Especialista em prever cenários anuncia a ''era da globalização multipolar''

Entrevista - Eamonn Kelly: consultor do Monitor Group; Na nova etapa do capitalismo global, que já começou, todos os países serão capazes de inovar, liderar e definir regras

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Como será a vida no futuro? O escocês Eamonn Kelly, de 51 anos, é pago para responder essa pergunta a empresas, governos e pessoas em todo o mundo. Formado em drama, sociologia e economia pela Universidade de Glasgow, Kelly começou trabalhando com comunidades carentes da Escócia, ajudando-as a buscar outras formas de ocupação, após a falência da indústria de carvão local. "As pessoas buscavam os mesmos empregos do passado e eu queria ajudá-las a encontrar alternativas no futuro", conta. O talento para estudar e prever cenários transformou-o em um dos mais requisitados futurólogos mundiais. Após prestar serviços para a agência de desenvolvimento econômico do governo escocês, Kelly foi chamado para compor a equipe da Global Business Network (GBN), uma das maiores consultorias de projeção e análise de cenários, absorvida em 2000 pelo Monitor Group. "Sou um grande contador de histórias sobre o futuro", brinca ele. Mas suas histórias são levadas bastante a sério. As análises da GBN já foram solicitadas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, entre outros governos. As companhias, porém, são suas maiores clientes, principalmente depois da crise financeira. "Pela primeira vez em 20 anos, elas não têm nem sequer uma ideia sobre o futuro. Todos estão muito confusos", diz o consultor. Utilizando cinco variáveis - social, tecnológica, ambiental, econômica e política -, ele tem ajudado os empresários a traçar estratégias de longo prazo em tempos de incerteza global. Em entrevista ao Estado, o futurólogo escocês afirma que a crise vai acelerar mudanças estruturais que já vinham ocorrendo há alguns anos. Entre elas, o nascimento de uma globalização "multipolar", no lugar da ditada pelos países ricos ocidentais, a revisão das regras de comércio mundial e uma nova forma de consumir bens e serviços. No mundo "pós-globalização ocidental" imaginado por Kelly, as pessoas também vão trabalhar e viver de um jeito diferente. A seguir, os principais trechos da entrevista. NOVOS AGENTES "Por 500 anos, Estados Unidos e Europa definiram as regras do comércio, da ciência e tecnologia e dos mercados. A globalização que conhecemos é essencialmente uma exportação do modelo ocidental para o resto do mundo. Isso está acabando. Teremos uma globalização multipolar, onde todos os países serão capazes de inovar, liderar e definir regras. Já vemos sinais disso, com o G-20 substituindo o G-8 e países emergentes sendo chamados para participar do Fundo Monetário Internacional (FMI)." ESTADOS UNIDOS "O Ocidente não define mais as regras para todos. É como se, agora, ele fosse um dos dançarinos principais do balé, mas não mais o coreógrafo. Acho que o presidente Barack Obama entende isso. Diferente de todos os outros presidentes americanos, ele viveu fora do país e experimentou a diversidade cultural. Obama entende que os dias em que um único país podia definir as regras para todo o mundo terminaram. E isso é uma mudança significativa nas instituições e estruturas da política americana." BRASIL O Brasil tem as características corretas para ter sucesso no mundo que surge. Tem curiosidade e respeito por outros países, uma economia relativamente forte - tanto que já tem lugar na "grande mesa" das decisões, o G-20. Possui uma forte cultura empreendedora, com empresas privadas fortes, que sobreviveram por décadas. Há ainda a vantagem demográfica encontrada em poucos países e lhe dá vantagem sobre os demais Brics. MULTINACIONAIS DE VERDADE Há 20 anos, as corporações multinacionais eram empresas com centrais nos EUA ou na Europa, e vários satélites espalhados pelo mundo. Eram multinacionais ocidentais. Nas últimas décadas, as principais companhias estão tentando se tornar multinacionais de verdade. Isso é feito trazendo pessoas de outros países para as diretorias, dando autonomia para as filiais e customizando produtos em diferentes regiões. As melhores companhias já estão trabalhando nesse sentido. NOVOS PRÓSPEROS Hoje temos cerca de 2,5 bilhões de pessoas vivendo bem integrados à economia global. São pessoas relativamente prósperas, que vivem acima do nível de pobreza, na forma que se conhece hoje. Acredito que nos próximos 20 anos veremos mais 2 bilhões de pessoas se juntando a esse grupo. A prosperidade não será mais vista como um privilégio de algumas partes do mundo. SUSTENTABILIDADE O enorme desafio dos próximos 20 anos será descobrir como vamos incluir esses 2 bilhões de pessoas na prosperidade global sem destruir o meio ambiente. Isso exigirá altos níveis de inovação e também uma mudança fundamental nos padrões de consumo. Se todos passarem a comprar veículos no mesmo ritmo que os cidadãos médios americanos fizeram, precisaremos de oito planetas para produzi-los. E não temos oito planetas. Por isso, a sustentabilidade vai deixar de ser uma preocupação de segundo plano para muitas empresas, como é hoje. ?CONSUMO EXPERIENCIAL? Vejo um movimento em direção a um consumo mais "experiencial". Um consumo que tenha significados e até dimensões espirituais. Aquele consumismo baseado unicamente na vontade de ter uma TV de tela plana em todas as salas da sua casa vai diminuir. E isso trará um desafio muito interessantes para as empresas: elas terão de se tornar muito mais criativas do que são hoje. FRONTEIRAS DO TRABALHO Cada vez mais, as pessoas com maior grau de educação e com as melhores oportunidades vão procurar por trabalhos que possam ser incorporados às suas vidas pessoais, e vice-versa. Não sei se isso é 100% bom, mas certamente é melhor do que estamos agora. Hoje, ninguém nos fala: "você fez o suficiente". Você mesmo determina isso. As fronteiras entre trabalho e vida pessoal estão caindo. URBANIZAÇÃO Acredito que, ao longo do tempo, as grandes oportunidades estarão nas cidades. As cidades criam estilos de vida muito melhores para as pessoas. Nelas, as pessoas podem trabalhar menos do que no campo - as mulheres principalmente. Por isso, acredito que as oportunidades para as pessoas terem uma vida mais balanceada está crescendo, não diminuindo. Minha única grande preocupação com isso é que, conforme nos tornemos cada vez mais ?hiperconectados?, fiquemos cada vez mais desconectados de coisas fundamentais, como natureza, família e a sensação de pertencer a uma comunidade. OTIMISMO Sou um futurólogo otimista. Sou pai de três crianças e tenho muitas preocupações sobre o planeta futuro que eles vão ocupar. Mas, se alguém me perguntar se eu preferia que meus três filhos tivessem nascido há 100 anos, eu diria não. Provavelmente, sem os antibióticos, apenas dois estariam vivos. É possível também que não tivessem acesso à educação. FUTUROLOGIA Não gosto da palavra futurologia, prefiro chamar o que faço de previsão. E, sim, existem limitações a ela. Isso porque o volume de variáveis que podem modificar o mundo é quase infinita. E o cérebro humano não é capaz de lidar com milhões de variáveis, nem mesmo com poucas. A possibilidade de que aconteçam eventos loucos, que mudem totalmente a natureza de tudo, é muito alta. Ninguém pode cobrir todos os cenários possíveis.

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