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Fronteira tem ‘mercado da aposentadoria’ para venezuelanos assim que chegam no Brasil

Em Pacaraima (RR), escritórios de ‘assessoria previdenciária’ cobram até R$ 7 mil para aposentar venezuelanos que deixam o país de Nicolás Maduro; lei brasileira dá o direito a quem mora legalmente no Brasil, mas esquema também explora documentação falsa para obter benefícios

Foto do author Vinícius Valfré

PACARAIMA (RR) E SANTA ELENA DE UAIRÉN (VENEZUELA) – O drama de venezuelanos em fuga da Venezuela para o Brasil alimenta um negócio. A chegada diária de centenas de imigrantes pela fronteira em Pacaraima, no Norte de Roraima, fez abrir na cidade um mercado de concessão de aposentadoria e do Benefício da Prestação Continuada (BPC) focado nesses estrangeiros. A lei até garante esse direito a estrangeiros que residem no País com a documentação correta. Mas, na região, há um mercado de intermediários, ainda não quantificável, que também usa falsos comprovantes para que venezuelanos usufruam dos benefícios sem que façam jus.

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O serviço custa entre R$ 6 mil e R$ 7 mil e é vendido com a promessa de que o primeiro pagamento pode sair a partir de 12 dias após o requerimento. O valor, para os intermediários, costuma ser quitado com a entrega integral das primeiras parcelas de R$ 1.412 depositadas mensalmente pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O BPC é um benefício assistencial pago a idosos ou a pessoas com deficiência e não acumula com a pensão a aposentados por idade. O governo estima que em 2025 pagará quase R$ 113 bilhões para cerca de 6 milhões de pessoas e a própria equipe econômica fala que está fazendo revisões de fraudes na concessão do benefício.

Sobre as práticas descritas na reportagem, o INSS diz não ter recebido denúncias em sua Ouvidoria. O Estadão apurou que a Polícia Federal tem investigação em andamento.

Localizada a quatro horas da capital Boa Vista, Pacaraima é a cidade que recebe o primeiro impacto da crise social e econômica no país vizinho. Na Venezuela, o salário mínimo é de cerca de US$ 3,5 – o regime ditatorial de Nicolás Maduro paga até US$ 40 como “bônus de alimentação” e US$ 90 de “bônus de guerra econômica”, o que, ao todo equivale a R$ 680 reais por mês. A vinda para o Brasil é percebida como a chance de ter o que comer, de obter amparo assistencial do governo brasileiro, trabalhar e de recomeçar a vida.

Venezuelano observa instruções sobre acesso a benefícios do governo brasileiro em um escritório de "assessoria previdenciária" em Pacaraima (RR) Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

O reflexo da migração em Pacaraima aparece nos postos de saúde, nas escolas e nas ruas que servem de abrigo para os que não cabem ou não querem os alojamentos da Operação Acolhida – estima-se que pelo menos 1,6 mil venezuelanos estejam vivendo em 16 novas favelas da cidade da fronteira. As consequências também estão na procura por benefícios e no mercado que se consolidou na cidade.

Imigrantes tentam se proteger do sol na fila de longas horas pela qual precisam passar para entrar legalmente no Brasill, em Pacaraima (RR) Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

A partir do fim de 2022, houve um salto no pagamento de BPC no município de 20 mil habitantes. Em dois anos, a despesa mensal com o benefício saltou de R$ 328 mil para R$ 1,3 milhão. Segundo dados de agosto, 924 recebem o benefício e 7,4 mil famílias – o equivalente a quase toda a cidade – estão registradas no Cadastro Único, condição necessária à população de baixa renda para acesso a benefícios sociais.

A parte ilegal do esquema que aposenta imigrantes na fronteira envolve “assessores previdenciários” e “coiotes” venezuelanos que trazem compatriotas exclusivamente para dar entrada nos pedidos à Previdência brasileira. Após superadas as burocracias, os falsos beneficiários deixam cartões e senhas com intermediários e voltam à Venezuela.

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Documento usa endereço genérico em autodeclaração de residência no Brasil de um venezuelano que busca benefícios sociais do Brasil Foto: Vinícius Valfré/Estadão

O Estadão apurou que um falso comprovante de endereço pode ser comprado por R$ 500. A situação também está no radar da equipe do Ministério Público de Roraima em Pacaraima. A promotoria tem conhecimento de casos de brasileiros que recebem dinheiro para entregar falsos contratos de aluguel usados para demonstrar que o estrangeiro vive na cidade.

Os que não conseguem comprar os documentos apresentam endereços genéricos em autodeclarações, um tipo de documento aceito pelo governo brasileiro. A reportagem teve acesso a uma “autodeclaração de residência” de um venezuelano que se preparava para pedir os benefícios. O endereço indicado: (Rua) BR (número) 174, Centro. A BR-174 é a rodovia que liga Roraima à Venezuela.

