Com as exceções – crescentes nos últimos dias – que entraram na reforma tributária, o texto aprovado ontem pelo Senado é o exemplo de mais uma oportunidade que o Brasil perde. “Nós não falamos que somos craques em perder oportunidade? Tínhamos a oportunidade de fazer uma coisa mais ambiciosa. Aí vieram os setores pedir concessões, setores que é absolutamente injusto receberem tratamento diferenciado”, disse ao Estadão a economista Zeina Latif, sócia-diretora da Gibraltar Consulting.
Apesar das concessões que foram dadas a diferentes segmentos, a reforma melhora muito o atual sistema tributário brasileiro e seus reflexos no PIB podem ser maiores do que as estimativas dos economistas indicam, na análise de Zeina. Como muitos impactos da reforma são difíceis de serem mensurados, é possível que as projeções estejam subestimando o resultado da mudança, afirmou. “Acho que a tendência é a gente se surpreender positivamente.”
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Qual avaliação a sra. faz do texto aprovado pelo Senado?
Ouvi o argumento de que a reforma saiu muito ruim, de que a gente teria como fazer algo melhor, de que o ideal era parar tudo e começar de novo, de que o melhor era não aprovar essa reforma por causa das distorções. Acho que correríamos risco se fizéssemos algo assim. A impressão é que, quanto mais ficássemos cozinhando a reforma, pior seria. Obviamente será preciso ter muito cuidado na implementação e na regulamentação, além de buscar ajustes conforme necessário. Mas nós temos um sistema político que é muito permeável a pressões do setor privado. Tem grupos com muita capacidade de se organizar e fazer lobby no Congresso. Será que isso vai mudar a ponto de poder garantir que, chegando um próximo presidente, poderíamos fazer rapidamente uma reforma muito mais ambiciosa? O meu receio é que não. Mesmo que a reforma não seja nota 7, como o ministro Fernando Haddad falou, mesmo que seja nota 6 ou menor, acho que foi melhor fazê-la já.
Qual nota a sra. daria?
É difícil. Certamente não daria uma nota muito alta. Não seria uma nota boa pensando na reforma ideal, mas seria uma nota altíssima em relação ao que a gente tem hoje.
As concessões que foram dadas vão elevar a alíquota. Qual o impacto na economia de uma alíquota ao redor de 27%?
Isso coloca o Brasil na categoria de países com alíquotas mais elevadas. É o que temos. Cada um foi defender o seu. O grau de desconfiança que existe no País é enorme. Quando os setores fazem isso, é porque há uma desconfiança (em relação ao possível aumento do PIB decorrente da reforma). Na dúvida, preferem não se arriscar. Também tem a desconfiança dos municípios e dos estados, que acham que o governo federal concentra o poder. Ainda assim, é um salto em relação ao que a gente tem hoje. O atual sistema tributário é um dos grandes fatores que prejudicam o potencial de crescimento do País. Agora, de fato, isso (a alíquota alta) reflete quem nós somos. Nós não falamos que somos craques em perder oportunidade? Tínhamos a oportunidade de fazer uma coisa mais ambiciosa. Aí vieram os setores pedir concessões, setores que é absolutamente injusto receberem tratamento diferenciado…
Que setores a sra. destacaria?
De advogados ao turismo. São pessoas com recursos sendo beneficiadas.
Apesar desse problema das concessões, a reforma pode ter algum impacto no curto prazo, gerar um otimismo no investidor?
No curto prazo, não. A transição não é tão rápida. Mas precisava fazer, tinha que começar.
No longo prazo, como vê os impactos?
Tenho uma inclinação a acreditar que a gente pode se surpreender muito positivamente. A gente vê várias simulações, com metodologias diferentes, que vão desde um crescimento de 2% a mais (no PIB) até 20% em um intervalo de 15 anos. Tendo a acreditar que, mesmo com essas concessões, o impacto é grande, porque tem vários aspectos que são difíceis de colocar na simulação. Tem o impacto na melhora de alocação de recursos na economia. Hoje a gente tem um regime tributário que não é neutro no sentido de não afetar decisões de investimento de produção. Hoje tem empresas que tomam decisão de o que, onde e de que forma produzir não por uma análise racional de custos e benefícios, mas, sim, com base no benefício tributário. O atual sistema distorce as decisões e gera menor potencial de crescimento.
Há outros impactos?
Tem o custo de redução do contencioso. As empresas hoje têm que ter um exército de pessoas para lidar com as mudanças de regras tributárias e as interpretações das leis. Também tem os custos de oportunidade. Uma empresa que tem que manter um exército de especialistas em tributação teve de abrir mão de alguma coisa. Ela está deixando de treinar mão de obra, de inovar, de investir, de modernizar a sua estrutura produtiva. É difícil colocar esse ganho numa estimativa. Tem ainda benefícios que a gente pode ter pela melhor distribuição da carga tributária. Hoje a cobrança de tributos da indústria não é uniforme, depende da área, do setor, da região. A indústria é muito penalizada com a carga tributária e ela justamente tem um efeito multiplicador no PIB muito importante. Conseguir dar mais competitividade para a indústria porque tem uma estrutura tributária mais racional tem impactos macroeconômicos. São muitos fatores difíceis de colocar numa simulação. Por isso, acho que a tendência é a gente se surpreender positivamente.
Passada a reforma tributária, qual deve ser a agenda econômica?
Temas muito importantes ficaram para a regulamentação da reforma ainda, como a devolução de créditos tributários. Mas, agora, está sendo estabelecido que tem de se fazer a reforma da folha de pagamentos. Isso é muito importante. Você não pode fazer desoneração total, porque a Previdência depende disso. Mas é importante reduzir o custo da folha para rendas mais baixas. Se você tem uma tributação da folha muito grande, que é o caso do Brasil, e ainda, cada vez mais, há a possibilidade de substituir pessoas que realizam trabalhos repetitivos por tecnologia, isso tem impactos sociais. As empresas vão falar: ‘Para eu pagar menos imposto, preciso usar menos mão de obra’. Para ter preços competitivos, elas vão buscar essa substituição. Tem áreas em que isso é inevitável e saudável, mas de fato seria importante avançar no caso da desoneração da folha de forma uniforme para os salários baixos. Essa agenda é importante para um país como o Brasil, que tem desemprego estrutural elevado.
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