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Economia e políticas públicas

Opinião | Vontade de gastar

Segundo Samuel Pessoa, pela primeira vez em muito tempo vemos nos Estados Unidos uma combinação de domínio democrata na Casa Branca e nas duas Casas do Congresso e um presidente disposto a dar um impulso fiscal de proporção (relativamente à conjuntura) ousada.

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Atualização:

O pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão proposto pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, é um marco político-econômico no cenário norte-americano considerando-se o período desde pelo menos os primeiros anos de Paul Volcker na presidência do Federal Reserve (Fed, BC dos EUA), na virada entre as décadas de 70 e 80.

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A análise é do economista Samuel Pessoa, chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office e pesquisador associado do FGV-Ibre.

Pessoa nota que é a primeira vez em muito tempo em que, não só os democratas terão a presidência do Executivo e a maioria nas duas Casas do Congresso, como também a conjuntura e a disposição do presidente eleito vão na direção de se fazer uma expansão fiscal não só grande, mas ousada.

Curiosamente, nota Pessoa, as últimas décadas da história norte-americana foram caracterizadas por Executivos republicanos menos responsáveis em termos fiscais e democratas mais responsáveis.

A ironia é que, ao olhos brasileiros pelo menos, a direita costuma ser vista como mais fiscalista que a esquerda. E não há dúvida que o Partido Republicano está à direita do Partido Democrata.

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Nas décadas iniciais do pós-Guerra, observa Pessoa, vigorou a chamada "era de ouro" do capitalismo keynesiano, em que estímulos fiscais, busca do pleno emprego, crescimento forte e inflação controlada conviveram sem problemas. Isso ocorreu nos Estados Unidos e em outros países ricos.

Nos anos 70, marcados pelo fim do regime cambial fixo do "padrão ouro-dólar" e por duas crise de petróleo, a bonança foi substituída pela estagflação.

Volcker domou a inflação com pauladas de juros e forte recessão, mas abriu-se o caminho para uma nova fase de crescimento com inflação controlada. Mais recentemente, entretanto, o crescimento murchou, junto com a inflação e os juros, no que alguns chamam de "estagnação secular".

Em termos políticos, a fase a partir dos anos 80 teve grande predomínio de governos americanos (em sentido amplo) divididos: foram poucos, e geralmente curtos, os períodos em que o presidente contou com maioria de seu partido na Câmara e no Congresso.

Nesse período dos anos 80 até hoje, na visão de Pessoa, os republicanos tenderam a ser menos responsáveis na área fiscal. Houve aumento de gastos militares, mas o que pesou mesmo foram as políticas de cortes de impostos, vistas como um meio de acelerar a economia pelo lado da oferta.

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Já os governos democratas dessa era, que foram de natureza bastante centrista, tenderam a fazer ajustes fiscais, até para contrabalançar a piora das contas públicas nos governos republicanos.

Por dois breves períodos os democratas tiveram, nessa fase, domínio do Executivo e das duas Casas do Congresso: em 1993 e 1994, dois primeiros dos oito anos do governo Clinton; e 2009 e 2010, dois primeiros dos oito anos do governo Obama.

Em ambas as ocasiões, e ao longo de todo o mandato desses dois presidentes, prevaleceu uma postura prudente na área fiscal.

Particularmente interessante, para Pessoa, são os dois primeiros anos do governo Obama. Vindo logo depois da grande crise global, havia necessidade e plena justificativa para se fazer políticas de grande impulso fiscal.

E Obama fez. Porém, assessorado por prestigiadas figuras do establishment econômico-financeiro, como Timothy Geithner, seu secretário do Tesouro, e Lawrence Summers, diretor do Conselho Econômico Nacional (o principal fórum de discussão econômica vinculado à presidência dos Estados Unidos), Obama ficou aquém do receituário mais agressivo em termos de estímulo fiscal que era discutido na época.

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Pessoa pensa que, provavelmente, se alguns desses auxiliares de Obama - como Summers, que viria a levantar a questão da estagnação secular e passou a defender maiores gastos públicos mais recentemente - voltassem a 2009, com o conhecimento de hoje, teriam preferido um impulso fiscal mais ambicioso.

Após a grande crise global, os Estados Unidos viveram também, ainda que menos que a Europa, o temor da "japanização" - isto é, o risco de ficar décadas não só com inflação baixíssima (com momentos de deflação no caso japonês, iniciado na virada da década de 80 e 90 e que dura até hoje) e juros zerados ou quase zerados, mas também com demanda anêmica e crescimento muito deprimido.

Se um pacote fiscal maior logo na saída da crise global teria levado os Estados Unidos a um crescimento de médio prazo mais robusto, é impossível dizer. Porém, pelo que se conhece hoje, parece que teria valido a pena o risco - na visão de Pessoa.

Agora, no entanto, na saída da recessão provocada pela pandemia, e sem que os sintomas preocupantes (baixos juros, inflação e crescimento) pós crise-global tenham sido totalmente eliminados, os democratas estão de volta ao poder, com domínio do Executivo, da Câmara e do Senado.

Nesse sentido, é de se esperar que venha chumbo grosso em termos de impulso keynesiano nos Estados Unidos pelo lado do gasto (e não do corte de impostos, como foi típico dos republicanos).

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Há benefícios e riscos nessa estratégia, tanto para os Estados Unidos quanto para o mundo, Brasil incluído. A retomada americana e global deve se acelerar bastante, mas também há algum risco inflacionário.

Uma ressalva é que o controle do Senado pelos democratas se dá apenas pelo voto de Minerva da vice-presidente Kamala Harris, já que tanto os partidários de Biden como os republicanos detêm 50 cadeiras. E, como há democratas mais conservadores, inclusive em termos fiscais, os planos expansionistas de Biden podem ser sujeitos a algum freio. O pacote de US$ 1,9 trilhão pode vir a ser podado.

Ainda assim, a estrada para o impulso fiscal keynesiano parece aberta como há muito tempo não esteve nos Estados Unidos.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 15/1/2021, sexta-feira.

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Opinião por Fernando Dantas
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