O PL das mudanças no Imposto de Renda (IR) aparentemente "caiu bem" em termos políticos, com manifestações de apoio quase unânimes, e praticamente nenhum sinal de oposição. O discurso governista de justiça tributária - dos 10 milhões mais pobres que ganharão em contrapartida do recolhimento adicional de 140 mil muito ricos, que hoje contribuem menos do que deveriam - foi bastante bem articulado. E isso reflete a astuta formulação técnica da proposta.
A isenção até R$ 5 mil (e cadente até ser zerada em R$ 7 mil) pega um grupo social longe da base da pirâmide, que no Brasil pode ser seguramente classificado como de classe média. É a parte relevante do eleitorado em que Lula é particularmente carente de popularidade. O PL, portanto, mira de forma precisa os votos que o atual presidente vai necessitar para tentar vencer a eleição presidencial do próximo ano.
Do ponto de vista de um moderno projeto socialdemocrata para o País, porém, o PL deixa a desejar. Tendo aprovado a melhor reforma tributária do consumo politicamente possível no ano passado, o governo agora reduziu a ambição, ao utilizar a janela da reforma tributária da renda para uma jogada eleitoral.
Essa segunda etapa da reforma tributária deveria corrigir a regressividade "horizontal" e "vertical" dos impostos sobre a renda no Brasil. A horizontal se refere a profissionais com o mesmo nível de renda e com carga tributária sobre ela inteiramente diferente. Por exemplo, um advogado contratado pela CLT contribui muito mais que um advogado "pejotinha" no regime do Simples, o mesmo se dando com vários outros profissionais liberais.
Na sua metade voltada aos ricos, o PL do Imposto de Renda melhora alguma coisa a regressividade horizontal e vertical com a taxação adicional dos que ganham entre R$ 50 mil e R$ 100 mil por mês, mas não tem nenhum efeito para o enorme universo dos que ganham até R$ 50 mil.
Na sua metade voltada a quem ganha até R$ 5-7 mil, o PL não diminui a regressividade vertical do IR. A razão é que o universo de pessoas entre a atual faixa de isenção, de cerca de R$ 3 mil, e os R$ 5-7 mil do PL - que serão beneficiadas - se situa quase inteiramente acima da renda média brasileira.
Pensando em termos mais estruturais e de longo prazo, o PL, na sua parte do IR até R$ 5-7 mil, caminha na direção contrária ao que seria a "transição de modelo" necessária à economia brasileira, para usar a linguagem dos analistas da China.
A transição de modelo necessária na China e no Brasil são opostas. Enquanto a China tem um modelo baseado excessivamente em poupança e investimento, em detrimento do consumo, o Brasil tem um modelo baseado excessivamente em consumo, em detrimento da poupança e do investimento.
Se a taxação extra dos muito ricos fosse utilizada para aumentar o superávit primário, poderia haver ganho de poupança e se fortaleceria a política fiscal. Mas sendo usada para aumentar a renda - líquida de impostos - do meio da pirâmide, provavelmente terá o efeito contrário, já que a propensão a poupar aumenta com a renda.
Como nota adicionalmente o economista Bráulio Borges, da LCA 4Intelligence e do IBRE-FGV, esse gás de consumo extra está sendo encomendado num momento em que a economia brasileira está claramente superaquecida, e o BC luta para conter a demanda forte e a consequente inflação bem acima da meta.
O impulso à demanda, se o PL for aprovado, virá em 2026 - não coincidentemente um ano eleitoral, e quando a convergência à meta estará longe de ser um trabalho concluído -, mas possivelmente será antecipado via expectativas.
Em resumo, o PL do Imposto de Renda, na sua metade voltada às rendas até R$ 5-7 mil, só faz sentido em termos eleitorais.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 21/3/2025, sexta-feira.