Argentina é viciada em dólar, mas dolarização não é fácil de ser implementada, diz Schwartsman

Economista explica diferenças entre momento atual do país vizinho e o vivido pelo Brasil na década de 1980

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Por Redação
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Foto: Gabriela Biló/Estadão
Entrevista comAlexandre SchwartsmanEconomista e ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central

O economista Alexandre Schwartsman, consultor e ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central, não vê uma saída fácil para a Argentina, independentemente de quem ganhar as eleições no fim de outubro. Em entrevista ao podcast Estadão Notícias, ele relembrou a trajetória da Argentina nos últimos anos até chegar a situação atual, de inflação na casa de 100% ao ano.

Na avaliação dele, a proposta do candidato mais votado nas primárias, Javier Milei, é muito difícil de dar certo. O movimento de dolarização da economia, do ponto de vista prático, não tem como fazer. “O que acontece, primeiro, é que não há condições para fazer isso, porque a Argentina não tem dólares suficientes”, diz.

Veja, a seguir, trechos da entrevista:

Combater a inflação deveria ser a prioridade agora?

Vamos falar a verdade: com o nível atual de inflação da Argentina é muito difícil segurar as pontas só com base na política monetária. Quando se chega a esse nível de taxa de inflação, a resposta da taxa de juros teria de ser tão boçal que ela se tornaria politicamente inviável. Então, acho que primeiro vai ter de buscar maneiras de colocar as finanças públicas de uma forma mais sólida do que elas estão hoje, e tentar acumular reservas durante algum tempo. Argentina e banco central argentino não têm mais dólares. Significa que, num primeiro momento, eles não vão conseguir combater a inflação. Eles vão ter de desvalorizar a moeda para conseguir colocar o balanço de pagamentos em ordem, depois apertar a política fiscal para garantir que não vire muito mais inflação. E aí, lá na frente, pensar em alguma alternativa. Essa seria a sequência ideal, na prática, o que eles provavelmente vão tentar é algum atalho, que é assim que a gente consegue ferrar com o país.

Dá para fazer um paralelo histórico com o que o Brasil viveu antes do Plano Real?

Politicamente, a coisa é mais complicada na Argentina, porque em cima de tudo isso ainda tem um desencanto muito grande. Você teve ali uma tentativa de um governo supostamente mais liberal com o Mauricio Macri, que, na verdade, não teve condições políticas, coragem, o que quer que seja, para levar adiante um programa de ajuste, aí se voltou ao peronismo, ou melhor, talvez até um kirchnerismo que também foi um fracasso. Aí quando o argentino médio olha ele fala: “Bom, das correntes tradicionais do país, nada de diferente vai vir”. Acho que vem essa vontade de experimentar alguma coisa diferente, mesmo que seja uma coisa diferente ao ponto da insanidade.

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Não é possível aplicar a mesma solução que se fez no Brasil na Argentina para solucionar a hiperinflação? Por que não é tão simples assim?

Não é tão simples assim pela inflação, porque eles também aplicaram uma solução. O plano do Domingo Cavallo, a convertibilidade, foi aprovada em 1991, três anos antes do nosso Plano Real, com diferenças importantes, inclusive porque a história é diferente no Brasil e na Argentina. O Brasil conviveu bem com a indexação, por um motivo que a gente não sabe muito bem. Não há nenhum juízo de valor, é só uma observação, que as pessoas conseguiam lidar com o negócio, desde que ele fosse indexado. Então, nós fizemos o nosso truque de estabilização, porque criamos uma moeda indexada que era a URV (Unidade de Valor Real) e em uma determinada data, ela virou a moeda. Aí conseguimos não exatamente trazer a inflação para zero, mas passou de 40% ao mês para 40% ao ano, onde você já consegue jogar.

Argentina é viciada em dólar. Quer dizer, também por razões históricas, a unidade de valor na Argentina era o dólar, então o país fez o plano de convertibilidade, que era basicamente uma fixação de um peso argentino para um dólar, o que transformou o banco central basicamente num agente que deveria trocar dólares por pesos e vice-versa, na paridade sem nenhuma outra função. Eles falavam que era uma caixa de conversão, que era o mecanismo que se descrevia, à época.

Então dava para fazer, nas condições que se tinha, e tinha mais dólar. Não dá para dizer que o Carlos Menem fosse a pessoa mais tranquila da face da Terra. Ele também era um populista. Mas o Menem tinha um controle do seu partido. E pelo motivo que seja, ele acabou se engajando num programa de ajuste fiscal também para sustentar a inflação. Assim, a Argentina sustentou ali, por 10 anos, taxas de inflação muito baixas. Agora as condições que existiam (no passado) para o plano de convertibilidade não existem hoje, que era a fuga de capitais, perda de moeda, o juro ia embora e a economia afundou numa baita recessão, é difícil aguentar isso.

O candidato mais votado, Milei, tem sido visto como radical. O quanto há de realidade e viabilidade nessas propostas dele de dolarizar a economia, fechar o Banco Central e outras?

Eu acho que no campo das intenções, ele realmente quer isso mesmo. Ele realmente acredita que o movimento da dolarização resolveria o problema num certo sentido. Não é uma solução final, mas se a Argentina adotar o dólar como moeda, é como se, quase que por definição, que a inflação Argentina vai ter de ser inflação americana, ou alguma coisa muito perto disso. O que acontece primeiro é que não há condições para fazer isso, porque a Argentina não tem dólares suficientes. Ela precisaria ter dólares suficientes para trocar toda a moeda nacional por uma por moeda estrangeira. Ela não tem isso. Então, esquece.

Do ponto de vista prático, não tem como fazer. Aí tem a questão de se seria desejável ou não? Porque a partir do momento que você faz isso, você abre a mão do Banco Central, a mesma dinâmica que escrevia no caso da convertibilidade passa a se aplicar agora, mas como um esteroide. Qualquer balançada lá fora é fuga de capital e dólar, deixa de ter liquidez no mercado doméstico, os juros sobem, o crédito fica escasso e a economia entra em recessão. O Federal Reserve (banco central americano) não vai lá ajudar a Argentina porque ela é Argentina, por mais que os argentinos queiram acreditar nisso.

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O setor agropecuário pode aliviar a economia argentina? É um setor para se apostar?

Já tem sinais de que deve ser uma bela safra na Argentina. Eles também são uma potência agrícola como nós somos, em uma escala um pouco menor porque é um país menor. Mas é importante para o país, e é um setor que gera dólar. Então, ajuda em alguma coisa, mas daí a resolver o problema de desequilíbrio macro, esquece. Deve dar para conseguir um pouco mais de dólar, mas não vai ser uma coisa que vai resolver o problema fiscal argentino, nem o problema de subsídios, nem as ineficiências de maneira geral, muito menos o problema político. Então é ajuda, mas não é a solução.

Como é que a atual situação da Argentina afeta o Brasil?

A Argentina é um parceiro importante, mas já foi mais. Ela foi um destino mais importante das exportações brasileiras do que é hoje, em particular das exportações de manufaturados no perfil mais sofisticado. Então as máquinas, equipamentos, automóveis entre outros. Isso foi se perdendo. Então, hoje a Argentina é menos importante do que foi. Agora ainda o Brasil continua gerando saldos comerciais positivos relativamente à Argentina, mas perdeu relevância. Se vier uma baita recessão lá, alguma coisa mais séria, teremos algum impacto para alguns segmentos da indústria.

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