BRASÍLIA - Os Estados se mobilizam numa ofensiva no Congresso para evitar o parcelamento dos precatórios devidos pela União, medida defendida pela equipe econômica para garantir a ampliação do programa Bolsa Família no ano que vem. Dos R$ 89 bilhões em dívidas judiciais previstos para o Orçamento de 2022, pelo menos R$ 16,6 bilhões têm governos estaduais como credores.
Para os Estados, a PEC dos precatórios e o projeto que altera o Imposto de Renda são duas frentes lançadas pelo governo federal que fragilizam as contas dos governos regionais, com perda de arrecadação.
Por trás desse imbróglio, há um cálculo político do governo de não querer encher o caixa de governadores adversários do presidente Jair Bolsonaro em ano de eleição, sobretudo no Nordeste. Integrantes do governo têm lançado a suspeita de que o valor elevado faria parte de uma conspiração política do Judiciário para beneficiar esses opositores do presidente.
Parlamentares que admitem resistências à medida relembram que o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, é defensor do lema “menos Brasília, mais Brasil”, com mais recursos na ponta. Para esse grupo, barrar o pagamento integral dos precatórios aos Estados vai contra o “pacto federativo” apregoado pelo próprio chefe da equipe econômica.
A maior parte do dinheiro devido aos Estados vem de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que condenou a União a ressarci-los pelo cálculo incorreto do Fundef, fundo para o desenvolvimento do ensino fundamental e valorização do magistério que vigorou até 2006. Para 2022, foram expedidos precatórios para Bahia (R$ 8,767 bilhões), Pernambuco (R$ 3,952 bilhões), Ceará (R$ 2,655 bilhões) e Amazonas (R$ 219,4 milhões).
Outros Estados têm valores a receber, mas ainda não foram contemplados. Estão na fila Maranhão, pendente de recurso, e Pará, que não obteve a expedição de precatório para 2022.
O secretário da Fazenda do Estado de Pernambuco, Décio Padilha, disse ao Estadão que o parcelamento não vai prejudicar só aqueles Estados e municípios que têm a receber precatórios agora, mas todos que estão na fila para receber nos próximos anos ou ganharem sentenças no futuro. Ele integra o Comitê de Secretários Estaduais de Fazenda (Comsefaz) e observou que o debate do parcelamento de precatórios se soma ao impasse na discussão do projeto que muda o Imposto de Renda.
“O apelo que o Comsefaz faz é para que os deputados e senadores olhem com muita cautela os impactos que podem ocorrer para não criarem um colapso financeiro nas unidades subnacionais”, pondera o secretário. Para ele, o objetivo do governo com a PEC é claramente é abrir espaço fiscal para o novo Bolsa Família – medida que é uma peça-chave no plano de reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
O presidente prometeu elevar o benefício médio do Bolsa Família para um patamar próximo a R$ 300 e já há movimentação política para tentar subir ainda mais, a R$ 400. Hoje, esse valor fica em torno de R$ 190.
Antevendo resistências, lideranças do Centrão – bloco que dá sustentação política a Bolsonaro no Congresso Nacional – tentam emplacar a narrativa de que ninguém vai querer votar contra o aumento de recursos para o programa social depois da pandemia da covid-19. No entanto, parlamentares ouvidos pelo Estadão/Broadcast reconhecem que o tema é delicado.
O deputado Julio Cesar (PSD-PI), coordenador da bancada do Nordeste, diz que a medida não é boa para Estados e municípios e muitas prefeituras já contam com recursos de precatórios a receber da União. “Queremos que seja mantido o atual critério”, afirma, cobrando o pagamento à vista das dívidas judiciais.
O deputado Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) afirma que seu Estado é um dos que têm recursos vultosos a receber em precatórios e reconhece que o tema é delicado. “Vai haver de fato uma resistência, não vai ser uma matéria fácil de avançar, não”, diz.
Aliado do governo, o deputado Claudio Cajado (PP-BA) afirma que o problema tem que ser enfrentado “como um todo”, dada a restrição de espaço no teto de gastos (a regra que limita o avanço das despesas à inflação). “Não adianta querer especificar em Estados e municípios”, diz. Dentro da ala política do governo, também há a avaliação de que as resistências podem diminuir se funcionar a narrativa de que a PEC viabiliza o novo Bolsa Família.
Acordo
Os Estados beneficiados com a decisão do STF alegam que tentam um acordo com o governo federal há mais de quatro anos, inclusive para reduzir o valor total e parcelar o pagamento dos recursos. O governador de Pernambuco, Paulo Câmara, divulgou uma nota para reforçar que a Justiça corrigiu um prejuízo histórico e que os recursos serão importantes para investir na educação, sobretudo no período pós pandemia.
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, a cultura de acordos judiciais passou a ser disseminada apenas muito recentemente. Procuradores e advogados da União argumentavam não poder dispor do “interesse público” e reconhecer que o contribuinte autor da ação judicial tinha razão, mesmo que apenas em parte. Com isso, segundo explica uma fonte, o governo sempre levou as ações “até às últimas consequências”, o que não só concentra os passivos mas também eleva os valores envolvidos.
Por isso, dentro e fora do governo há uma avaliação de que a AGU dormiu no ponto e "cochilou" até mesmo em prazos e procedimentos, mesmo num quadro em que os auditores recebem honorários de sucumbência – uma espécie de bônus por eficiência.
Cobrada por erros na condução dos processos, a Advocacia-Geral da União (AGU) saiu em defesa da atuação de seus integrantes. Em nota, ponderou que não houve qualquer atuação sua que pudesse ser considerada aquém daquela necessária a garantir a mais adequada e correta defesa judicial da União e de suas autarquias e fundações públicas federais.
Pelos cálculos do pesquisador do Insper, Marcos Mendes, os pagamentos de sentenças judiciais pelo governo federal tiveram crescimento real de 110% de 2013 a 2021. “Mesmo em 2013, quando somava R$ 25,6 bilhões em valores atuais, essa despesa já deveria ter entrado no radar da gestão fiscal. Mas nenhuma providência relevante parece ter sido tomada para mudar a situação”, relata em nota técnica divulgada sobre o tema. Na sua avaliação, o problema principal está no fato de que o processo de decisão é descentralizado e fragmentado em diversas instâncias do Judiciário. Somente às vésperas da elaboração do Orçamento há um diagnóstico mais preciso do valor agregado.
Mendes vê grande risco de a PEC do parcelamento levar a União a repetir o padrão de Estados e municípios, que passaram a usar o atraso persistente no pagamento de precatórios como um instrumento de financiamento. Ele lembra que, desde a promulgação da Constituição, já foram aprovadas cinco emendas constitucionais para facilitar ou parcelar o pagamento de precatórios dos governos regionais.
“É grande o risco de essa providência colocar o governo federal em situação de restrição orçamentária fraca, com brecha para expandir despesas sem fazer o dever de casa de bem administrar a sua defesa jurídica”, critica Mendes. Ele acrescenta que isso será ainda mais verdadeiro se esse pagamento for retirado do teto de gastos. Nesse cenário, diz ele, haverá incentivos a deixar acumular passivos para poder gastar mais sem computar a despesa no limite de despesas.
Para o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, o problema do governo com os precatórios mostra incompetência e falta de capacidade do governo de se organizar. Na sua avaliação, o governo poderia ter apresentado um embargo, uma espécie de recurso judicial, o que daria mais tempo para negociar com os governadores.
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