Filha de ‘rei da soja’ abre disputa judicial e questiona partilha de bens na família Maggi

Irmã por parte de pai do ex-ministro da Agricultura e ex-governador do Mato Grosso Blairo Maggi, Carina Maggi Martins afirma ter sido ‘enganada’ em divisão do espólio feita há vinte anos

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Foto do author Felipe Frazão
Atualização:

BRASÍLIA - A família Maggi, dona de um império da soja no País, vive uma disputa patrimonial interna. Uma das filhas de André Antônio Maggi, fundador da Amaggi, entrou com processo na Justiça para questionar a divisão societária de empresas do grupo. Fruto de um relacionamento extraconjugal, Carina Maggi Martins diz ter sido “enganada” pelo restante da família e suspeita da herança que recebeu vinte anos atrás.

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Com a morte do patriarca, em 22 de abril de 2001, os seis herdeiros e a viúva Lúcia Maggi, que foi apontada em 2022 pela revista Forbes como a mulher mais rica do Brasil, procederam à divisão de bens. Na ocasião, Carina recebeu, à época, o equivalente a R$ 1,9 milhão (corrigido pelo IGP-M, isso seria hoje algo como R$ 10,6 milhões). O valor recebido por ela na partilha, por meio de acordo sobre o espólio, foi idêntico ao que os cinco irmãos receberam. No acerto, promovido perante a Justiça, ela aceitou ceder seus direitos e ficar excluída da condição de herdeira, o que na prática a retiraria de futuras divisões de bens.

Anos depois, diante das notícias de riqueza muito superior da viúva e dos irmãos por parte de pai, além do valor bilionário de suas fortunas e empresas (estimada pela Forbes em US$ 6,9 bilhões no ranking do ano passado), ela passou a questionar o acordo feito. O grupo Amaggi está entre os maiores exportadores de soja do mundo. Carina pediu a nulidade do acordo em 2007, mas houve prescrição do prazo, e o processo foi considerado legal pelo Superior Tribunal de Justiça, em 2015, sem possibilidade de novo recurso.

Filha de 'rei da soja', Carina Maggi Martins questiona divisão patrimonial na família Foto: Carina Maggi Martins/Acervo pessoal

O acordo, firmado em maio de 2002, repartiu o patrimônio de André, então estipulado em R$ 23,9 milhões. A divisão recaiu apenas sobre esse montante. Só que, para Carina, pode ter havido uma manobra a fim de blindar o real patrimônio de seu pai. Segundo sua defesa, parte significativa dos bens usufruídos pelo pai estava em nome de empresas e, por isso, não entrou na divisão. Eles querem quebras de sigilo de 12 empresas e até a tentativa de localizar recursos no exterior, no período de 11 anos, entre 1995 a 2006.

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Por sua vez, os advogados da viúva, Lúcia Maggi, e dos filhos Blairo, Marli, Maria de Fátima, Vera Lúcia e Rosângela Maggi, argumentaram na Justiça que o acordo assinado em 2002 não deve ser rediscutido. Segundo eles, Carina Maggi aceitou os termos, tendo sido assistida pela mãe, por juiz e promotor de Justiça, além de ter perdido o prazo para questioná-lo.

A defesa dos Maggi diz que o acordo foi validado na instância superior e que todos os irmãos receberam a mesma quantia, apurou a reportagem. Procurada para dar sua versão, a família informou, por meio da assessoria de comunicação da Amaggi, que “não irá comentar o assunto, reservando-se a tratá-lo somente na esfera judicial”.

Fato novo

A defesa de Carina diz ter descoberto um fato novo: por meio de registros públicos, identificaram que, dias antes de morrer, André Maggi deixou a sociedade de duas das maiores empresas da família em favor da mulher Lúcia, cedendo toda sua participação. Em documento enviado à Justiça, os representantes de Carina Maggi questionam esses atos às vésperas da morte do pai. “Hoje eu já tenho mais noção. Meu pai tinha muito mais”, queixou-se Carina Maggi, que se diz “enganada” pelos irmãos.

