‘Lula é intervencionista na economia, é meio getulista’, diz Samuel Pessôa

Na avaliação do pesquisador do Ibre/FGV, o presidente Lula vive uma situação de autoengano, o que o leva a repetir políticas equivocadas, de maior intervenção do Estado na economia

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Foto do author Luiz Guilherme  Gerbelli
Atualização:
Foto: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO
Entrevista comSamuel Pessôapesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, Samuel Pessôa avalia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vive uma situação de autoengano, o que o leva a repetir políticas equivocadas, de maior intervenção do Estado na economia.

Em 2024, esse caminho tem ficado claro. O governo tentou emplacar o ex-ministro Guido Mantega no comando da Vale e abriu uma crise com o não pagamento de dividendos extraordinários na Petrobras. Em entrevista ao SBT, Lula ainda defendeu que os bancos públicos reduzam os juros para forçar uma redução por parte de outros participantes do mercado e voltou a criticar o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

De acordo com Pessôa, a origem dessa insistência numa política econômica equivocada tem a ver com a construção de um argumento “não verdadeiro” criado por Lula e o PT, de que a turbulência econômica da década passada nasceu de uma crise política, depois que o candidato à Presidência da República pelo PSDB, Aécio Neves, questionou o resultado da eleição de 2014. Para o pesquisador, portanto, não se “aprendeu” com os equívocos do passado.

“O Lula é intervencionista. É meio getulista nesse sentido. A impressão que eu tenho é que ele está autoenganado. O Lula construiu uma teoria para explicar a grande crise brasileira do petismo, que é a crise de 2014 a 2016. Não só o Lula, mas o petismo construiu uma narrativa”, diz. “A narrativa petista, se eu quiser colocar em termos muito simples, é a de que a crise (lá atrás) foi produzida pelo Aécio.”

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“O efeito colateral dessa dinâmica é que hoje eles, de fato, acreditam que nada do que aconteceu é fruto das políticas econômicas que eles praticaram e, portanto, se sentem à vontade para voltar a praticar a mesma política na Petrobras, etc.”

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Como o sr. avalia esses movimentos do governo de buscar um intervencionismo maior em empresas como Petrobras e Vale?

O Lula está repetindo o que ele já tinha feito. Há uma interpretação de que os erros de política econômica do petismo foram cometidos pela Dilma, mas essa interpretação é errada. Tem uma coluna que eu escrevi há alguns meses mostrando que a deterioração da qualidade da política econômica começou no Lula 2. A Dilma reforçou isso e ampliou. E um dos itens que constituem esse pacote de erros de medida de política econômica cometidos pelo petismo foi o intervencionismo. A intervenção do Estado no funcionamento da economia. É a crença de que o Estado consegue liderar o processo de desenvolvimento. E o Lula é intervencionista. É meio getulista nesse sentido. A impressão que eu tenho é que ele está autoenganado. O Lula construiu uma teoria para explicar a grande crise brasileira do petismo, que é a crise de 2014 a 2016. Não só o Lula, mas o petismo construiu uma narrativa.

Qual é essa narrativa?

A narrativa petista, se eu quiser colocar em termos muito simples, é a de que a crise foi produzida pelo Aécio (candidato do PSDB derrotado na eleição presidencial de 2014). O Aécio não aceitou o resultado eleitoral, e o fato de o Aécio não ter aceitado o resultado eleitoral produziu uma crise política, e a crise econômica é consequência dessa crise política. Esse foi o argumento que o petismo criou para justificar para si mesmo o desastre que aconteceu no País. Evidentemente, esse argumento que o petismo criou é muito conveniente, porque desresponsabiliza quem estava com a caneta da Presidência da República entre 2003 e meados de 2016 por qualquer coisa que tenha acontecido na economia e na sociedade. O argumento é meio esdrúxulo, principalmente com o sistema político presidencialista, em que o presidente é forte, mas é um argumento que atende aos interesses do petismo e funciona como um autoengano.

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Na avaliação do sr., em que sentido esse tipo de argumento funciona?

Quem cria o argumento sabe que não é verdadeiro, mas, conforme o tempo vai passando e o argumento vai sendo repetido, ele vai adquirindo uma vida própria e uma veracidade na cabeça daquelas pessoas que inventaram o argumento. E elas mesmas tinham o entendimento de que as justificativas eram meio capengas, mas, com o distanciamento dos fatos, o argumento vai adquirindo uma veracidade. É isso que eu chamo de autoengano. E o efeito colateral dessa dinâmica é que hoje eles, de fato, acreditam que nada do que aconteceu é fruto das políticas econômicas que eles praticaram e, portanto, se sentem à vontade para voltar a praticar a mesma política na Petrobras, etc.

