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Kabelera. Foto: Caio Pereira/Arquivo Pessoal
Foto: Caio Pereira/Arquivo Pessoal

Geração Z não foca só no lucro e abre negócios como entrega em favelas e absorvente de baixo custo

Jovens tendem a empreender não só para ter renda, mas também para ajudar a promover mudanças, segundo Sebrae

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Por 34º Curso Estadão de Jornalismo

Garantir que todos na comunidade de Paraisópolis pudessem receber compras online, sem que o CEP fosse um impeditivo. Desenvolver bonés adequados para quem tem cabelos crespos ou cacheados. Ajudar no combate à pobreza menstrual, produzindo absorventes biodegradáveis e de baixo custo. Muito diferentes entre si, esses objetivos viraram negócios que têm muito em comum. Todos foram criados por integrantes da geração Z, que perceberam nichos de mercado não atendidos e resolveram empreender por um propósito maior.

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“Fazer a diferença no mundo” é justamente a principal motivação dos mais jovens para investir em um negócio próprio, como aponta o levantamento Global Entrepreneurship Monitor (GEM) 2023/2024, o mais recente sobre o tema.

Em uma pergunta que permitia respostas múltiplas, esse propósito atingiu o porcentual mais alto (76,5%), superando as demais opções disponíveis: construir uma grande riqueza (74,2%), ganhar a vida (70,1%) e continuar uma tradição familiar (35,5%).

Kabelera surgiu após identificação de um nicho não atendido no mercado: 'Pensamos que fazia sentido ter um boné específico para quem tem cabelo cacheado', conta Caio Pereira Foto: Caio Pereira/Arquivo Pessoal

Integrantes da geração Z também vêm abrindo mais negócios por oportunidade. A proporção dos que empreendem com essa motivação apresentou alta de 15 pontos porcentuais entre 2020 e 2023, passando de 49,9% para 65%.

Foi o que aconteceu com Caio Pereira, hoje com 27 anos. Ao passar pela experiência de não encontrar bonés adequados para seu corte de cabelo, ele percebeu uma lacuna de acessórios para pessoas com cabelos crespos e cacheados ou que tenham tranças e dreads.

Em parceria com Calebe Serzedello, um dos seus sócios, o jovem iniciou uma pesquisa de mercado, identificando um padrão entre pessoas com cabelos iguais ao seu: a dificuldade em usar bonés devido ao risco de danificar os fios. “Pensamos que fazia sentido ter um boné específico para quem tem cabelo cacheado”, conta Caio. “E a gente não encontrava nada no Brasil.”

Esse foi o embrião para a Kabelera, que atualmente tem no portfólio diferentes modelos de boné, toucas de frio e produtos de cetim, além de opções infantis. A marca conta com site próprio e também está presente no Instagram e no Facebook.

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Caio está incluído em dois dos grupos mais recorrentes de empreendedores iniciais na faixa etária mais jovem, de acordo com a pesquisa GEM, realizada no Brasil pelo Sebrae.

A maioria é de homens (63%). Do total de empreendedores de 18 a 34 anos, 59% são pessoas pretas e pardas, 37% são brancas e 4%, indígenas.

Além de servir como um propósito e uma ocupação, o empreendedorismo pode impactar positivamente a vida do jovem e de seu entorno.

Giva Pereira, fundador da empresa de logística Favela Brasil Xpress, conta que o conceito de seu negócio surgiu em 2020, durante a pandemia de covid-19.

O empresário de 24 anos observou que os moradores de Paraisópolis, comunidade na zona sul de São Paulo onde reside, enfrentavam dificuldades com entregas de compras online, já que os produtos não chegavam a seus endereços.

Giva aconselha os novos empreendedores a conhecerem muito bem o setor em que desejam atuar – ele mesmo conta que não tinha nenhuma experiência em startup quando iniciou o projeto. Foto: Tiago Queiroz/Estad

A solução inicial envolvia a criação de centros de distribuição locais dentro das comunidades. Os espaços serviam como uma ponte recebendo as encomendas das lojas virtuais e, em seguida, as direcionando para os endereços.

