SEUL – Kim Bok-soon tem uma vista de um milhão de dólares de sua varanda em Gangnam, o distrito de luxo na região sul de Seul que se tornou internacionalmente conhecida pelo megahit “Gangnam Style”, do cantor de k-pop Psy.
A vista dela dá para alguns dos edifícios mais altos e chamativos do país, incluindo arranha-céus de apartamentos tão luxuosos que contam com seus próprios spas e campos de golfe.
Mas este não é o estilo de vida de Kim. Ela não está entre os que dirigem Mercedes, seguem tendências da moda e andam a cavalo ao estilo de “Gangnam Style”. A varanda dela fica em frente a um barraco feito com painéis de madeira compensada, restos de plástico e chapas de metal enferrujadas em Guryong, uma favela extensa que, tecnicamente, fica no distrito de Gangnam.
O estilo de vida VIP está muito perto, porém muito distante.
Aos 60 anos, ela precisa andar de ônibus por apenas cerca de três quilômetros até chegar ao condomínio onde trabalha como empregada doméstica. Mas, segundo ela, é um deslocamento para o outro lado do “abismo entre ricos e pobres”.
“Do piso de mármore aos quartos com ar-condicionado... tudo lá me faz sentir como se estivesse em um sonho”, disse ela. O piso da casa de Kim é de placas de vinil e ela tem apenas um pequeno ventilador para enfrentar o calor do verão.
Embora a distância entre a casa dela e seu local de trabalho seja pequena, a diferença socioeconômica é enorme.
A situação de Kim resume a crescente desigualdade econômica, uma questão sociopolítica mencionada em todas as eleições, mas que até agora tem se revelado intratável.
Ela foi sintetizada em 2019 pelo filme sul-coreano vencedor do Oscar “Parasita”, no qual uma família pobre enfrenta as frustrações sentidas por muitos.
A crise financeira asiática de 1997, que desencadeou falências de empresas e demissões generalizadas, provocou uma desigualdade econômica crescente.
Esse contraste atingiu um recorde no ano passado, quando os 20% mais ricos da Coreia do Sul registraram 64 vezes a renda média dos 20% mais pobres.
Para piorar a situação, muitas pessoas sentem que é impossível viver uma versão coreana do processo de mobilidade social conhecido como “o sonho americano”.
As pessoas “nascidas em berço de ouro” podem ter a expectativa de frequentar escolas particulares caras e conseguir empregos cômodos graças às conexões de suas famílias. Mas aqueles sem esses privilégios dizem nunca ter a chance de melhorar de vida.
Em nenhum lugar essa desigualdade é mais evidente do que no microcosmo de Gangnam, lar daqueles que prosperaram durante a transformação econômica da Coreia do Sul e daqueles que não conseguiram isso.
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Ambos os casos têm suas raízes na transição da Coreia do Sul de ditadura para Tigre Asiático democrático.
Em preparação para a Olimpíada de 1988, os líderes militares de Seul destruíram bairros decadentes para construir estádios, parques e redes de trânsito.
Os bairros na região sul de Seul – “Gangnam” significa “ao sul do Rio (Han)” – foram os que mais se beneficiaram com esses projetos e rapidamente foram associados à nova Coreia do Sul, e e aos novos ricos.
Mas aqueles que foram retirados de suas antigas casas montaram assentamentos ilegais em áreas como Guryong, que tem cerca de 26 hectares e 1.100 famílias – um número em queda devido aos incêndios, às inundações e a outros desastres. Um incêndio em janeiro destruiu mais ou menos 60 casas no lugar.
O governo vem tentando reurbanizar a área há anos, mas as autoridades, os moradores e os proprietários de terrenos não conseguem entrar em acordo sobre como fazer isso.
E assim, os dois extremos coexistem lado a lado.
Clientes ilustres
Kim Jin-young, esteticista, passou a atuar no ramo de incorporação imobiliária, 39 anos
Kim disse que foi de baixo para cima na “pirâmide social de Gangnam”: de seu primeiro lar na região, um estúdio apertado pelo qual pagava US$ 450 por mês e passou a dividir com o marido depois de se casarem há 15 anos até o apartamento de US$ 3,5 milhões em que vivem agora.
Quando se casaram, Kim passou a trabalhar com o marido no setor de incorporação imobiliária. Isso abriu os olhos dela para os mecanismos internos da classe alta de Gangnam.
“Costumava pensar que os ricos viviam num mundo diferente do meu”, disse ela.
Agora, ela prega que qualquer pessoa pode entrar nesse mundo com uma ética de trabalho incansável e um comportamento proativo, uma mentalidade importante para ajudar a lidar com movimentações de alto risco e alto retorno, como os investimentos em incorporação imobiliária.
Kim e o marido têm propriedades no valor de quase US$ 13 milhões.
Ela usa uma bolsa Hermés e recentemente comprou um Lamborghini. Os filhos dela têm professores particulares e há pouco tempo ela deu de presente para os pais uma viagem de luxo para a Europa.
“As pessoas dizem que o dinheiro não compra felicidade, mas estou muito mais feliz agora do que quando estava sem dinheiro”, disse Kim.
