Foto do(a) blog

Economia e políticas públicas

Opinião | Lula insiste em liderar a torcida organizada contra o ajuste fiscal

Não é nem a perda de poder do Executivo para o Legislativo, nem Gleisi e a esquerda do PT, nem os economistas heterodoxos pró-gasto. Hoje, o principal obstáculo às tentativas de Haddad de ajustar as contas públicas são as declarações do presidente contra medidas de ajuste fiscal.

PUBLICIDADE

Foto do author Fernando Dantas
 

Ninguém tem dúvida de que o ex-presidente Jair Bolsonaro enfraqueceu a presidência da República ao, primeiro, tentar ignorar o Centrão e, na sequência, amedrontado com o espectro do impeachment, se render abjetamente às pautas do grupo menos ideológico e mais fisiológico do Congresso.

PUBLICIDADE

Por outro lado, nem todo o avanço do Legislativo em prerrogativas tradicionais do Executivo no período mais recente (como na política orçamentária, via aumento de volume e maior impositividade das emendas parlamentares) deve ser visto com maus olhos. Como argumentam economistas do IBRE-FGV na Carta do IBRE deste mês, assinada por Luiz Guilherme Schymura, diretor do think-tank, em democracias maduras o Parlamento tem uma participação efetiva na elaboração do Orçamento bem maior do que no Brasil durante a fase de "presidencialismo de coalizão" que caracterizou o período da redemocratização brasileira até 2014, modelo do qual alguns sentem saudade.

Mas seja pelos bons ou maus motivos, o fato é que hoje as negociações da pauta econômica, e especialmente fiscal, entre o Executivo e o Legislativo é extremamente dura no Brasil, com a má vontade parlamentar típica contra corte de gastos e aumento de impostos.

Haddad volta e meia chama a atenção para esse problema. Alguém poderia dizer que o ministro da Fazenda se queixa de fome com a barriga cheia, pois emplacou várias medidas de aumento de tributos desde o início do terceiro mandato de Lula. Por outro lado, inícios de mandatos presidenciais são precisamente momentos de máximo capital político e durante os quais medidas que enfrentam mais resistência têm maiores chances de serem aprovadas. Adicionalmente, o cardápio tributário de Haddad em grande parte corrigiu distorções que beneficiavam ricos e empresas, o que, na seara de aumento de impostos, é a parte menos difícil politicamente.

Agora já não é mais início de mandato e o cardápio de correção de distorções tributárias está quase esgotado. É também o momento em que a lua de mel de novos presidentes normalmente dá sinais de algum esfriamento, e a queda na popularidade de Lula mostra que isso está ocorrendo. Portanto, é de se esperar que a relação do Executivo com o Congresso em torno da pauta econômica e fiscal se torne mais exasperante, como está acontecendo de forma visível em temas como a desoneração da folha de 17 setores, o PERSE (benefícios para empresas de eventos) e as emendas de comissão, para ficar no cardápio principal ou mais imediato.

Publicidade

Por uma combinação de sorte e mérito de Lula e Haddad, a economia brasileira vai relativamente bem em termos de atividade, setor externo e desinflação, numa comparação com outros países. Por outro lado, o ambiente financeiro internacional agora está atrapalhando, com os percalços da desinflação nos Estados Unidos adiando e reduzindo o escopo esperado do aguardado processo de queda da taxa básica de juros americana. O que deixa os Estados Unidos e o mundo com juros mais altos, se refletindo no Brasil tanto no câmbio mais depreciado como na curva de juros mais empinada.

É um momento delicado e sutil em termos de escolhas de política econômica. Por um lado, como o Brasil ainda vai bem, tocar com a barriga sempre é uma possibilidade e uma tentação. Por outro, uma possível gradual contaminação da bonomia interna pela instabilidade externa recomendaria reforçar os fundamentos, o que no Brasil é quase sinônimo de reforçar a política fiscal.

Essa segunda opção parece ser a preferida de Haddad, tanto por ideologia quanto por temperamento. Lula, porém, parece mais inclinado a apostar em, pelo contrário, combater a queda (modesta até agora, diga-se de passagem) de popularidade com mais expansionismo fiscal.

Dessa forma, fazendo a ligação com o início desta coluna, não se pode dizer que a dificuldade atual da agenda fiscal tenha como principal causa o estrago nos poderes do Executivo engendrado pela desgovernança política de Bolsonaro. Da mesma forma, é errado pensar que os principais "culpados" sejam Gleisi Hoffmann e a ala esquerda do PT, ou o coro pró-gasto dos economistas heterodoxos.

Na verdade, o principal obstáculo à pauta fiscal de Haddad hoje chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. Desde algum momento da segunda metade do seu primeiro mandato, Lula tornou-se um arauto do expansionismo fiscal como grande solução para os problemas do Brasil, e continua na mesma toada.

Publicidade

Hoje, por exemplo, como reportou o Broadcast (Iander Porcella, Sofia Aguiar, Gabriel Hirabahasi e Caio Spechoto), Lula declarou que tudo no Brasil é tratado como gasto, exceto o superávit primário. O presidente insiste nas ideias equivocadas de que investimento não é gasto (não é gasto corrente, mas é gasto) e que tudo o que, na sua cabeça, se constitui em 'bondades' para o povo não deveria ser considerado gasto, mas sim investimento.

Na verdade, Lula, com essa e outras falas presidenciais, continua a representar o seu papel favorito de grande chefe da torcida organizada nacional contrária ao ajuste fiscal estrutural. E é exatamente ele, como presidente e grande e carismático líder popular, que poderia, na posição contrária, liderar um esforço de remodular a opinião pública e as preferências do sistema político na direção de entender a vital necessidade do ajuste fiscal estrutural.

Sem o ajuste, Lula pode, com alguma sorte, navegar a maré econômica interna (cíclica) e a externa numa trajetória de popularidade suficiente para se reeleger em 2026. Mas não estará criando as condições para reengrenar um ciclo longo e sustentável de crescimento.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras. 

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 23/4/2024, terça-feira.

Publicidade

Opinião por Fernando Dantas
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.