Os advogados dela estimam que o patrimônio correto da família Maggi, para divisão entre viúva e herdeiros, na proporção legal de 50% para cada, deveria ter sido da ordem de R$ 2 bilhões. O cálculo toma por base o capital social das empresas, em 2001. Nesta estimativa, Carina deveria ter direito a R$ 83 milhões, uma sexta parte da metade do patrimônio do pai, argumenta a defesa. O restante ficaria com os cinco irmãos, com ⅙ cada, e R$ 1 bilhão com Lúcia Maggi. Os advogados de Carina dizem ainda que bens como carros e avião, entre outros, não eram registrados em nome de André Maggi, mas das empresas, e que escaparam bens do espólio, entre eles ativos no Mato Grosso.

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Um dos objetivos de Carina é obter na Justiça uma confirmação desses valores, para levar à nulidade do acordo anterior ou forçar uma nova divisão de bens. A defesa afirma que a ideia é, uma vez apurado o patrimônio do “rei da soja” por ocasião de seu falecimento, fazer um novo acordo acerca dos bens do espólio, descontados os R$ 23 milhões que já foram fruto de um acerto 21 anos atrás.

Carina ingressou em março com uma ação para produção antecipada de provas, mas a juíza Vandymara G. R. Paiva Zanolo, da 4ª Vara Cível de Cuiabá, rejeitou a pretensão e extinguiu o processo. No último dia 18 de maio, ela voltou a negar um recurso da defesa e confirmou sua sentença original. Os advogados queriam ao menos uma audiência de conciliação entre as partes e prometem acionar as instâncias superiores.

A juíza afirmou que Carina queria rediscutir, por vias oblíquas, uma sentença já transitada em julgado e que a ação poderia promover uma “devassa” na vida empresarial e patrimonial da família. “Ora, se a embargante já discutiu as mesmas questões em ação anterior, transitada em julgado, não resta demonstrada a necessidade, utilidade e o cabimento da presente ação de produção antecipada de provas”, avaliou Vandymara. “Ainda, ante a natureza dos documentos solicitados, sigilosos, inclusive, a autora pretende exercer verdadeira fiscalização e devassa sobre a atividade empresarial dos requeridos, tudo sob o argumento de que foi enganada pelos demais herdeiros quanto ao real patrimônio do seu falecido genitor, no acordo livremente pactuado entre as partes, maiores e capazes, uma vez que a autora já era emancipada na época do pacto.”

Origem

Originários do Rio Grande do Sul, os avós maternos de Carina Maggi trabalhavam em uma das fazendas de André Maggi no interior do Paraná, durante a infância dela. O avô era capataz, e a avó, cozinheira. Desde que nasceu até os 6 anos de idade, ela morou em uma das fazendas do pai. André Maggi fundou a primeira unidade da Amaggi, a Sementes Maggi, em 1977, em São Miguel do Iguaçu (PR), a 40 quilômetros de Foz do Iguaçu (PR). A mãe de Carina, Maria Elena da Silva Abel, vivia numa das propriedades com os pais. De uma relação com André Maggi, quatro anos depois nasceria Carina, em 25 de setembro de 1981.

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Ela conta que soube de quem era filha aos 8 anos de idade e que a mãe nunca escondeu. Carina sempre morou com a mãe e os avós, num distrito de São Miguel do Iguaçu, e até hoje vive no município. Aos 41 anos, ela é casada e tem três filhos. A família tem uma vida estável. Carina é dona de casa, e o marido trabalha no ramo de transportes e administra terras de propriedade deles no Mato Grosso do Sul, onde também cultivam grãos. Na divisão do espólio paterno, Carina recebeu uma fazenda no Paraná, vendeu a propriedade e comprou as terras no Mato Grosso do Sul. Parte de sua renda hoje vem do cultivo da soja e do milho.

Carina é fruto de um relacionamento que nunca foi assumido pelo fundador da Amaggi em vida. Mas, segundo ela, era de conhecimento velado da família. O pai, narra ela, sempre custeou parte das despesas. Segundo conta, o pai repassava cerca de R$ 2 mil, o que ajudava a pagar uma escola privada. “Do jeito dele, ele sempre me ajudou. Eu ia todo mês conversar com meu pai e ele me dava cheques. Depois, ele não conseguia mais assinar, e um rapaz do financeiro da empresa me pagava em dinheiro”, afirma.

