Imposto unificado foi bem-sucedido em 169 países e só um desistiu dele, diz ‘padroeira’ do IVA

Professora Rita De La Feria, da Universidade de Leeds, afirma que brasileiro não sabe quanto paga de imposto e que Imposto sobre Valor Agregado vai trazer transparência aos preços

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Atualização:
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Entrevista comRita De La FeriaProfessora de Direito Tributário da Universidade de Leeds, na Inglaterra

BRASÍLIA – Apelidada por tributaristas brasileiros defensores da reforma tributária de “padroeira” do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), a portuguesa Rita De La Feria diz que o novo imposto em discussão no Brasil é “amigo” das exportações e dos investimentos. Ou seja, é um imposto que impede que no preço do produto exportado esteja embutido o custo da tarifa. Na sua avaliação, a economia do Brasil está travada em larga medida por causa da tributação das exportações.

Rita é professora de Direito Tributário na Universidade de Leeds, na Inglaterra, e já participou de reformas tributárias em todo o mundo, ajudando na redação de várias legislações tributárias em países como Portugal, Turquia, Uzbequistão, Timor Leste, Angola e São Thomé e Príncipe.

Segunda ela, a Malásia é o único país do mundo que desistiu do IVA dentre 170 países que já adotaram o modelo. A criação do IVA está prevista na reforma tributária em tramitação no Congresso brasileiro para substituir cinco tributos atuais.

A professora Rita De La Feria, da Universidade de Leeds, participa da Comissão Mista Temporária da Reforma Tributária, no Congresso Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Em entrevista ao Estadão, a especialista afirma que o brasileiro não sabe quanto paga de imposto e que o IVA vai trazer transparência ao preço. Ela contesta as críticas de que os preços vão aumentar com a aprovação da reforma. “Essa presunção de que os preços vão aumentar significaria dizer que o vosso sistema de agora tributa menos, o que neste momento é impossível dizer”, afirma. Ela afirma que os setores não têm o que temer com o novo imposto, que no Brasil será chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Ela defende uma alíquota única e afirma que benefícios são dados não por razões técnicas, mas porque há setores com poder muito grande, que fazem uma pressão muito grande. “Não tem nada a ver com justiça social”, argumenta. A negociação de alíquotas diferenciadas para alguns setores tem pautado a discussão da reforma no Brasil. Para Rita, o sistema de alíquota única funciona muito melhor do que o europeu, que tem alíquotas múltiplas. A tributarista já foi ouvida em audiência pública da Comissão Mista da Reforma Tributária do Congresso, em 2020, e retorna ao Brasil em maio para participar de um congresso internacional de direito.

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Por que é tão difícil fazer a reforma tributária no Brasil?

É difícil fazer reforma em todos os países. Mas o caso do Brasil é mais complexo por três dimensões. A primeira: é um país grande, onde há muitos grupos com interesses divergentes. Depois, é o fato de vocês terem uma estrutura federativa que complica o processo de negociação e dificulta se chegar a um acordo. E, finalmente, é o fato de o Brasil ter um sistema ruim há muitos anos. É aquilo que em inglês chamamos de “path dependence”, um sistema arraigado, cimentado, com interesses muito estabelecidos. Remover os benefícios tributários que já existem é difícil. É um sistema que criou maus hábitos com grupos que estão habituados a este tipo de tributação e, portanto, vão resistir a qualquer mudança.

A reforma tributária em tramitação prevê a criação do IVA, adotado em vários países. Os oposicionistas da reforma dizem que o IVA é um modelo velho e que será abandonado em breve. Por que o Brasil precisa mudar para o IVA?

O IVA é um fenômeno tributário quase inédito. Foi inventado no princípio do século passado e implementado pela primeira vez nos anos 1950. Ao invés dos impostos sobre a renda, que já existem há séculos, o IVA é um imposto relativamente recente e neste período espalhou-se no mundo inteiro. 170 países no mundo já adotaram o IVA. Não é por acaso. É porque ele tem qualidades técnicas que significam que é um imposto superior aos outros impostos. Mais eficiente, fácil de coletar e que não cria distorções no mercado. É um imposto amigo das exportações. Ou seja, é um imposto que permite a exportação não onerada. Os bens saem do país sem nenhum imposto carregado. Só há um único país no mundo que desistiu do IVA dentre os 170: a Malásia.

