O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, recomendou ontem, na rede social X, um artigo do economista Bráulio Borges (LCA e IBRE-FGV), publicado no Observatório de Política Fiscal do IBRE, que defende ideias que vão contra algumas vacas sagradas da esquerda populista brasileira. A principal delas é a desvinculação de aposentadorias, pensões e Benefício de Prestação Continuada (BPC, programa social voltado a idosos e deficientes pobres) do salário mínimo. Assim, todas as aposentadorias e pensões, inclusive as que têm o valor de um salário mínimo, passariam a ser reajustadas apenas pela inflação. Naturalmente, isso levaria a que, em algum tempo, existissem aposentadorias, pensões e transferências do BPC inferiores a um salário mínimo.
Mas Borges, em seu longo e detalhado texto, também defendeu que os mínimos constitucionais de saúde e educação deixem de ser vinculados à receita pública, e passem a seguir pisos reais de gasto per capita ("de acordo com o público-alvo, população total no primeiro caso e crianças/jovens no segundo", segundo o texto), que poderiam crescer ao longo do tempo.
Aqui, trata-se de um caso curioso. Esse problema já estava resolvido - isto é, a educação e saúde já haviam sido desvinculadas da receita - até a promulgação do novo arcabouço fiscal, que por inépcia ou descuido, reintroduziu a indexação à receita.
A indexação do gasto de saúde e educação à receita é um critério ruim em si mesmo, independentemente da progressão do total a pagar, já que a arrecadação oscila muito, e não é bom ter um orçamento volátil para gastos tão importantes e tão dependentes de um bom planejamento.
Porém, além disso, a indexação à receita fará os gastos de saúde e educação tomarem uma parcela crescente da despesa total, pois esta, pelo novo arcabouço, tem que crescer a 70% do ritmo de alta da receita.
Basicamente, a regra atual de reajustes acima da inflação do salário mínimo (reintroduzida por Lula agora em seu terceiro mandato) combinada com a indexação do piso previdenciário e do BPC ao salário mínimo soma-se à vinculação da Saúde e Educação à receita para formar um bolo majoritário da despesa que crescerá necessariamente acima do total, espremendo todas os demais gastos. As despesas discricionárias, incluindo os nobres investimentos, que já estão próximas dos mínimos históricos, irão para patamares ínfimos e inviáveis.
No artigo, Bráulio também investe contra outras vacas sagradas do populismo (neste caso, da esquerda e da direita), como as irracionais renúncias de receitas tributárias e previdenciárias do MEI e do Simples Nacional.
O elogio de Haddad ao artigo de Borges incomodou, e muito, alas do pensamento econômico petista (ou próximas ao petismo) mais à esquerda. O economista David Deccache, doutor pela UnB e assessor do PSOL na Câmara de Deputados, considerou, em postagem na rede X, "gravíssimo" que Haddad recomende um texto que "defende ataques à Previdência Social, (sic) benefícios sociais e aos pisos constitucionais de saúde e educação".
Obviamente, o artigo de Borges agradou correntes simpatizantes do governo Lula mais ao centro, que apoiam as preocupações fiscais de Haddad. Em última instância, porém, quem decide temas tão sensíveis como indexação das aposentadorias ao mínimo e regra de reajuste de gastos de saúde e educação é Lula, que em mais de uma ocasião recente disse que as políticas de austeridade são imposições do mercado financeiro.
A sinalização de Haddad, ao recomendar o artigo de Borges, que contém essas rupturas importantes com tabus arraigados da esquerda no Brasil, é positiva, mas inteiramente dependente do aval de Lula. Que, pelo andar da carruagem recente, parece bem duvidoso, para dizer o mínimo. Tomara que a coluna se surpreenda.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 3/5/2024, sexta-feira.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.