RIO - O processo sancionador contra Glaidson Acácio dos Santos, o “Faraó dos Bitcoins”, avança para ser julgado pelo colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), formado pelos quatro diretores e pelo presidente da autarquia, João Pedro Nascimento. O esquema girou ao menos R$ 38 bilhões, com promessa de remuneração de 10% ao mês - muito acima do mercado -, por meio de supostos investimentos em criptomoedas, mas foi apontado como ilegal e desmontado pela Polícia Federal (PF). À firma de Santos, G.A.S. Consultoria e Tecnologia, cabiam lucros que excedessem a taxa prometido, mas há supostos indícios de que o operador se apropriava de recursos de clientes. Segundo advogados de defesa, não houve crime.
Entenda
Suspeito de operar uma pirâmide financeira, Santos - um ex-garçom em Armação dos Búzios (RJ) que, depois de montar seu negócio, ostentava com festas e automóveis importados a riqueza que acumulou rapidamente - foi preso pela Polícia Federal (PF) em agosto de 2021, na Operação Kryptos. É acusado de duas transgressões na CVM: operação fraudulenta e oferta de valores mobiliários sem a obtenção de registro e sem dispensa. Além do “Faraó”, são acusadas Mirelis Yoseline Diaz Zerpa, sua companheira, e a G.A.S Consultoria e Tecnologia, empresa de ambos, que era apresentada sob o nome de Consultoria Bitcoin e ofertava os serviços.
A G.A.S. operava a partir de Cabo Frio, cidade na Região dos Lagos do Rio de Janeiro que, por sediar empreendimentos como o de Glaidson, ficou conhecida como “Novo Egito”.
O relator do caso na CVM é o presidente. A reguladora do mercado de capitais não tem prazo determinado para a relatoria, na qual os indícios e apontamentos da área técnica são organizados para a avaliação pelo Colegiado. Mas, de acordo com advogados ouvidos pelo Estadão/Broadcast, a tendência é que, dada a visibilidade, o processo tenha celeridade. A área técnica da CVM frisou que o esquema movimentou, de maneira ilícita, ao menos R$ 38.223.489.000,00 por meio de pessoas físicas e jurídicas no Brasil e no exterior, conforme apurado pelo Ministério Público Federal.
Acusação
O termo de acusação do órgão regulador, ao qual o Estadão/Broadcast teve acesso, frisa que Mirelis Zerpa tem “amplo conhecimento do mercado de criptomoedas e acesso às carteiras de investimento do grupo” e que, após a deflagração da operação Kryptos, da Polícia Federal, “foi ela quem realizou diversos e sucessivos saques”, que somaram R$ 1,063 bilhão.
“Enquanto Glaidson dos Santos tem atuação preponderante na parte comercial da empresa, especialmente na arregimentação de novos ‘investidores’ e na liderança dos demais integrantes que atuam na captação de recursos de terceiros, a atuação de Mirelis Zerpa é focada no mercado de criptoativos, seja para a realização de investimentos, seja para a ocultação dos valores em carteiras particulares do casal”, aponta a acusação.
A acusação aponta ainda que as informações prestadas pela corretora Binance no Brasil indicaram que as carteiras dos denunciados receberam depósitos de mais de R$ 1 bilhão, no período analisado, somando os ativos virtuais (dólares e reais) depositados nas contas abertas na corretora. Mas os recursos não eram usados para investimentos em criptomoedas. Iam para contas de empresas e contas pessoais de Santos e Zerpa.
“Efetivamente, não há nenhum documento contábil que demonstre o valor obtido ou despendido pela G.A.S Consultoria nas operações de compra e venda de criptoativos, nem em quais ativos estão os recursos investidos ou em nome de quem estão custodiados”, diz a acusação.
Por exemplo, em 1º de abril de 2021, a G.A.S. transferiu para a empresa MYD Zerpa, de Mirelis Zerpa, a cifra de R$ 25,4 milhões. Imediatamente, a MYD ZERPA dispersou mais de R$ 24 milhões entre diversas empresas recém-criadas, a maior parte em Cabo Frio. Identificados, os donos das contas também já foram denunciados.
Parte dos recursos abastecia a conta particular de Santos. Nos dias 1 e 2 de agosto de 2019, ele recebeu R$ 905 mil de sua firma, a G.A.S.
Para a acusação elaborada pela CVM, a progressiva migração para o uso de dinheiro em espécie foi emblemática na caracterização da operação irregular. Foram apreendidos volumes de recursos com consultores e associados à beira do embarque em helicóptero, de quase R$ 7 milhões em espécie, aponta, citando a denúncia do Ministério Público Federal.
