Proposta do governo para o IR é ‘aperitivo’ e ficou faltando o ‘prato principal’, diz especialista

Para Sérgio Gobetti, pesquisador do Ipea, governo fez intervenção pontual no modelo, sem implementar uma reforma tributária sobre a renda

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Foto: Elson Sempé Pedroso/CMPA
Entrevista comSergio Gobetti pesquisador do Ipea

BRASÍLIA – O economista e pesquisador do Ipea Sérgio Gobetti, especialista em tributação, avalia que a proposta de reforma do Imposto de Renda encaminhada pelo governo Lula ao Congresso é apenas um “aperitivo” do que seria uma mudança estrutural e mais ampla sobre o sistema vigente no País.

Na visão dele, ficou faltando o “prato principal”, que seriam alterações sobre a tributação das empresas – que deveria ser reduzida, mas compensada por um aumento do imposto sobre as pessoas físicas. Isso poderia manter a faixa de isenção elevada, mas, ao tempo tempo, criar novas faixas de cobrança, sobre rendas mais altas, para corrigir distorções tributárias.

“A proposta ameniza a falta de progressividade (cobrar mais dos mais ricos) do nosso sistema, mas não estabelece um novo modelo”, afirma Gobetti em entrevista ao Estadão.

O pesquisador divulgou um estudo esta semana com dados que vão na mesma direção dos cálculos do Ministério da Fazenda. Ele avalia que serão efetivamente atingidos pelo imposto mínimo dos mais ricos quem tem “renda superior a R$ 1 milhão composta por mais de 40% de dividendos”.

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O economista calcula que haverá uma “sobra” em torno de R$ 10 bilhões com a taxação dos mais ricos em relação às perdas de arrecadação com a isenção até R$ 5 mil mensais – e, por isso, defende que esses recursos sejam usados para diminuir a alíquota do novo Imposto de Valor Agregado (IVA), a ser criado pela reforma tributária sobre o consumo, já aprovada no Congresso.

“É uma possibilidade que já está prevista no texto aprovado da reforma da tributação do consumo. Então, se o ganho de arrecadação com a reforma do imposto de renda vier a se confirmar e, se o Congresso quiser evitar que isso gere aumento de carga tributária, o projeto de lei poderia prever um ajuste compensatório na alíquota padrão da CBS (novo imposto federal criado na reforma)“, afirmou. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual a avaliação do senhor sobre a proposta do governo de isentar de IR quem ganha até R$ 5 mil mensais e compensar a perda de receita com o imposto mínimo sobre a alta renda?

A proposta vai na direção correta, ao adotar um paliativo que atenua a falta de progressividade tributária no topo da pirâmide social, onde as pessoas mais ricas pagam – em média – pouco Imposto de Renda, mesmo quando considerada a tributação efetiva que os lucros sofrem na empresa. O “imposto mínimo” ameniza esse problema, é um bom aperitivo; mas ainda falta o prato principal em termos de uma reforma estrutural e mais ampla que corrija as múltiplas distorções que temos em nosso modelo de tributação.

O que faltou?

A proposta ameniza a falta de progressividade, mas não resolve isso do ponto de vista estrutural, nem enfrenta as várias dimensões em que nosso modelo tributário falha em tratar os contribuintes de forma mais equitativa e neutra. No caso das empresas, por exemplo, há inúmeros regimes especiais e brechas na legislação que fazem com que a tributação efetiva do lucro varie de 4% até 34%, com uma média em torno de 16%. E, muitas vezes, a baixa tributação desse lucro está favorecendo pessoas de alto poder aquisitivo e não o pequeno empresário empreendedor. Então, é preciso enfrentar e corrigir essas distorções para tornar o sistema tributário mais equitativo e também menos ineficiente.

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O País deveria tributar menos as empresas e mais as pessoas físicas?

Sim, este é um movimento que a maioria dos países do mundo têm feito nas últimas décadas, e o Brasil já está muito atrasado em seguir esse caminho. Somos um dos pouquíssimos países do mundo que concentram toda tributação do lucro nas empresas e isentam os dividendos no momento da distribuição – o que causa as distorções que eu já mencionei e ainda prejudica a competitividade, pois as grandes empresas do mundo buscam se instalar onde a alíquota de IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) é menor.

Como fazer essa mudança e, ao mesmo tempo, corrigir as distorções?

Há várias formas de voltar a tributar dividendos na pessoa física e integrar essa tributação com a das empresas. Uma delas é por meio de um modelo amplo de tributação das rendas, a exemplo do que faz a Austrália e até alguns países latino-americanos, como México e Chile. Nesse modelo, você soma salários, lucros, rendimentos financeiros e submete tudo a uma mesma tabela de alíquotas progressivas. E, nesse modelo, você pode oferecer uma compensação pelo que foi pago de imposto sobre o lucro das empresas. Aí, eu consigo tributar as altas rendas com alíquotas que podem chegar a 35% ou 40%, mas descontando o que foi pago na empresa, reduzindo a assimetria que hoje existe entre sócios de empresas que pagam pouco e aqueles que pagam muito.

Parecido com o que foi feito com a tributação da alta renda?

