Uma das questões mais candentes no debate econômico-político em boa parte do mundo, e fortemente presente também no Brasil, é a tributação dos ricos. A sensação geral é de que os que mais ganham e as empresas mais poderosas contribuem menos do que deveriam, valendo-se de uma miríade de artifícios legais, como a transferência contábil de lucros para paraísos fiscais.
Nos últimos dez anos, entretanto, surgiram importantes iniciativas multilaterais para combater a evasão e elisão fiscal pelas multinacionais e os muito ricos. Em 2017, foi lançado um sistema automático de compartilhamento de informações bancárias que hoje inclui mais de 100 países. E, em 2021, mais de 140 países chegaram a um acordo histórico em torno da proposta de um imposto de renda mínimo corporativo global de 15%.
Mas essas iniciativas estão tendo resultado? A resposta é mista, com algumas trazendo avanços, outras decepcionando, segundo um minucioso relatório recém-lançado pelo think-tank EU Tax Observatory (observatório tributário da União Europeia) sobre a evasão global de impostos.
O trabalho, que envolveu mais de 100 pesquisadores no mundo todo, foi coordenado pelos economistas Annette Alstadsäter, Sarah Godar, Panayiotis Nicolaides e Gabriel Zucman.
O francês Zucman, da Universidade de Califórnia em Berkeley, ganhador da Clark Medal deste ano (prêmio americano para economistas de menos de 40 anos, que têm muitos ganhadores que vieram a ganhar o Nobel também), é especialista em evasão e elisão fiscal de multinacionais e tem parcerias (incluindo coautoria de um livro) com Thomas Piketty, também francês, e o economista que mais contribuiu para trazer de volta o tema da desigualdade no debate global.
No prefácio ao documento do EU Tax Observatory, Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, que é cochairman da Comissão Independente pela Reforma da Tributação Internacional das Corporações (ICRICT, na sigla em inglês), escreve que a troca automática de informações bancárias mencionada acima, que restringiu o sigilo bancário em termos globais, levou a uma redução a um terço da evasão fiscal offshore.
Por outro lado, Stiglitz nota que a iniciativa do G20-OCDE conhecida como "Projeto Erosão de Base e Desvio de Lucros (BEPS, na sigla em inglês)", lançada em 2013 para combater a elisão fiscal pelas multinacionais, desapontou. A elisão corporativa continuou a aumentar e brechas e exceções neutralizaram os efeitos da proposta de 2021 de IR corporativo global mínimo de 15%.
Aliás, Stiglitz e as instituições pró-aumento da taxação de ricos e multinacionais nas quais o Nobel milita consideram que 15% é muito pouco para o IR corporativo mínimo global, e defendem a alíquota de 25%.
Em relação ao acordo do IR global mínimo de 15% para as multinacionais, o relatório aponta que as expectativas positivas de 2021 foram "dramaticamente reduzidas". Segundo o estudo, uma crescente lista de brechas criadas pelos países reduziu pela metade a projeção de que a iniciativa levaria a um aumento de 10% nessa fonte de receita tributária em termos globais.
Em 2022, cerca de US$ 1 trilhão em lucros das multinacionais, ou 35% do total, foi desviado para paraísos fiscais, levando a uma perda tributária global de 10% nessa base de impostos.
O estudo também indica que um fenômeno crescente no mundo é a evasão fiscal dos muitos ricos "na zona cinzenta na fronteira da legalidade". Segundo o trabalho, os bilionários globais pagam taxas de impostos equivalentes 0,5-1% do seu patrimônio, principalmente usando holdings para evitar o imposto de renda.
Uma das propostas do relatório é um imposto mínimo aos bilionários equivalente a 2% do seu patrimônio, que geraria receitas tributárias globais de US$ 250 bilhões a partir de uma base de menos de 3 mil pessoas.
Em relação ao Brasil, é interessante notar que a estimativa do relatório do EU Tax Observatory é de um ganho de quase R$ 40 bilhões por ano no IRPJ/CSLL com o acordo de tributação mínima da OCDE (e também aspectos relacionados à realocação da tributação das empresas bigtechs), que passavigorar no ano que vem.
Esse número inclui mudanças - já aprovadas no Congresso em maio deste ano - relativas a "preços de transferência" de multinacionais. Trata-se de reprimir a prática de subfaturar vendas das multís do Brasil para subsidiárias próprias em paraísos fiscais ou países com impostos menores, como forma de transferir o lucro do Brasil para essas jurisdições.
Outro aspecto relevante do relatório do EU Tax Observatory, relativamente ao Brasil, é que, caso a alíquota mínima internacional de tributação das multinacionais subisse de 15% para 25%, como os autores do trabalho defendem, o aumento de arrecadação anual no Brasil com IRPJ/CSLL aumentaria para cerca de R$ 85 bilhões.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças-, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 24/10/2023, terça-feira.
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