A Petrobras foi usada como um instrumento de política de desenvolvimento econômico. Nas minhas entrevistas ou nos meus escritos, eu nunca enfatizei muito a questão da corrupção, porque sempre achei que a corrupção era o menor dos problemas. O problema maior foi o erro do projeto de desenvolvimento econômico. Achar que é possível sustentar o desenvolvimento de um país a partir das ações de uma grande petroleira e, com isso, alavancar uma indústria naval, uma indústria de plataformas, de refino. O resultado disso a gente viu. A petroleira virou a mais endividada do mundo e passou por uma grande crise. O que está acontecendo é uma expressão do fato de o Lula acreditar nas próprias teses.

E agora é possível voltar com essas políticas?

Eu não sei se ele vai ser reeleito, não sei com que intensidade vai conseguir implementar a política dele, porque tivemos a Lei das Estatais, por exemplo, com maior governança. Eu acho que a sociedade criou alguma imunidade para esses erros de política econômica. Não está claro para mim qual vai ser o espaço institucional que o presidente Lula terá para implementar essas políticas que já deram errado no passado e que certamente darão errado agora, mas tudo sugere que ele vai tentar repetir as mesmas políticas que fez.

O ministro Haddad não pode ser um freio? Qual vai ser o limite para o governo se seguir com esse tipo de política?

Certamente o Haddad tem sido um freio. Tem sido um ponto de racionalidade do governo Lula. Eu não consigo responder a essa pergunta. A gente vai ter de ver os fatos. Me parece que os limites serão dados pela opinião pública. No ciclo petista anterior, não havia essa tensão, esse escrutínio da sociedade de possíveis erros de política econômica dessa natureza. A sociedade está escaldada. Sabe que a crise econômica não foi culpa do Aécio. Quem acha isso são os petistas.

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O presidente voltou a falar em redução de juro pelos bancos públicos. A leitura que o sr. faz é de uma política que segue o mesmo caminho de uma intervenção na Petrobras?

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É idêntico. A política de baixar juros na marra foi tentada no primeiro mandato da presidente Dilma. E tudo o que os bancos privados querem é que os bancos públicos façam isso. Quando o setor público faz esse tipo de ação e vem um ciclo de queda da economia brasileira, os privados saem limpinhos porque eles conseguiram passar todos os ativos podres para os bancos públicos. Se o Lula implementar esse tipo de política, vamos ver novamente uma dinâmica que já vimos desde os anos 80. Já tentamos tudo isso no passado e não deu muito certo.

Quais são as consequências práticas dessas tentativas de intervencionismo do governo?

A consequência é que o investimento privado vai cair. Esse tipo de ação mostra um tipo de capitalismo de compadrio, um tipo de capitalismo de ausência de regras e instituições de longo prazo. É um tipo de capitalismo em que o rei pode intervir nesse ou naquele setor ao bel-prazer dele. É possível que esse tipo de capitalismo funcione na China. A China poupa 45% do PIB, tem um monte de características diferentes da nossa. No Brasil, a gente sabe que esse tipo de capitalismo não funciona. Já tentamos inúmeras vezes.

O sr. já apontou que os erros de políticas econômicas vieram do segundo governo Lula, mas parece que se esperava um governo mais pragmático depois de uma eleição em que o PT formou uma frente ampla. Tem uma frustração?

Eu acho que tem uma frustração, sim. A questão democrática é mais importante do que isso e todos os fatos que vieram a público mostraram que, de fato, o Bolsonaro e seu grupo político fizeram o que foi possível para abalar e desestabilizar as instituições democráticas do País. Eu acho que o Lula ter ganhado é bom. O que me entristece é que o Lula é um homem muito inteligente, um cara superdotado, a maior liderança popular da nossa história. Mas se a melhor liderança que a gente produziu não aprende com os fatos, isso é muito ruim para o futuro do País. Esse é o entristecimento. A insistência do Lula nesses erros é uma expressão da incapacidade da nossa sociedade em aprender. E uma sociedade que não aprende não anda para frente. Eu reconheço na insistência do presidente Lula, que é uma pessoa com muitas qualidades, a dificuldade que nós coletivamente temos de aprender com os nossos mesmos erros e avançar.

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