Ela diz que era mantida pelo pai, com pagamentos de uma pensão informal e despesas de escola, por exemplo. Enquanto André era vivo, afirma Carina, eles mantiveram, por alguns anos na adolescência, contato frequente, embora não convivessem no mesmo núcleo familiar dos demais irmãos. “Alguns meses antes de falecer ele me disse, umas três vezes, ‘minha filha, quando eu falecer, você vá atrás do que é seu por direito’. Eu entendi que ele não queria conflito enquanto estivesse vivo. Ele achava que eles (o restante da família) não sabiam, mas eles sempre souberam da história. Todos sabiam, aqui é um lugar pequeno. Todos comentavam”.

Reconhecimento da paternidade

Até a morte de André Maggi, o vínculo paternal nunca havia sido formalizado. Durante o funeral, ela afirma que foi imediatamente procurada pelos irmãos para fazer o reconhecimento. Carina disse que, durante o velório, o irmão Blairo Maggi pediu que um motorista fosse buscá-la para ir a seu encontro. Numa conversa, propôs que fossem até um laboratório em Foz do Iguaçu (PR) na manhã seguinte, assim que fosse feito o sepultamento. “O Blairo me disse que ficasse à vontade, que podia chegar perto do pai. E ele logo me disse: ‘Uma coisa, amanhã o pai vai ser enterrado às 10h e a gente vai lá em Foz fazer o DNA’. Eu disse, ‘Vamos, não tenho medo. Minha mãe sempre disse que sou filha do meu pai’”, conta ela.

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Segundo Carina, Blairo Maggi manteve os pagamentos que eram feitos por seu pai até a divisão dos bens Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

O combinado foi feito. Com a paternidade confirmada, ela conta que Blairo prometeu e manteve o pagamento da mesma quantia até que pai lhe dava, a título de pensão, até que houvesse um acordo sobre a partilha de bens. Carina foi formalmente registrada e a família deu início ao processo de inventário, no qual foi representada pela mãe. Ela tinha 21 anos e foi emancipada para firmar o acerto. Embora o valor apresentado para a partilha tenha sido um patrimônio de R$ 23 milhões, a defesa de Carina quer um levantamento completo das movimentações do pai e da esposa, além dos irmãos. A defesa de Carina se apoia em investigações próprias e questiona procedimentos anteriores ao acordo judicial assinado por ela, dias antes da morte de André Maggi. Ele deixou a participação em uma empresa 25 dias antes do falecimento e, em outra, 11 dias antes.

Em um pedido de produção antecipada de provas, eles apontaram que essa “manobra” teria excluído da partilha a Agropecuária Maggi Ltda, que teria “dezenas de imóveis” e funcionava como “holding” familiar. O patriarca saiu dessa sociedade 11 dias antes de seu falecimento, doando à mulher o equivalente a R$ 32,2 milhões. Já a doação das cotas dele na Sementes Maggi, que ocorreu 25 dias antes da morte, era equivalente a R$ 10,7 milhões.

Um dos pontos que eles desconfiam tem a ver com a condição de saúde de André Maggi por ocasião da saída das empresas. Segundo a defesa de Carina, ele sofria de Mal de Parkinson e as assinaturas, no repasse de cotas, são bastante diferentes. Uma teria traço firme, enquanto a outra teria deixado impresso no documento o tremor característico da doença. André Maggi assinou as duas num intervalo de poucos dias antes de morrer, segundo a defesa. Por isso, querem a quebra de sigilo médico, para saber se ele tinha capacidades motoras e psíquicas.

Outra questão levantada pela defesa é que, conforme a legislação atual e a vigente à época, André Maggi não poderia se desfazer completamente das ações em favor da mulher, doando mais de metade de seu patrimônio, sem que tivessem a concordância, por meio de renúncia dos herdeiros. Eles alegam que ela mesma nunca opinou sobre isso, embora, na data, ainda não fosse legalmente reconhecida como filha. Isso só ocorreria nos dias seguintes à morte do pai. “Ele (André Maggi) não poderia ter feito isso, até para uma discussão entre os filhos, mas nem todos foram prejudicados. Tenho certeza que os demais irmãos depois foram aquinhoados pela mãe. Mas a Carina não fazia parte desse ‘direito’ que eles criaram”, diz Josmeyr Oliveira, advogado de Carina Maggi. “Discutimos se ele estava lúcido.”

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