“Esse modelo, que era algo novo, tanto para mim quanto para a primeira empresa que procuramos, não funcionou. Ela não tinha se adaptado para isso. Não tinha como mexer na tecnologia”, explica.

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A Americanas se juntou a Pereira para formular o modelo do negócio, que opera em parceria com o site até hoje. “Depois deles, outras empresas começaram a procurar a gente para ‘desbloquear os CEPs’ para entrega em seus sites”, conta.

A Favela Brasil Xpress emprega hoje aproximadamente 250 pessoas, distribuídas em sete bases operacionais pelo Brasil. O CEO revela que, desde a criação da empresa até janeiro deste ano, foram realizadas mais de 1,7 milhão de entregas, movimentando quase R$ 2 bilhões em mercadorias.

Vindo da Paraíba, Giva enfrentou condições de extrema vulnerabilidade social em Paraisópolis. Para ele, era comum ver seus vizinhos em situações de fome.

Além disso, a violência local exacerbava essas dificuldades. “Cheguei a morar num barraco de dois cômodos com dez pessoas dentro. A partir daí, tive um estalo e falei: ‘Preciso mudar a vida da minha família’. E foi quando procurei os estudos”, relata.

Aluno de escola pública e, depois, bolsista de um colégio particular, o paraibano conta que lá aprendeu a colocar em prática as ideias que tinha. “Participei de várias feiras de startups e ali eu vi que poderia ganhar dinheiro e ajudar muito mais a minha família.”

Um dos obstáculos iniciais que a Favela Brasil Xpress enfrentou foi conseguir empréstimos bancários. “Imagina: moleque da favela de 20 anos, indo num banco pegar dinheiro emprestado para montar uma startup que muita gente falava que não tinha potencial”, lembra Pereira.

Ele conseguiu o financiamento necessário por meio do banco do G10 Favelas, uma rede de líderes e empreendedores comunitários.

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Para André Spínola, gerente de Estratégia e Transformação do Sebrae, a grande dificuldade dos novos empreendedores é ter acesso ao crédito para dar os primeiros passos.

“Isso é uma questão cultural. O jovem indo buscar dinheiro para abrir um negócio nos bancos tem dificuldade de conseguir. Nos Estados Unidos, é muito comum arriscar com o dinheiro do mercado”, explica.

O Mapa Serasa Crédito mais recente mostra que a maioria dos pedidos de créditos, 55%, foi de jovens entre 18 e 35 anos. Desses, 44% querem investir no próprio negócio. Contudo, a mesma pesquisa aponta que mais da metade dos brasileiros consegue financiamento por meio do cartão de crédito.

Incentivos a jovens empreendedores ainda é escasso

Os principais bancos do País foram procurados pela reportagem. Os que responderam afirmaram não ter produtos de crédito pensados para empresários jovens que estão dando os primeiros passos.

O Bradesco explicou que libera crédito com base no histórico do requerente. Já o Nubank afirmou, por meio de nota, que “não tem uma linha de crédito específica para jovens empreendedores”.

Dos bancos públicos, o Banco do Brasil disse que conta com soluções de capital de giro, investimento e antecipação de recebíveis para empreendedores no geral, sem ações formatadas especialmente para essa faixa.

O Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte informou que não tem um programa específico para jovens empreendedores, apenas para o público geral. E que planeja anúncios nessa área.

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Sem crédito, como financiar?

A dificuldade de financiamento é uma realidade que as sócias Patrícia Zanella, Hellen Nzinga e Adriele Menezes conhecem bem.

Em 2018, elas criaram a EcoCiclo, apresentando uma solução para a pobreza menstrual: um absorvente 100% biodegradável e com preço acessível. Após três anos de desenvolvimento, o produto chegou ao mercado.

A maior parte dos recursos iniciais da EcoCiclo veio do exterior, como contam Adriele Menezes, Hellen Nzinga e Patrícia Zanella (da esq. para a dir.) Foto: Carol Rehem

Desde então, a startup recebeu reconhecimento e prêmios, como o Desafio Inovação com Impacto de 2023, realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Contudo, a EcoCiclo enfrenta desafios para atrair investidores, crescendo com bootstrap, que propõe o máximo de expansão com o mínimo de pessoas atuando e a entrada de capital via consumidores.