Por quê?

O IVA é um imposto não cumulativo e a Malásia começou a se recusar a dar o crédito. Isso matou o imposto. E, depois, quando percebeu o erro, já não tinha dinheiro para pagar os créditos. Foi o único país na história do IVA que o aboliu. Nos últimos cinco anos, vários países introduziram o IVA. É o caso da Angola (2018), São Tomé e Príncipe (2021) e seis países do Médio Oriente. Portanto, mesmo os poucos que ainda não tinham IVA começam a introduzi-lo. Já não há quase países sem IVA.

Não procede, então, a crítica de que o Brasil está indo para um caminho que outros países estão prestes a abandonar em razão do mundo digital, da tributação do e-commerce?

O IVA é um imposto ‘tão bom, tão bom’ em matéria digital, que, quando houve agora a discussão da reforma da tributação das empresas na OCDE (big techs, imposto digital), o princípio que eles propuseram, no contexto do pilar 1 foi o princípio de tributação no destino. O IVA é tão bom para as transações digitais que até os outros impostos estão a copiar os seus princípios para a tributação sobre a renda.

É possível fazer a ponte do IVA com a nova realidade de transações internacionais pelo mundo digital, as big techs?

Dá, sim. É isso mesmo que a OCDE está a propor. A Europa introduziu reformas muito extensas para adaptar o sistema do IVA às transações digitais com sucesso enorme. Falando com pessoas da Comissão Europeia, a indicação que tenho é de que as receitas provenientes das transações digitais através do IVA superaram em muito as expectativas.

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Quais são os princípios básicos do IVA?

É um imposto sobre o consumo geral, portanto, em princípio aplicado a todos os bens e serviços. É coletado numa forma faseada, nos vários elementos da cadeia de produção, de forma que minimiza o risco de sonegação e perda de receita. É um imposto muito eficaz, que permite à administração tributária coletar com facilidade, sem interferir nas decisões dos consumidores, dos investidores etc.

No Brasil, há um debate muito grande de que a implantação do IVA vai gerar alta dos preços e inflação porque, para alguns setores, a alíquota subirá muito. Esse é um risco ou o período de transição mais longa pode ajudar?

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É preciso dizer que essa presunção de que os preços vão aumentar significaria dizer que o vosso sistema de agora tributa menos, o que, neste momento, é impossível dizer. O sistema brasileiro é tão complexo que não há ninguém que possa dizer com certeza quanto tem de imposto em cada produto. É praticamente impossível neste momento calcular. O IVA vai trazer uma transparência ao preço. Vai dizer o preço é “x” sem imposto e “x mais” com imposto. Portanto, todos os consumidores vão saber ao certo quanto é que pagam. Neste momento, a fatura pode dizer o que quiser, mas o brasileiro não sabe quanto paga.

Há empresas do setor de serviços que reclamam que vão pagar uma alíquota de 25%...

O problema é que eles não sabem quanto é que está embutido no preço de imposto, não sabe quanto de imposto estava para trás. Nenhum prestador de serviço sabe quanto pagou de imposto quando comprou cadeiras, computadores... Há muita distorção de mercado, da cadeia produtiva no Brasil.

Por que um dos princípios básicos do IVA é a fixação de alíquota única?

A adoção de alíquotas múltiplas foi uma medida adotada na Europa nos anos 60, quando sabíamos ainda muito pouco do imposto. Achava-se que era a melhor forma melhor de proteger alguns setores, proteger alguns produtos consumidos pelos mais pobres. Hoje sabemos que não é verdade. Nos anos 80, a Nova Zelândia implementou um IVA com uma alíquota única e sem isenções. Hoje, sabemos que esse sistema funciona muito melhor do que o sistema europeu, que tem alíquotas múltiplas. O sistema europeu com alíquotas múltiplas cria muitas distorções, tendo benefícios muito dúbios para o consumidor.

Qual a razão?

Primeiro porque as descidas de impostos muitas vezes não são refletidas nos preços. Segundo porque os consumidores mais ricos, com mais capacidade financeira, se beneficiam muito mais desse tipo de benefícios, uma vez que consomem mais, mesmo de produtos essenciais. Terceiro, os tribunais estão cheios na Europa de situações (litígios) de alíquotas múltiplas. A forma mais eficaz de proteger certos setores ou partes da população é dar uma ajuda direta.

