Ninguém tem dúvida de que o ex-presidente Jair Bolsonaro enfraqueceu a presidência da República ao, primeiro, tentar ignorar o Centrão e, na sequência, amedrontado com o espectro do impeachment, se render abjetamente às pautas do grupo menos ideológico e mais fisiológico do Congresso.
Por outro lado, nem todo o avanço do Legislativo em prerrogativas tradicionais do Executivo no período mais recente (como na política orçamentária, via aumento de volume e maior impositividade das emendas parlamentares) deve ser visto com maus olhos. Como argumentam economistas do IBRE-FGV na Carta do IBRE deste mês, assinada por Luiz Guilherme Schymura, diretor do think-tank, em democracias maduras o Parlamento tem uma participação efetiva na elaboração do Orçamento bem maior do que no Brasil durante a fase de "presidencialismo de coalizão" que caracterizou o período da redemocratização brasileira até 2014, modelo do qual alguns sentem saudade.
Mas seja pelos bons ou maus motivos, o fato é que hoje as negociações da pauta econômica, e especialmente fiscal, entre o Executivo e o Legislativo é extremamente dura no Brasil, com a má vontade parlamentar típica contra corte de gastos e aumento de impostos.
Haddad volta e meia chama a atenção para esse problema. Alguém poderia dizer que o ministro da Fazenda se queixa de fome com a barriga cheia, pois emplacou várias medidas de aumento de tributos desde o início do terceiro mandato de Lula. Por outro lado, inícios de mandatos presidenciais são precisamente momentos de máximo capital político e durante os quais medidas que enfrentam mais resistência têm maiores chances de serem aprovadas. Adicionalmente, o cardápio tributário de Haddad em grande parte corrigiu distorções que beneficiavam ricos e empresas, o que, na seara de aumento de impostos, é a parte menos difícil politicamente.
Agora já não é mais início de mandato e o cardápio de correção de distorções tributárias está quase esgotado. É também o momento em que a lua de mel de novos presidentes normalmente dá sinais de algum esfriamento, e a queda na popularidade de Lula mostra que isso está ocorrendo. Portanto, é de se esperar que a relação do Executivo com o Congresso em torno da pauta econômica e fiscal se torne mais exasperante, como está acontecendo de forma visível em temas como a desoneração da folha de 17 setores, o PERSE (benefícios para empresas de eventos) e as emendas de comissão, para ficar no cardápio principal ou mais imediato.
Por uma combinação de sorte e mérito de Lula e Haddad, a economia brasileira vai relativamente bem em termos de atividade, setor externo e desinflação, numa comparação com outros países. Por outro lado, o ambiente financeiro internacional agora está atrapalhando, com os percalços da desinflação nos Estados Unidos adiando e reduzindo o escopo esperado do aguardado processo de queda da taxa básica de juros americana. O que deixa os Estados Unidos e o mundo com juros mais altos, se refletindo no Brasil tanto no câmbio mais depreciado como na curva de juros mais empinada.
É um momento delicado e sutil em termos de escolhas de política econômica. Por um lado, como o Brasil ainda vai bem, tocar com a barriga sempre é uma possibilidade e uma tentação. Por outro, uma possível gradual contaminação da bonomia interna pela instabilidade externa recomendaria reforçar os fundamentos, o que no Brasil é quase sinônimo de reforçar a política fiscal.
Essa segunda opção parece ser a preferida de Haddad, tanto por ideologia quanto por temperamento. Lula, porém, parece mais inclinado a apostar em, pelo contrário, combater a queda (modesta até agora, diga-se de passagem) de popularidade com mais expansionismo fiscal.
Dessa forma, fazendo a ligação com o início desta coluna, não se pode dizer que a dificuldade atual da agenda fiscal tenha como principal causa o estrago nos poderes do Executivo engendrado pela desgovernança política de Bolsonaro. Da mesma forma, é errado pensar que os principais "culpados" sejam Gleisi Hoffmann e a ala esquerda do PT, ou o coro pró-gasto dos economistas heterodoxos.
Na verdade, o principal obstáculo à pauta fiscal de Haddad hoje chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. Desde algum momento da segunda metade do seu primeiro mandato, Lula tornou-se um arauto do expansionismo fiscal como grande solução para os problemas do Brasil, e continua na mesma toada.
Hoje, por exemplo, como reportou o Broadcast (Iander Porcella, Sofia Aguiar, Gabriel Hirabahasi e Caio Spechoto), Lula declarou que tudo no Brasil é tratado como gasto, exceto o superávit primário. O presidente insiste nas ideias equivocadas de que investimento não é gasto (não é gasto corrente, mas é gasto) e que tudo o que, na sua cabeça, se constitui em 'bondades' para o povo não deveria ser considerado gasto, mas sim investimento.
Na verdade, Lula, com essa e outras falas presidenciais, continua a representar o seu papel favorito de grande chefe da torcida organizada nacional contrária ao ajuste fiscal estrutural. E é exatamente ele, como presidente e grande e carismático líder popular, que poderia, na posição contrária, liderar um esforço de remodular a opinião pública e as preferências do sistema político na direção de entender a vital necessidade do ajuste fiscal estrutural.
Sem o ajuste, Lula pode, com alguma sorte, navegar a maré econômica interna (cíclica) e a externa numa trajetória de popularidade suficiente para se reeleger em 2026. Mas não estará criando as condições para reengrenar um ciclo longo e sustentável de crescimento.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras.
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 23/4/2024, terça-feira.
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