Aliciamento começa na placa de boas-vindas da Operação Acolhida

Os carros e vans que chegam todos os dias com lotação máxima estacionam a poucos metros da placa que dá as boas-vindas aos imigrantes e informa que a Operação Acolhida dará a eles comida, refúgio e documentação. O primeiro contato de quem cruza de Santa Elena de Uairén para Pacaraima não é com nenhum oficial de migração. A entrada em Pacaraima segue a característica das fronteiras secas. O trânsito de pessoas é livre, e só para no entreposto oficial, a 50 metros da placa, quem quer ou precisa.

A placa que informa os imigrantes sobre a Operação Acolhida, nos primeiros metros depois da linha que divide o Brasil com a Venezuela, em Pacaraima (RR) Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Na prática, a recepção é feita por homens venezuelanos que se apresentaram à reportagem como vendedores de café ou voluntários dos compatriotas. Eles se disponibilizam a ajudar com as malas e com informações sobre quais filas os recém-chegados devem tomar. Nas primeiras horas da manhã, há distribuição de panfletos com ofertas de “pensión por edad” e “auxilio por incapacidad”.

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Cerca de 1,1 milhão de venezuelanos entraram no Brasil desde 2017. Pacaraima foi a porta de entrada para 76% desse contingente. Uma parte já se estabeleceu no Brasil e hoje orienta e auxilia financeiramente amigos e familiares em processo de partida. Para muitos dos que aparecem diariamente na fronteira, no entanto, tudo é novo. Em meio às dúvidas da chegada do lado de cá, qualquer um que esteja nas imediações da placa de boas-vindas vira orientador. Seja o repórter, seja o compatriota “voluntário”.

Segundo agentes da operação, entre estes voluntários estão aqueles que identificam os mais vulneráveis e oferecem uma variedade de serviços, incluindo os oferecidos gratuitamente pelo governo brasileiro. Ciente da atuação de golpistas, a Operação Acolhida distribuiu cartazes que destacam a gratuidade de todos os serviços que os venezuelanos precisam para entrar legalmente no Brasil e para acessar programas como o Bolsa Família.

Intermediário que trazia venezuelanos para aposentar ameaçou ex-patrões

No portão de uma “assessoria previdenciária” na cidade, um cartaz escrito à mão informa, em espanhol, o “horario de trabajo”, de “lunes a viernes”. O escritório funciona em uma casa localizada em frente ao imóvel usado pela Pastoral da Pessoa Idosa, braço da Igreja Católica para atenção social e espiritual à terceira idade.

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Em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, brasileiros criaram um mercado para aposentar estrangeiros no INSS. Em alguns casos, venezuelanos que não vivem no Brasil conseguem os benefícios depois de apresentarem documentos falsos de residência. Na foto, horário de funcionamento de uma "assessoria previdenciária" Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Ali, um venezuelano era contratado informalmente para trazer compatriotas para requerer aposentadorias. O trabalho ficou tão relevante ao negócio que ele chegou a ter custos de moradia cobertos pela empresa. Mais tarde, foi acusado de “abusar da confiança” dos patrões e, contrariado, passou a ameaçá-los. O caso foi parar na polícia, que prendeu temporariamente o estrangeiro.

Ele continua na cidade e, com a experiência adquirida em benefícios sociais, vende documentos falsos de residência, segundo pessoas que conhecem o caso. A reportagem teve acesso ao boletim de ocorrência, mas o nome dele não será citado porque ele não foi localizado para comentar.

Uma funcionária da assessoria disse à reportagem que obter a pensão para um venezuelano é mais fácil e rápido do que para um brasileiro. “Cobramos 30% do retroativo da pensão referente à data em que damos a entrada no pedido e mais R$ 7 mil. Para estrangeiro, sai no máximo em três meses. Tem caso que sai em 12 dias. Para brasileiro é muito mais difícil, tem caso que demora mais de um ano”, disse.

Ela deu informações à reportagem após telefonar para um advogado da empresa e perguntar sobre como lidar com a abordagem da equipe. A mulher afirmou que não aceita autodeclaração de endereço dos venezuelanos, mas admitiu que não cabe ao escritório o controle sobre o local verdadeiro de moradia do cliente. “Tem um pessoalzinho aí que está cobrando por ‘carta de residência’, cobram pelo endereço para um documento de como se o venezuelano estivesse vivendo aqui. Esse pessoal entra, sai e vai embora”, disse.

A reportagem presenciou o contato de uma pessoa que buscava orientações sobre como aposentar venezuelanos com outra assessora previdenciária. “O pagamento só é feito quando sai a pensão. A gente não cobra nada antes. Eu ganho R$ 100 por pedido que dou entrada, mas é pelo escritório”, explicou.

O venezuelano José Cabeza Pereira, 73 anos, teme ficar sem receber a aposentadoria do INSS porque a autorização de dois anos para residir no Brasil vence em 20 dias. O idoso passou uma manhã inteira nas tendas da Operação Acolhida e saiu frustrado ao ser orientado que deveria peregrinar novamente pelas mesmas filas dos imigrantes que acabaram de chegar. Assim que resolvida à situação, pretende voltar à Venezuela. “Vivo seis meses lá, seis meses aqui”, contou.