, o crescimento de longo prazo também aumenta. Aí, a relação dívida/PIB fica sob controle. Em países obcecados por austeridade, temos frequentemente queda no déficit, mas aumento na relação, porque o denominador é determinado pelos investimentos nos setores público e privado. Não acho que limitar os gastos públicos funciona. Devemos prestar atenção em como e no que o governo está investindo e garantir que sejam gastos impulsionadores de crescimento econômico de longo prazo, que expandem a capacidade produtiva, mas de uma maneira que tornem a economia mais inclusiva e sustentável. Sustentabilidade requer financiamento público, que no curto prazo pode parecer um aumento de gastos, mas no longo prazo dá competitividade ao país. Isso significa também que haverá mais receita tributária para o governo. Ficar obcecado com um número ou colocar limites artificiais é ideologia. Não funciona para o crescimento econômico nem para a estabilidade de um sistema político.

A sra. pretende colaborar com o governo brasileiro?

Estamos falando de criar um programa de treinamento para o funcionalismo público, talvez com o Ministério da Gestão. Sou uma acadêmica e venho escrevendo há muito tempo sobre o Estado empreendedor. Temos (no University College London) um mestrado em administração pública, mas também fazemos cursos para governos quando eles querem. Temos professores brilhantes que estão na fronteira dessa questão do repensar a burocracia para que servidores possam ser criativos, flexíveis e ágeis, cumprindo as metas de desenvolvimento sustentável. Valor público, orientação para resultados, parcerias público-privadas simbióticas e não parasitárias, compras públicas que possam ajudar pequenas empresas a crescer em vez de apenas dar subsídios a grandes empresas. Tudo isso faria parte do treinamento, de uma nova mentalidade para o governo moldar o mercado, não apenas regulá-lo.

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