Ofertas em cultos
Em 2019, foi feita uma denúncia contra o Faraó, mas a CVM entendeu que “se trataria puramente de esquemas fraudulentos”, portanto fora de seu perímetro regulatório. Após ter acesso a provas obtidas pela Operação Kryptos, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, a CVM reviu a interpretação e reabriu o processo, em setembro do ano passado.
A CVM constatou que o esquema oferecia investimento (em bitcoin), formalizado com contrato de investimento e fazia captação de oferta pública de investimento coletivo, também com contrato, estabelecendo retorno fixo mensal bruto de 10% sobre o capital investido. O esquema funcionava com a emissão de uma nota promissória com vencimento no termo do contrato, como suposta garantia de reembolso do capital investido.
Além disso, a remuneração tem origem nos esforços do empreendedor/terceiro.
“O contratado receberá mensalmente, a título de contrapartida por seus serviços financeiros, o valor que ultrapasse o porcentual líquido auferido pelos contratantes”, diz o contrato.
A emissão pública foi caracterizada pelos anúncios destinados ao público, a procura de subscritores ou adquirentes para os títulos por meio de agentes e a negociação em local aberto ao público ou com uso dos serviços públicos de comunicação.
Segundo a acusação da CVM, Santos negociava com quatro exchanges (corretoras de criptomoedas). Para oferecer os investimentos em criptomoedas, participaram de “diversos eventos ao público em diferentes cidades, com apresentações das ofertas de investimento inclusive em cultos religiosos, na presença de número indeterminado de pessoas”.
Para especialistas ouvidos pelo Estadão/Broadcast, o que surpreende no caso é o fato de que Santos, Zerpa, seus parceiros e sua empresa conseguiram movimentar cifras robustas sem chamar a atenção dos bancos que recebiam os depósitos e faziam os pagamentos. A ideia é que o Banco Central poderia impor filtros mais apertados para fluxos de dinheiro envolvendo exchanges.
O caso também vai testar, na Justiça, a lei das criptomoedas, que, foi aprovada sem segregação de ativos por exchanges. A segregação determinaria que as exchanges separassem seus recursos próprios dos recursos depositados por clientes, impedindo que dinheiro dos clientes fosse usado nas operações da companhia. Advogados interessados em criptomoedas observam quais interpretações vão prevalecer.
Consultada sobre o processo, a CVM respondeu em nota.
“Conforme é possível verificar no site da CVM, o Processo Administrativo Sancionador CVM SEI 19957.002835/2022-47, foi instaurado para apurar suposta realização de operação fraudulenta no mercado de valores mobiliários e oferta de valores mobiliários sem a obtenção do registro e sem a dispensa do mesmo. Após os procedimentos de análise cabíveis, a Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) da Autarquia entendeu pertinente apresentar Termo de Acusação. Adicionalmente, informamos que foi sorteado como relator do caso o presidente da Autarquia, João Pedro Nascimento, que, oportunamente, fará a devida verificação dos materiais contidos nos autos do referido processo.”.
Defesa e críticas
Santos está na Penitenciária Federal de Catanduvas (PR) e tenta habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ). De acordo com sua defesa, ele sofre de diversas doenças crônicas, com risco real de vida. Sua defesa criticou as acusações contra o cliente.
Sobre a suspensão dos pagamentos pela G.A.S., a advogada Tânia Monique Faial Corrêa afirma que se trata de “profecia autorrealizável”: “o bloqueio total de contas, o sequestro de todos os valores e aplicações financeiras do grupo fez com que se tornasse uma ‘verdade’ o que era uma tese de incapacidade de pagar os investidores”. A defesa compara: “Qualquer banco sólido, e que tivesse todos seus depósitos e valores de operações sequestrados e postos indisponíveis pelo Judiciário, acabaria inviabilizado de honrar seus compromissos com os correntistas e investidores.”
Segundo a advogada, há uma “práxis processual consolidada neste País, primeiro se denega a produção da prova, para depois apelar à ignorância afirmando que não há provas de ser diferente do que pressupôs o julgador, alegada justamente a prova qual antes foi denegada a produção”.
Mirelis Zerpa está nos EUA e, no Brasil, é considerada foragida da Justiça. Seu advogado, Ciro Chagas, informa que já pediu um habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para derrubar a ordem de prisão, após já ter derrubado outras duas.
O defensor afirma ainda que sua cliente não cometeu crime, pois as criptomoedas não eram reguladas no Brasil na ocasião das operações. Disse que todos os clientes estavam sendo pagos normalmente, até que a empresa fosse abatida por uma onda de saques, devida às suspeitas lançadas sobre o grupo. Chagas disse, finalmente, que não teve acesso ao conteúdo probatório.
“É um excesso processual”, criticou.
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