BRASÍLIA – A proposta de fusão entre Azul e Gol, se aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sem mecanismos para reduzir a presença das companhias, resultaria em 62% de concentração no mercado doméstico. No histórico de julgamentos do Cade, o risco de domínio inferior a esse patamar resultou em pressão pela desistência do processo entre TAM e Varig, em 2003, somente havendo aprovações para concentrações máximas de 44% entre casos julgados desde 2007.
Questionados sobre a alta concentração de mercado, o Cade afirmou que “não há edital de notificação sobre o ato de concentração em questão”; a Azul, que “a combinação promoverá a indústria aeronáutica e a economia brasileiras” (leia a íntegra da nota mais abaixo); e a Gol, que não comentaria.

A intenção de unificar as operações das duas empresas tem como objetivo, segundo os representantes, fortalecer suas operações, que enfrentam dificuldades financeiras nos últimos anos, estando a Gol em processo de recuperação por dívidas que somam R$ 20 bilhões. Mas a enorme fatia que as empresas já dominam no mercado brasileiro é um desafio inédito para o Cade.
O CEO da Azul, John Rodgerson, considera que a junção é uma tendência global e afirma que a participação de 60% que a nova empresa alcançaria após eventual fusão é equivalente, e até menor, à de outras companhias ao redor do mundo. Como exemplos, cita a Air Canada, Avianca na Colômbia e a Tap em Portugal. Procurada, a Gol falou que não iria comentar.
Conforme os dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), dos 93,4 milhões de passageiros que voaram em rotas nacionais durante 2024, 31,3% foram com a Azul e 30,1% com a Gol.
A soma dos potenciais 62% de concentração de mercado supera em muito o recorde dos últimos 25 anos de dados disponibilizados no painel de monitoramento da Anac.
O maior patamar da série histórica é da TAM, atualmente Latam, que em 2007 transportou 47,6% de todos os passageiros do mercado doméstico. E teria transportado ainda mais se tivesse tido o pedido de fusão com a Varig aprovado anos antes. A proposta resultaria, pelos números de 2002, em concentração de 57% do mercado, menor que os 62% de Azul e Gol.
Mesmo com apoio público de membros do governo federal à época, que viam a fusão com a TAM como a única saída para a Varig, a análise do Cade acabou suspensa antes do julgamento. Após serem alertadas por integrantes do próprio órgão de que eram grandes os riscos de rejeição ou restrições desfavoráveis, desistiram do processo.
A TAM se manteve com a maior presença do mercado doméstico por dez anos consecutivos, entre 2001 e 2010.
Histórico
Desde o fracasso da tentativa entre TAM e Varig, o Cade recebeu ao menos outros sete processos envolvendo diferentes companhias. A primeira fusão aprovada na década foi entre a Gol e a Varig, em 2007.
Na época, a crise financeira da Varig havia se intensificado e a companhia havia perdido quase a total relevância no mercado doméstico, representando apenas 4,8% dos bilhetes vendidos anualmente. Somando os fluxos de ambas em 2007, totalizavam cerca de 44%.
Leia mais
Em 2011, o Cade aprovou a fusão entre a LAN, do Chile, e a brasileira TAM, para a criação da Latam. Em 2012, a Gol teve a aprovação para a compra da Webjet, que detinha 6% do mercado doméstico, totalizando 44% quando somada à fatia que a Gol já operava.
Ainda chamada pelo nome anterior, a TAM teve a fusão aprovada com a Pantanal em 2013, companhia que representava menos de 1% do mercado. No mesmo ano, o órgão aprovou a compra da Trip pela Azul, ampliando de 10,5% para 16,5% o fluxo de passageiros da Azul. Em 2021, a Gol obteve aprovação para comprar a MAP, cuja fatia de mercado era insignificante porcentualmente, apenas 0,1%.
As decisões do Cade podem ser pela reprovação, aprovação irrestrita ou aprovação com restrições. A imposição de ressalvas foi o caminho utilizado com TAM-Lan, Gol-Webjet e Azul-Trip. Para reduzir riscos de manipulação de preços, o órgão exigiu assinatura de termo em que a Gol e Azul se comprometeram a manter o fluxo de seus voos.
Para TAM-Lan, foi determinada a entrega de dois pares, ida e volta, de slots diários (horários e espaços para pousos e decolagens) na rota Santiago-São Paulo, no Aeroporto Internacional de Guarulhos. A devolução de slots é um dos caminhos que podem ser utilizados para permitir a aprovação Azul-Gol.
A previsão é de que o Cade julgue a proposta em até 12 meses. Em avaliações preliminares feitas ao Estadão/Broadcast, integrantes do órgão dizem que, no estágio atual, ainda não é possível garantir o sinal verde à operação, que é vista como bastante complexa.
Um ex-conselheiro que atuou como relator das análises sobre Gol-Webjet, Azul-Trip e TAM-Pantanal (2013) afirmou para a reportagem que a definição de restrições para Azul-Gol é de difícil arquitetura.
O que diz a nota da Azul sobre a concentração de mercado
Azul esclarece que a assinatura do memorando de entendimento (MoU) com a Abra tem como objetivo a criação de um negócio com sinergias operacionais, além de deixar as empresas envolvidas mais competitivas em um cenário altamente desafiador do mercado de aviação. A combinação posicionará o Brasil em um nível maior de força global, promovendo a indústria aeronáutica e a economia brasileiras.
Os Clientes se beneficiarão diretamente com mais destinos, mais produtos e serviços, novas rotas, aumento da oferta de voos domésticos e internacionais e maior conectividade de/para qualquer região do Brasil hoje atendida por ambas as companhias, cujas rotas hoje são quase totalmente complementares, com apenas 10% de sobreposição.
O acordo é tão somente o primeiro passo na intenção de combinação dos negócios, e seu fechamento depende ainda de cumprimento de diversas etapas, tais como avaliações e aprovações regulatórias junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), obtenção de aprovações corporativas e a conclusão do plano de reorganização da Gol no âmbito do Chapter 11, entre outros.