A crescente rivalidade geopolítica entre Estados Unidos e China, a invasão da Ucrânia pela Rússia e os problemas logísticos e de oferta causados pela pandemia puseram em xeque a adesão entusiasmada dos países à globalização produtiva.
Muito se tem falado sobre a retração das cadeias globais de valor de três formas. A primeira é o "reshoring", quando multinacionais trazem de volta para o país sede partes expressivas da sua operação produtiva. A segunda é o "nearshoring", quando elas estendem esse movimento aos países vizinhos. A terceira, finalmente, é o "friend-shoring", quando países aliados e que comungam dos mesmos valores políticos também são incluídos nesse rearranjo das cadeias produtivas das multinacionais.
Recente estudo dos economistas Alen Mulabdic e Gaurav Nayyar, do Banco Mundial, indica que as multinacionais dos Estados Unidos estão de fato em uma fase de reshoring e nearshoring, mas não de friend-shoring. Eles também encontram que esse movimento de reshoring e nearshoring aumentou o emprego nos Estados Unidos e em países vizinhos, como o México. Os autores notam que dois atos legislativos aprovados no governo Biden criaram grandes subsídios para a produção nos Estados Unidos (incluindo "conteúdo nacional").
Embora outros estudos já tenham sido realizados sobre esses temas, os autores acreditam que o seu "paper" (intitulado "Is the U.S. Friend-Shoring, Nearshoring, or Reshoring? - Evidence from Greenfield Investment Announcements") é o primeiro que analisa de forma mais rigorosa a extensão do reshoring, nearshoring e friend-shoring das multinacionais norte-americanas nos últimos anos, o período em que ocorreram aqueles acontecimentos que abalaram a globalização.
Como está claro no título, o estudo se concentra nos investimentos "greenfield", isto é, aqueles que correspondem efetivamente à montagem de novas unidades produtivas. Os economistas do Banco Mundial recorreram à base de dados fDI Markets, do jornal britânico Financial Times, que inclui informações em tempo real sobre investimentos greenfield internacionais (isto é, de um país em outro) do próprio FT, de entidades setoriais, agências de investimento e relatórios de empresas. A base de dados também permite mapear o reshoring com informações sobre investimentos entre estados norte-americanos.
O período coberto pela análise do 'paper' vai de 2015 a 2023, e os autores utilizam duas metodologias para chegar ao seus resultados. Na primeira, analisam o padrão de investimento greenfield das múltis americanas levando em conta fronteiras, distância (do país que recebe), a participação na OTAN e os investimentos realizados nos próprios Estados Unidos. Na segunda, utilizam os investimentos da União Europeia (EU) como base de comparação para investigar mudanças de padrão do investimento norte-americano em seguida ao início da guerra comercial entre Estados Unidos e China, à pandemia e à guerra da Ucrânia.
Um dos resultados é que os investimentos das multinacionais americanas em países vizinhos e nos próprios Estados Unidos dobraram depois da invasão da Ucrânia (o efeito foi ligeiramente maior para o reshoring). Já o emprego nesses investimentos de reshoring e nearshoring, segundo as conclusões do estudo, mais do que dobrou. Isso, por sua vez, sugere que setores intensivos em mão de obra (com destaque para o México) tem se sobressaído nesses investimentos, e não, como se temia, segmentos altamente mecanizados.
O estudo do Banco Mundial não é uma boa notícia para o Brasil. Distante geograficamente dos grandes centros da economia global (América do Norte, Europa e Leste Asiático), o Brasil poderia se beneficiar do "friend-shoring", justamente a modalidade em que não se detectou avanço em termos de investimentos greenfield das multinacionais dos Estados Unidos.
Em um momento em que capitais financeiros tendem a sair do Brasil pelas incertezas fiscais, a capacidade de atrair investimento das multinacionais pode vir a ser um trunfo importante. Adicionalmente, pelos efeitos do aumento do investimento e da absorção tecnológica, o investimento produtivo externo é uma ferramenta indispensável para que o Brasil possa crescer mais rapidamente de forma sustentável.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 3/1/2025, sexta-feira.
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