Hong Yoon-taek, empresário, 32 anos
Hong abriu o primeiro escritório de sua startup no bairro chamativo de Cheongdam, em Gangnam, conhecido por suas ruas repletas de lojas como Louis Vuitton e Chanel e engarrafamentos de Porsches.
Na verdade, o escritório não cabia no bolso dele naquela época, mas ele sabia que o investimento valeria a pena: estava estrategicamente mirando naquele 1%.
Ele é dono de uma empresa de construção modular e vende casas pré-fabricadas que são perfeitas como cabanas de férias para os residentes ricos de Gangnam, disse ele.
O empresário vive a apenas dez minutos de distância de seu escritório e passa seu tempo livre aproveitando ao máximo tudo o que Gangnam tem para oferecer – desde atividades físicas ao longo do rio Han até conhecer bares e restaurantes locais sofisticados, todos a uma distância caminhável.
“Gangnam é o melhor lugar para jovens profissionais viverem”, afirmou. “Sem dúvidas é caro, mas faz valer o preço.”
Lee Won-jun, banqueiro de investimento, 30 anos
A corretora de títulos onde Lee trabalha é uma das empresas com melhores salários da Coreia do Sul – e com maior pressão também, disse ele.
Para compensar os longos dias de trabalho, Lee gosta de terminar a noite com um vinho envelhecido de safra rara ou um uísque single malt. Nos fins de semana, ele dirige com sua elegante BMW até resorts de golfe para passar o dia em contato com a natureza ao lado de amigos, familiares ou, às vezes, clientes.
Nascido e criado em Gangnam, Lee reconhece sua criação privilegiada. Como adulto, ele precisa “trabalhar mais arduamente” para continuar usufruindo das coisas que sempre teve em sua vida. Isso é algo que ele constantemente lembra a si mesmo para suportar os dias frenéticos no trabalho, que fazem com que reste pouco tempo até mesmo para namorar.
Segundo ele, Gangnam “não é um lugar fácil” e a vida ali tem um preço. “Gangnam tem sido meu lar desde que nasci, mas para manter minha vida aqui, preciso trabalhar muito para ganhar mais”, disse.
Jo Yong-seok, 57 anos, dono de empresa
O trabalho diário dele é administrar uma empresa de logística, mas Jo se autodescreve como um “pai de Gangnam”. Depois de deixar uma cidade no sul do país para frequentar uma universidade em Seul, Jo se casou e teve dois filhos na cidade. Eles passaram a viver em Gangnam, o melhor distrito em relação à educação de Seul.
Gangnam tem mais de 2.400 “cursos preparatórios” particulares, onde as crianças estudam durante horas depois de um dia normal na escola.
No ambiente acadêmico hipercompetitivo da Coreia do Sul, quase 80% das crianças frequentam esses cursinhos, que custam em média US$ 320 por mês, de acordo com a agência nacional de estatísticas do país, a Statistics Korea.
Mas muitos pais de Gangnam, inclusive Jo, gastam bem mais que isso. Quando seu filho estava se preparando para entrar na faculdade, no último ano do ensino médio, Jo gastava US$ 1.500 por mês com aulas particulares.
Do outro lado do luxo
Kim Jung-yeol, 76 anos, aposentado
Kim talvez viva do lado “errado” de Gangnam, mas ele se orgulha de seu pedacinho de chão ali. A menos de dois quilômetros do condomínio fechado de Jo, Kim vive em um barraco que, em sua opinião, é “um dos melhores” em Guryong.
É feito com materiais descartados, como madeira compensada, metal e lonas de plástico. A chuva vaza pelo telhado durante a temporada das monções. Ele usa os banheiros e chuveiros comunitários. Mas, segundo ele, depois de 35 anos ali, isso “realmente não me incomoda mais”.
“Aqui, posso respirar o ar da montanha. Posso ouvir meus vizinhos conversando ou apenas brincar com cães vira-latas”, disse o ex-pedreiro. “Vejo aqueles apartamentos de caixas de fósforos do outro lado da rua e penso em como seria a vida do lado de lá”, disse ele, apontando para os arranha-céus com a cabeça. “Eu provavelmente ia acabar me sentindo isolado e deprimido.”
Kim Chong-ho, 60 anos, missionário
Kim se prepara para a temporada de monções deste verão. Ele fez alguns reparos em seu barraco com um quarto depois que ele foi atingido por uma chuva histórica e tufões no verão passado.
Ele pisou pela primeira vez em Guryong há três décadas, quando veio de uma ilha do sul do país para Seul como um candidato a emprego sem um tostão no bolso. “Ninguém quer vir para cá, mas nós (moradores de Guryong) acabamos aqui porque não havia outra opção”, disse ele.
Os moradores idosos e empobrecidos de Guryong não podem pagar nem mesmo pelas moradias com aluguel controlado pelo governo propostas como alternativas a eles, afirmou.
“Também vivemos em Gangnam, mas as autoridades do distrito se recusam a nos amparar. Eles nos tratam como se não tivéssemos voz”, afirmou.
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