O ex-presidente Jair Bolsonaro e seu séquito no PL não gostaram do posicionamento do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, em favor da reforma tributária, o que levou até a vaias em encontro hoje do partido.
O fato, porém, é que a reforma tributária parece estar andando bem, obrigado. É evidente que é cedo para o governo cantar vitória num tema dessa complexidade e que há décadas mobiliza, em posições muitas vezes antagônicas, esferas da Federação e setores produtivos. Ainda podem surgir percalços e surpresas negativas. Mas o fato é que o andar da carruagem até aqui deve estar surpreendendo os mais pessimistas.
Para o cientista político Carlos Melo, do Insper, há uma série de interesses e circunstâncias que parecem se alinhar no momento de forma favorável à reforma tributária.
O primeiro fato mencionado pelo pesquisador são os diversos problemas de acusações e escândalos que vêm atormentando recentemente o poderoso deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. Seu nome aparece envolvido em casos recentes ou do passado como a venda de kits de robótica superfaturados para escolas públicas, rachadinha na Assembleia Legislativa de Alagoas, dinheiro vivo apreendido no aeroporto de Congonhas com um assessor e denúncias de estupro e agressão à ex-esposa.
Independentemente da culpa no cartório em cada um desses casos, a imagem do presidente da Câmara vem sofrendo um abalo. E, como observa Melo, "a aprovação da reforma tributária é a chance de o Lira ficar bem com a elite econômica e o mercado financeiro e sair um pouco da linha de tiro em que entrou nos últimos dias".
Outro fator que pode estar contribuindo para a tramitação da reforma tributária agora, na visão do cientista político, é a presença na chefia do Executivo de Lula, um político com muitas décadas de experiência em negociação - em contraste com a postura belicosa e o grande desinteresse de Bolsonaro pelos temas da sua própria pauta econômica. Adicionalmente, a melhora recente da economia fortalece o cacife de Lula.
Os dois fatores mencionados acima, prossegue Melo, podem explicar certa mudança da postura do Centrão que se enxerga após alguns meses do novo governo: "Com o Bolsonaro, o Centrão pedia e, se recebia, entregava; agora, continua não sendo de graça, mas o Centrão parece aceitar que a entrega seja feita antes e cobrada depois", resume o analista.
Finalmente, o professor do Insper cita o fato de que a reforma tributária é um assunto que vem sendo intensamente trabalhado por seus defensores há décadas na sociedade brasileira. De forma semelhante à reforma da Previdência em 2019, parece ter sido criado um certo consenso, inclusive com apoio da mídia e de importantes formadores de opinião.
Os atores cujos interesses imediatos são afetados pela reforma, por sua vez, como Estados e municípios, ou setores como o de serviços, já conseguem enxergar o ganho sistêmico e generalizado da mudança proposta. Dessa forma, em muitos casos passam da postura de bloquear para a de tentar minimizar eventuais perdas pela via da negociação (o que sempre leva ao risco, por outro lado, caso muitas exceções seja criadas, de diluir ou mesmo eliminar aqueles mesmos efeitos benéficos generalizados).
Já o cientista político Carlos Pereira, da EBAPE-FGV, que vem criticando a gestão por Lula da coalizão partidária, observa que a reforma tributária é uma pauta bastante palatável para a centro-direita que domina o Congresso Nacional - e que, como também apontou Melo, há décadas vem sendo lapidada nos meios técnicos e políticos.
"Os problemas de governabilidade de Lula aparecem quando o governo tenta tocar uma agenda distante das atuais preferências do Legislativo, o que não é o caso da reforma tributária", diz o cientista político. Ainda assim, Pereira considera até certo ponto surpreendente como a negociação está contornando as restrições de alguns atores importantes, como governos estaduais.
Na visão da coluna, que tende a concordar com os fatores mencionados pelos dois cientistas políticos mencionados acima, é inegável o mérito do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de ter chamado para a secretaria especial da reforma tributária o economista Bernard Appy. O secretário é talvez o quadro no Brasil que mais fez para que a reforma tributária saísse do estágio em que muitos concordam com o objetivo último, mas não aceitam sofrer nenhuma perda temporária, para a fase em que perdas e ganhos são negociados em cima de um projeto racional e claramente benéfico para o País como um todo.
E se Haddad tem o mérito dessa escolha, Lula tem o mérito de ter escolhido Haddad.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 6/7/2023, quinta-feira .
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.