“Na EcoCiclo, sempre foi muito difícil empreender. Nenhuma de nós teve investimento nem de familiares. Nós não tivemos acesso a esse tipo de recurso”, conta Patrícia, de 28 anos. “Então, começamos a ir muito a competições de negócios e grants (apoio financeiro para pesquisadores) internacionais. A maioria dos recursos da EcoCiclo, que fez a startup começar, veio do exterior.”

Anjos da geração Z

Integrantes da própria geração Z vêm se unindo para tentar melhorar o cenário de falta de financiamento. É o que estão fazendo Fernando Dias, ex-aluno de Administração, e Maria Eduarda Mota, que estuda Ciências Econômicas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Juntos, eles fundaram a PUC Angels, uma rede de investidores-anjo voltada para jovens empreendedores da instituição.

A dupla difere do perfil clássico dos que atuam dessa forma: em geral empresários experientes, que já possuem capital acumulado e auxiliam no desenvolvimento das startups com capital financeiro, experiência e orientação.

Maria Eduarda Mota idealizou com Fernando Dias a PUC Angels, no começo de 2023: investimento em cinco startups Foto: Luana Lopes

Segundo Maria Eduarda, existem diferentes estágios de investimento em startups, dos quais o primeiro é ser apoiado por amigos e família.

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Geralmente, esses investidores são pessoas próximas que confiam na ideia, enxergam potencial e querem ajudar de alguma forma.

Depois dessa “escalada mínima”, a etapa seguinte é o investimento-anjo. Em operação desde janeiro de 2024, a PUC Angels vai investir aproximadamente R$ 1 milhão em cinco startups.

“São investimentos com cheque menor do que aqueles vindos do fundo de uma grande empresa, que acaba sendo a etapa seguinte do investimento anjo. Nessa fase, muitas vezes, a ideia é inovadora, tem um potencial de crescimento, mas ainda não foi escalável ou falta algo na estruturação da startup”, explica a fundadora da PUC Angels.

“Então, muitas enfrentam esse desafio de receber investimento-anjo por falta de estruturação interna, de escalabilidade interna. E esse é um dos maiores desafios do investimento-anjo.”

Empreendedorismo da geração Z pelo País

Ainda de acordo com o Sebrae, no Brasil, a distribuição dos empreendimentos da geração Z é desigual pelo território. A maior presença é no Sudeste e no Nordeste.

LazuEdu, iniciativa educacional que surgiu em uma feira de ciências em Manaus, desafia essa desigualdade de empreendimentos da geração Z na região Norte do País.

O curso preparatório iniciou como uma startup, com o objetivo de produzir um aplicativo simples que tivesse conteúdos gratuitos de língua portuguesa e matemática para estudantes do ensino médio se prepararem para o vestibular.

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Hoje, ele funciona no formato online, com videoaulas ao vivo e gravadas, e também com turmas presenciais.

“Conhecemos alguns programas de capacitação para iniciar uma startup, oferecidos pela Samsung. Também participamos de programas do Sebrae para entender de gestão, comércio e vendas. Alguns editais nos levaram para São Paulo e Recife”, explicou Sabrina Susan, líder de produto da LazuEdu.

“Em São Paulo, participamos de iniciativas da Artemisia, que é uma aceleradora de startups que tem como base tecnologia, educação ou impacto social.”

LazuEdu, criada por Sabrina Susan e Livio Maki, surgiu como aplicativo de estudos e hoje oferece aulas online e presenciais Foto: Sabrina Susan e Lívio Maki

Ao expandir a empresa para o interior do Amazonas, o empreendimento chega hoje a lugares que antes sofriam por falta de investimentos educacionais para alunos em vulnerabilidade.