Exatamente, mas de um modo mais estrutural e com alíquotas progressivas. Esse tipo de modelo permitiria matarmos três coelhos de uma vez: primeiro, porque aumentaria a progressividade, com alíquotas maiores para quem ganha mais; segundo, porque praticamente eliminaria a assimetria de tributação das empresas, neutralizando as vantagens de umas sobre as outras, porque o pagamento do IRPJ passa a ser só um estágio do cálculo final do imposto devido por cada pessoa na declaração anual do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física). Quem tiver pagado bastante imposto na empresa vai abater do imposto devido como pessoa física. E, por fim, esse modelo permite absorver uma faixa de isenção mais ampla na tabela do IRPF, aplicada ao somatório de todos os tipos de renda.

Você diz no seu estudo que, no fim das contas, a proposta é uma forma indireta de tributar dividendos.

Sim, porque, na prática, os dados das declarações de IRPF mostram que hoje quem paga menos de 10% de imposto são as pessoas que ganham acima de R$ 1 milhão por ano e com um volume de dividendos recebidos que representa pelo menos 40% de suas rendas totais. Então, a medida atinge essencialmente os dividendos recebidos pelas pessoas mais ricas.

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Quem são os super-ricos que vão pagar a alíquota mínima?

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São no máximo 150 mil pessoas que se enquadram nesse perfil que eu mencionei: ter renda superior a R$ 1 milhão composta por mais de 40% de dividendos. Podem ser profissionais liberais de alta renda, de diferentes áreas e que prestam serviço por meio de empresas, como também empresários do setor produtivo com renda igualmente acima de R$ 1 milhão. Mas, se a pessoa for muito rica, mas a participação de dividendos na sua renda for inferior a 30%, por exemplo, ela poderá ficar imune à cobrança de um adicional porque provavelmente já terá atingido os 10% com os impostos incidentes sobre seus rendimentos financeiros.

Você calculou que haverá um ganho fiscal com essa proposta, em torno de R$ 10 bilhões, e sugeriu que isso fosse abatido da alíquota da CBS. Como seria isso?

Eu diria que o risco de déficit é muito remoto, porque o ganho com a tributação de dividendos tende a superar a perda com a desoneração dos assalariados. Mas essa conta é muito difícil de fazer com exatidão, porque ninguém sabe qual vai ser o comportamento das empresas em relação à distribuição de dividendos. Tudo indica que haverá menor distribuição de dividendos – as estimativas já foram feitas considerando esse cenário e indicam que o ganho líquido final ficaria entre R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões.

Em caso de sobra, você sugere que a alíquota do IVA seja reduzida?

É uma possibilidade que, inclusive, já está prevista no texto aprovado da reforma da tributação do consumo, que criou a CBS (novo imposto federal) e o IBS (novo imposto de Estados e municípios). Então, se o ganho de arrecadação com a reforma do imposto de renda vier a se confirmar e, se o Congresso quiser evitar que isso gere aumento de carga tributária, o projeto de lei poderia prever um ajuste compensatório na alíquota padrão da CBS federal.

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Os Estados alegam que terão perdas com o IR que incide sobre a folha de pagamentos do funcionalismo.

De fato, haverá essa perda, que eu estimo em torno de R$ 10 bilhões, referente ao IR que Estados e municípios hoje arrecadam sobre os salários de seus servidores. Esse imposto não entra no cofre da União, é retido pelos Estados e municípios. Só que, nessa conta, também é preciso considerar o ganho que Estados e municípios terão com a nova tributação sobre dividendos e altas rendas, pois 48% dela será partilhada por meio do FPE (Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal) e do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), proporcionando uma compensação, que não sabemos ainda se será total ou parcial.

Pode explicar melhor a conta?

A minha conta é que a desoneração vai custar em torno de R$ 25 bilhões. Desse valor, R$ 10 bilhões sairão diretamente dos cofres de Estados e municípios e R$ 15 bilhões dos cofres da União. Sobre esse valor arrecadado pela União, Estados e municípios também sofrem uma perda, já que 48% dele pertence ao FPE e FPM. Logo, a perda dos Estados e municípios com a desoneração dos assalariados pode chegar a R$ 17 bilhões. Por outro lado, se confirmar-se a previsão de arrecadar R$ 34 bilhões sobre os dividendos, os Estados e municípios receberiam 48% disso de volta – o que representa R$ 16 bilhões. Nesse caso, as perdas seriam quase integralmente compensadas, pelo menos no agregado. Mas o adequado é fazer essa conta ao final: ver quanto faltaria para compensar Estados e municípios e o resto do ganho poderia ser revertido para a desoneração do consumo via alíquota da CBS.

Uma crítica que tem aparecido muito nas redes sociais é que 90% dos contribuintes pessoas físicas vão parar de pagar IR. Qual a sua avaliação?

Hoje, a situação não é tão diferente: menos de 20% da população adulta paga Imposto de Renda no Brasil. E cerca 6%, 10 milhões de pessoas, deixarão de pagar com a nova fórmula de isenção. A verdade é que nossa faixa de isenção não é baixa para padrões internacionais e não considero que fosse prioritário ampliá-la, mas essa é uma escolha política. Seja como for, a reforma da renda é um imperativo independente dessa questão fiscal compensatória em relação à desoneração dos assalariados. A reforma do IR é necessária para corrigirmos as distorções que hoje tornam nosso sistema pouco progressivo e muito ineficiente.

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Estaríamos dando um passo na direção correta, mas ainda tímido?

Sim, tímido e atrasado. Somos o país das jabuticabas tributárias e continuamos vacilando em seguir as tendências internacionais modernas em função de interesses particulares que se sobrepõem ao bom senso e ao interesse nacional.

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