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Os países da Europa tributam o IVA com quantas alíquotas?

Dependendo do país, tem duas e cinco.

No Brasil, é praticamente certo nas negociações no Congresso que haverá alíquotas diferenciadas. O que se discute é quantas. Os setores de educação, saúde, agro, transporte e tantos outros defendem tratamento diferenciado.

Eu espero que não haja. O problema é que muitas vezes os benefícios são dados não por razões técnicas, mas porque há setores com poder muito grande que fazem uma pressão muito grande para obter certos benefícios tributários. Verifica-se muitas vezes na discussão das alíquotas múltiplas, também aqui na Europa. Não tem nada a ver com justiça social. Eu espero sinceramente que haja força no Brasil para resistir a essa pressão, porque no fundo é dar benefícios aos poucos, que gritam mais, em detrimento de muitos.

A sra. é a favor do cashback (instrumento de devolução do imposto) que está sendo discutido no Congresso para a área social, educação e saúde?

Sou sim. É a melhor forma de ajudar os mais carentes. Não faz sentido que os que estão no grupo dos 10% com maior renda recebam benefício tributário através de alíquotas reduzidas. Se quisermos ajudar os mais carentes, não vale a pena dar alíquota reduzida para todos. Devemos ajudar especificamente e apenas quem precisa.

O ambiente no Brasil hoje é mais favorável para aprovar a reforma tributária?

O governo Bolsonaro perdeu o interesse na reforma tributária. Espero que agora se consiga avançar. Estou a falar como quem vem de fora, não sou brasileira, mas parece-me que o governo Lula tem mais capital político e tem pessoas à volta que são apoiadores. Penso também que a maturidade da discussão é muito maior do que há três anos. As pessoas sabem do que estão a falar.

Como especialista e defensora da reforma, o que diria às empresas que estão resistentes?

Diria que eles não sabem quanto é que estão a pagar de impostos. E que provavelmente pagam muito mais do que pensam. Diria também que, se a economia brasileira avançar e se desenvolver com a reforma, todos se beneficiam, incluindo o setor de serviços e o setor agrícola.

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Como enfrentar a resistência do setor agrícola?

O setor agrícola tem muita a se beneficiar com a reforma, principalmente por causa das exportações. Os produtos que saem do Brasil têm muito imposto embutido. A economia do Brasil está travada em larga medida por causa do problema da tributação das exportações. O Brasil tem um setor agrícola riquíssimo, tem muitas possibilidades de exportação. Uma reforma tributária vai beneficiar a expansão desse setor para fora. Quanto ao custo de conformidade (pagamento dos tributos) não é um problema só do Brasil. É um problema para o setor agrícola em geral, acontece em muitos países do mundo. A forma melhor de lidar com isso é por meio do auxílio ao pagamento de impostos. Pode ser em lojas específicas em zonas agrícolas, onde eles podem fazer os seus impostos. E pode ser através da prestação de softwares específicos em que eles podem implementar em seus próprios computadores. O Brasil pode olhar para as experiências dos outros países, onde se tem feito muito nesta área e implementar.

A reforma tributária terá um efeito importante no desenvolvimento?

O que eu posso dizer é que um sistema tributário tão complexo como o do Brasil tem um impacto muito grande na economia. A economia brasileira está completamente distorcida pelo sistema tributário, principalmente nas exportações. Eu não conheço mais nenhum outro país no mundo que tributa as exportações.

Por que o Brasil acaba tributando as exportações hoje?

Os impostos no Brasil não devolvem os créditos e, portanto, são cumulativos. Isso quer dizer na prática que, quando um brasileiro compra um produto qualquer, ou quando é exportado para fora do País, dentro do preço vai uma quantidade grande de imposto. Uma grande parte do preço é o imposto. Quando esse elemento desaparecer com a reforma, na exportação o produto sai imediatamente do Brasil mais barato, porque vai sem o imposto.

É verdade que os tributaristas brasileiros estão com medo e eu compreendo esse receio porque o Brasil tem décadas de cumulatividade de impostos. Mas o IVA funciona bem em todos os outros países com créditos e não cumulatividade. É claro que é preciso ter cautelas para que não haja cumulatividade. Mas olhando para a experiência internacional, os brasileiros não têm nada a recear, desde que a lei seja bem bem desenhada. E não há motivo para pensar que não será.

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