A semana dramática nos mercados vai se encerrando com o Banco Central tendo vendido (desde 12/12, quinta-feira) US$ 17 bilhões, ou 4,6%, das reservas internacionais. Como comparação, em setembro de 2002, em pleno pânico eleitoral da primeira candidatura vitoriosa de Lula, venderam-se 5% das reservas internacionais.
A situação parece um pouco mais calma nesta sexta-feira, mas a pergunta natural é "como será a vida até o final de 2026?", os dois anos que Lula ainda tem como presidente (ele pode se reeleger para mais quatro, claro).
Está evidente que a crise de confiança entre Lula e o mercado é muito grave, e que no nível agudo desta semana é insustentável. Mas nada garante, por enquanto, que esse nível agudo será mantido indefinidamente. O mercado é sabidamente ciclotímico, e tanto Fernando Haddad, ministro da Fazenda, como Gabriel Galípolo, presidente do Banco Central a partir de 2025, soaram as palavras certas ontem e hoje para tentar mitigar o pânico desta semana. Se der certo, volta-se em algum momento à desconfiança crônica, mas não descontrolada, dos investidores - o estado de espírito que prevalece, com altos e baixos, desde o início do terceiro mandato de Lula.
Mas a questão permanece: e 2025 e 2026? Existe alguma chance de que a relação entre o governo e o mercado evolua para um nível menos tenso, com redução substantiva do alto grau de desconfiança?
O cientista político Carlos Pereira (EBAPE-FGV) pensa que não. Ele recorda, inicialmente, que de fato Lula foi um presidente com alta responsabilidade fiscal no seu primeiro mandato, dando continuidade e até aprofundando o ajuste ortodoxo do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
No entanto, num momento subsequente, que englobou basicamente o seu segundo mandato, Lula deu uma virada heterodoxa. Segundo Pereira, uma série de fatores empurrou o presidente nessa direção: a descoberta do pré-sal, o boom de commodities e a crise de 2008-2009 (quando impulso fiscal virou a recomendação básica do establishment econômico-financeiro global).
O pesquisador nota que Lula sempre foi um presidente de esquerda, que implementou políticas ortodoxas a contragosto. No momento em que assessores e conselheiros passaram a lhe apontar que a austeridade não era mais necessária, Lula deu vazão à agenda em que de fato sempre acreditou, que era a da inclusão social e maior intervencionismo do Estado. Com exageros que levaram à insustentabilidade, essa linha de governo entrou em colapso no segundo mandato de Dilma, interrompido pelo impeachment.
No seu terceiro mandato, raciocina Pereira, é muito improvável que Lula abrace novamente a agenda mais ortodoxa e liberal do primeiro, pela simples razão de que seu horizonte político pessoal se tornou muito mais curto. Em 2003, ele tinha potencialmente a maior parte da sua vida política pela frente, e plantar para colher no futuro fazia mais sentido para o presidente. Hoje, com certeza, sua trajetória política se aproxima do fim.
Nesse contexto, para o cientista político, Lula está preocupado com o seu legado, que será muito marcado por como foi seu último período no poder. Naturalmente, ele não quer ser associado à agenda ortodoxa do ajuste fiscal, mas sim à expansão de programas sociais, à queda da pobreza e da desigualdade e outros temas de esquerda.
Dessa forma, Pereira crê que Lula fará as concessões mínimas ao ajuste desejado pela Fazenda e pelo BC. O cálculo presidencial é tentar fazer a economia (a que afeta a maioria da população) chegar num ritmo satisfatório a 2026 e, ao mesmo tempo, tocar sem grandes empecilhos a sua agenda de inclusão social.
O pesquisador nota que recriar uma relação de confiança entre o mercado e Lula, ao contrário, iria requerer que o presidente fosse "mais realista que o rei" em termos de disposição de enfrentar o problema fiscal estrutural, já que se parte de um nível muito forte de desconfiança.
"Lula teria que ser draconiano, e não vejo isso acontecendo", diz Pereira.
O pesquisador esclarece que, na sua visão, a preocupação de Lula com seu legado visa conquistar melhorias em termos de pobreza e desigualdade ainda enquanto estiver no poder, e a preocupação com a sustentabilidade desses avanços não será a maior prioridade. Não se trata de fincar os pilares para um ciclo de desenvolvimento sustentável cujos frutos serão colhidos depois que ele tiver encerrado sua vida pública (e que possivelmente podem maturar plenamente até depois da sua vida física).
Rafael Cortez, analista político da consultoria Tendências, também vê poucas chances de uma relação mais amigável entre Lula e o mercado neste mandato do atual presidente.
Ele pondera que a aproximação do calendário eleitoral só vai tornar ainda mais forte os problemas tradicionais que o atual governo tem em enfrentar o nó das despesas obrigatórias, para não falar da atitude também pouco cooperativa do Congresso em termos de um ajuste fiscal mais profundo e estrutural.
"Eu vejo mais um cenário em que o governo vai tentar ter o controle suficiente para evitar uma crise de confiança grave como a desta semana, do que ações para efetivamente reverter o cenário de desconfiança", diz o analista.
Ele acrescenta que a desconfiança do mercado deriva do fato concreto de que o governo de Lula em seu terceiro mandato é inseguro diante da forte polarização do país e da ameaça eleitoral do bolsonarismo e da direita e extrema-direita em geral. O analista observa que essa questão afeta governos no mundo inteiro, com os recentes e graves problemas políticos enfrentados pelos centristas Emmanuel Macron e Olaf Scholz, respectivamente na França e Alemanha, tendo relevantes aspectos fiscais e orçamentários.
"A agenda fiscal é muito divisiva e o governo no Brasil gere muito mal as expectativas, como ficou claro na inclusão da isenção do imposto de renda no pacote fiscal", aponta Cortez.
Na visão dos analistas ouvidos nesta coluna, os cintos de segurança terão que ficar apertados durante todo o longo voo de 2025 e 2026.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada em 20/12/2024, sexta-feira.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.