“Em 2021, lembro que o PSC (vestibular da Universidade Federal do Amazonas) reduziu o número de cidades onde é aplicado. E um dos municípios que foi retirado durante a pandemia foi Autazes. Naquele momento, todo município pegou o mesmo barco para vir para Manaus fazer a prova, e esse barco quebrou no meio da viagem. Ou seja, todos os alunos da cidade perderam o vestibular”, conta Maki.

A LazuEdu já conseguiu mais de 350 aprovados em vestibulares diferentes, com enfoque no Amazonas, assim como em processos seletivos de outras universidades brasileiras, como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Brasília (UnB).

Empreendimentos tradicionais na geração Z

Um dos pontos em que há mais proximidade entre as gerações de empreendedores brasileiros é no tipo de negócio aberto.

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Os empreendimentos não costumam fugir de um top 5 que se mantém há anos com poucas variações: 11% são cabeleireiros e donos de salões de beleza; 9,1% investem em varejo de roupas e 7,3%, em varejo de cosméticos. Indo para gastronomia, 5,3% abrem restaurantes e 3,1%, bufês. Os dados são do GEM 2023.

Júlia Nuss é uma dessas jovens empreendedoras no setor gastronômico. Com R$ 50, fez brownies e brigadeiros para vender na faculdade.

“Era algo que eu fazia sem pensar muito a longo prazo, sem pensar como um negócio. Mas, com o tempo, percebi que aquilo poderia ser um trabalho de verdade”, lembra a confeiteira.

“Minha mãe, que é artista plástica, e uma amiga da faculdade me ajudaram com o visual e o design da marca, que chamei de Brigadayros.”

A percepção de que seu empreendimento era, de fato, um trabalho veio mais tarde. Júlia já estava faturando mais com os doces do que com o estágio e sentia mais prazer cozinhando. Foi quando ela decidiu se demitir.

“Minha ex-chefe foi minha primeira cliente grande, ela fez um pedido corporativo de cem caixinhas. Foi um desafio, mas também um ponto de virada. Comecei a me dedicar mais e a fazer cursos na área da confeitaria”, conta a publicitária de formação, que hoje tem um ponto em Pinheiros, bairro da zona oeste de São Paulo.

Dono, chefe e funcionário

Empresas criadas pelos mais jovens estão entre as que têm menor número de funcionários. O empreendedor acaba se dividindo em várias funções.

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“A pessoa faz tudo, desde a negociação com o fornecedor, até o pós-venda, passando pelo marketing”, explica André Spínola, gerente de Estratégia e Transformação do Sebrae.

Esse é o caso do coletivo RPretas. Na empresa, todas as áreas dependem exclusivamente de suas fundadoras Luana Protazio, Mariana Moraes e Pryscila Galvão.

O negócio, que hoje se tornou uma agência de assessoria de relações públicas, surgiu ainda durante a faculdade, em meio a um evento de hip-hop, onde a presença negra era destaque. Mas o investimento da comunicação desse grupo era quase inexistente, o que provocou nas três um incômodo.

“A princípio, era uma festa, então acho que foi muito a partir disso que a gente entendeu as relações públicas enquanto uma ferramenta para algo de que gostamos e acreditamos, que era a comunicação marginal, uma comunicação periférica, que vem das margens e não do centro”, explica Mariana.

De serviços para agência de publicidade a assessoria de comunicação, a RPretas trabalha com curadoria estratégica de influenciadores e também é líder de opinião para alguns eventos.

“Sejam ações culturais de modo geral, como a Boogie Week, por exemplo, onde pensamos em quais convidados iriam para as palestras e para o festival. Ou a Feira Preta, onde trabalhamos na parte operacional da área VIP”, destaca Pryscila.

“Como falta estímulo, se torna uma área de jovens brancos de classe média alta que os pais podem bancar até a empresa começar a faturar”, explica Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, parque tecnológico que incuba empresas do tipo no Recife.

Com reportagem de: Andrei Gobbo, Anna Scabello, Assíria Florêncio, Camila Xavier, Emanuele Almeida, Isabella Pugliese Vellani, Pedro Lima, Rebeca Freitas, Soraia Joffely e Vinícius Novais

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