A onda de memes na internet caçoando do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como um grande "taxador" ("Taxad"), isto é, uma autoridade econômica voltada a extrair mais impostos da população, é um dado novo a até certo ponto surpreendente na cena política brasileira.
Não que memes na internet sobre política sejam uma novidade. Mas geralmente eles se voltam contra ou a favor de políticos no topo da cadeia, como Lula e Bolsonaro, ou ao menos mais coloridos do que o discreto e circunspecto Haddad.
A novidade aqui é que um tema universal da direita - e especialmente da direita populista - parece estar se enraizando no sentimento popular voltado à política no Brasil. Tradicionalmente, a esquerda (e, em particular, a populista) busca votos prometendo gastar, sobretudo com os pobres, e a direita (novamente com destaque para a populista) busca votos prometendo cortar impostos pagos pela população.
Nos países com muita desigualdade e pobreza como os da América Latina, incluindo o Brasil, historicamente o populismo de esquerda foi mais presente. Desde o surgimento do fenômeno Bolsonaro, no entanto, apareceu no cenário nacional o populismo de direita (numa feição particularmente nociva), mas que esteve no seu primeiro impulso mais ligado à pauta comportamental e de valores. Agora, porém, parece que o tema de direita da indisposição do contribuinte em pagar mais impostos está ganhando mais tração junto ao eleitorado.
Alguns analistas apontaram, com certa razão, que a enxurrada de memes associando Haddad a aumento de impostos é injusta. Como mostrou em recente artigo (aliás, elogiado pelo ministro da Fazenda) o economista Bráulio Borges, da LCA e do IBRE-FGV, houve uma queda de 1,9 ponto porcentual (pp) do PIB nas receitas brutas da União e da Previdência do RGPS entre 2005-2008 e 2017-2019. Considerando que a maior parte do gasto federal é bastante rígido, é evidente que essa queda na receita é um problemão fiscal e a sua reversão (já ocorrida, mas apenas parcialmente antes de Lula chegar ao poder,) faz sentido para equilibrar as contas públicas.
Adicionalmente, a receita bruta caiu como proporção do PIB em 2023, primeiro ano de Haddad à frente da economia brasileira, saindo de 19,1% em 2022 para 18,7%. Aqui questões como queda de preços internacionais de produtos exportados pelo Brasil e desonerações eleitoreiras de Bolsonaro na undécima hora do seu mandato - e que afetaram 2023 - contaram mais do que atos concretos do novo governo.
E, na verdade, 2023 foi o ano em que Haddad aprovou quase todo o seu pacote tributário, sendo que os efeitos estão se fazendo sentir a partir de 2024. Neste espaço, na terça-feira, relatei que o economista Felipe Salto, respeitado especialista em finanças públicas, projeta aumento real superior a 8% da receita federal - neste caso, no conceito líquido - em 2024. Parte expressiva, ele aponta, deriva da agenda tributária de Haddad.
Só que essa agenda em sua grande maioria - com exceções como a taxação de compras internacionais de pequeno valor - voltou-se a fechar brechas fiscais pelas quais ricos e empresas conseguiam pagar menos impostos. Nesse ponto, parece de fato injusta a campanha de memes cujo mote é que o ministro da Fazenda está aumentando a taxação de pobres e da classe média.
O problema dessas críticas aos memes, porém, é que parece que subitamente a esquerda (e também analistas de centro) estão descobrindo que existe também populismo econômico de direita. Assim como Lula criou uma lei permanente de crescimento real do salário mínimo com impacto em uma enorme fatia do gasto federal (piso previdenciário, BPC, abono salarial, seguro-desemprego), que vai ter que ser arcada pelos bolsos das novas gerações, o ex-ministro da Fazenda, Paulo Guedes, deu aval às desonerações eleitoreiras do final do governo Bolsonaro.
E, na verdade, a redução da receita bruta federal nas últimas décadas apontada por Borges não se deu num vácuo técnico apolítico. Na verdade, ela já derivou de um sentimento anti-tributação do Legislativo que, naturalmente, está permanentemente sintonizado com os pendores do eleitorado. O próprio Borges em seu artigo destaca o momento em 2007 em que o Congresso derrubou a tentativa do Executivo de prorrogar a CPMF (com arrecadação em torno de 1,3% do PIB) até 2011. Essa ação do Legislativo teve um caráter político-ideológico (o que não exclui populista) claro, de praticamente inaugurar a agenda anti-tributo pós redemocratização, num momento em que o governo Lula embalava para uma forte expansão de gastos.
Assim, ao fim e ao cabo, talvez seja mais sensato para os participantes e observadores da cena política se acostumarem a fatos como a campanha de memes de "Taxad". Na verdade, uma cena política em que a esquerda defende gastos (e por isso é criticada por tributar) e a direita defende cortes (e por isso é criticada por não cuidar dos pobres) é talvez mais saudável do que a massa informe e fisiológica que geralmente decide as cartas da política brasileira - e que não vai desaparecer tão cedo, diga-se de passagem.
Aliás, alguns dos próximos passos da agenda tributária, como a reforma do Imposto de Renda, com temas como o fim ou diminuição das deduções médicas do IR e o aumento de tributação das "pejotinhas", com certeza vai afetar um pedaço maior do eleitorado (ainda que de classe média) do que a agenda voltada a ricos e empresas de 2023. É bom o ministro ir se acostumando com a zoação.
Fernando Dantas e colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 19/7/2024, sexta-feira.
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