Em uma empresa familiar, um conselho de administração deve reunir perfis estratégicos que possam dar suporte a um CEO e ter também profissionais que deem continuidade à cultura corporativa. Por causa disso, o colegiado não pode ser visto como um local para “acomodar” pessoas da família que não estejam interessadas, de fato, na condução do negócio.
A orientação é do presidente do conselho administrativo da Raia Drogasil (RD Saúde), Antônio Carlos Pipponzi. O gestor, que dirigiu por 35 anos a varejista farmacêutica fundada por seu avô, João Baptista Raia, acompanhou a evolução de diferentes concepções da função de conselheiros ao longo dos anos. Para ele, atualmente, não é mais possível entender o conselho como um “depósito de familiares”.
“Hoje, é preciso ter conselhos muito mais ativos, no sentido de fazer a diferença na empresa. Essa é a grande questão que muda e faz com que o conselho não possa ser mais um depósito de familiares desinteressados pelo negócio”, diz o gestor, que também integra a Comissão de Governança de Empresas Familiares, no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
Pipponzi é engenheiro de formação e, no passado, assumiu inesperadamente as funções de CEO e chairman (presidente de conselho, em inglês) da rede de farmácias. Agora, prestes a deixar o posto para assumir outro tipo de cadeira no conselho em 2025, ele esteve à frente de uma mudança na alta liderança da empresa, conduzida, desta vez, de forma planejada.
O movimento de sucessão, que entrará em vigor no próximo ano, foi anunciado ao mercado em agosto. O cargo de CEO será ocupado por Renato Raduan, atual vice-presidente de Operações de Farmácias, Multicanal, Expansão, Logística e M&A da companhia. Já o atual CEO, Marcílio Pousada, foi indicado para ser o novo chairman. Segundo a companhia, os dois não fazem parte da família.
Para Pipponzi, a escolha de nomes internos sinaliza ao mercado a manutenção da cultura da empresa no plano sucessório. “A palavra-chave é continuidade”, afirma. “Eu entregaria muito caro — o que para mim seria uma derrota — ter de trazer um líder de fora da empresa, depois de tanto tempo para preparar o crescimento das pessoas internamente.”
Abaixo os principais trechos da entrevista:
As empresas familiares geralmente têm na própria família alguns ‘candidatos naturais’, por assim dizer, para liderar os negócios. Isso torna mais fácil a condução de mudanças na liderança?
Quando se fala profissionalizar uma empresa familiar, parece que a questão será se vai haver ou não um sucessor na família para dirigir os negócios como executivo. Normalmente, essa disputa tem dois problemas. Primeiro, parece que, se o familiar não for um executivo, ele vai ‘encostar’ no conselho, como se o conselho fosse uma uma peça morta. Segundo, há a disputa de querer agradar a todos, como se todos tivessem a mesma condição (de assumir cargos na empresa). Nessas horas, falta uma consultoria, com uma certa isenção, para efetivamente entender o que faz sentido na sucessão dentro da empresa. Eu acredito muito em empresas familiares. Elas têm uma condição muito maior de serem guardiãs de três coisas fundamentais: a cultura, a estratégia e a perenidade. Existe uma potência que muitas vezes é desprezada por causa de ciumeira: por exemplo, se alguém for colocado como executivo, o poder vai ficar com ele. Esse é um grande problema.
Então, há um desafio relacionado à ideia de onde está o poder?
Não é obrigatório ter alguém da família (conduzindo a empresa), e sim, desejável. Se dentro de um processo isento for entendido que o comando da executiva deve estar nas mãos da família, eu acho ótimo. Porém, se não existem perfis, você vai para o mercado. Eu, particularmente, prefiro trabalhar só com os candidatos internos e recorrer ao externo só quando não tem ninguém com perfil.
E quanto ao conselho?
O conselho não é mais aquele conselho antigo, que era um depósito de familiares que, de repente, não se interessavam pelo negócio. Quando eu deixei de ser CEO e entrei na presidência do conselho em 2011, os conselhos estavam muito mais preocupados com a defesa do que com o ataque. Eram preocupados com compliance, apresentação de resultados e com a parte normativa. Hoje, é preciso ter conselhos muito mais ativos, no sentido de fazer a diferença na empresa. Essa é a grande questão que muda e faz com que o conselho não possa ser mais um depósito de familiares desinteressados pelo negócio. O conselho é fundamental na formulação estratégica da empresa. Se não houver gente competente no conselho, ele não vai conseguir acompanhar isso.
Como o conselho deve ser formado?
Como o executivo é muito envolvido no dia a dia, o conselho tem de ter aqueles personagens com diversos perfis, para olhar cenários e trazer provocações. Os conselhos de hoje tem de ter conhecimento do negócio e da estratégia para poderem opinar. Isso muda muito o fato de que você não vai ‘encostar’ familiares no conselho por não servirem para ser executivos. Eles podem, sim, se preparar para ser conselheiros, buscando não só conhecimento na empresa, como fora do País. Algumas empresas deixaram de aproveitar a energia que familiares tinham por conta do pressuposto de profissionalizar. Parece que profissionalizar é você chutar a família e perder uma série de vantagens, como manter a cultura. Na nossa transição, esse foi o ponto mais importante, e eu não abriria a mão de jeito nenhum. Eu entregaria muito caro - o que para mim seria uma derrota — ter de trazer uma líder de fora da empresa, depois de tanto tempo para preparar o crescimento das pessoas internamente.
Diante da reformulação na alta liderança da RD, o sr. chama a atenção para a perenidade da cultura da empresa com nomes internos. O que o mercado pode esperar desses novos líderes?
A palavra-chave é continuidade. Não há nenhuma expectativa de descontinuidade. Por isso, o mercado recebeu muito bem (a futura sucessão). É uma transição que é feita toda dentro de casa, de baixo risco. Porém, ela não pode ser uma transição descolada daquilo que é o mundo novo e de uma estratégia futura. É muito tranquilizador ter as mesmas pessoas subindo de posição.
Leia também
O sr. foi CEO da empresa por muitos anos, é presidente do conselho de administração e, no ano que vem, vai assumir outra função no colegiado. Como tem sido transitar por esses cargos?
Tem um certo ajuste no mindset (mentalidade). Quando eram sete farmácias, eu nunca fui chamado de CEO, eu era um ‘faz-tudo’. Era um engenheiro que caiu nesse negócio por mero acaso. Então, a minha liderança foi conquistada de baixo para cima. Como quem fica 36 anos à frente de uma empresa, evidentemente eu me senti consagrado por uma liderança e fui muito apegado a ela. Quando eu virei a chave para chairman foi complexo. Você tem de entender que, naquele momento, você tem um outro papel que é muito mais estratégico, mas já não é mais o detentor do poder da executiva. Em um primeiro momento, você entra em depressão, e eu não pude me preparar. Porém, em relação à posição que tenho hoje, minhas tarefas internamente não vão mudar muito (em 2025). A passagem de CEO para chairman é que foi meio crítica.
O sr. fala que assumiu por acaso essas posições de liderança. Hoje, esse tipo de movimento seria algo pouco estratégico para as empresas, pensando no ponto de vista das boas práticas de governança...
Concordo. Mas houve uma vantagem. Eu consegui entender que o papel do conselho não seria simplesmente o de ter conselheiros experientes, que fizessem a gestão preocupados com o compliance. Este olhar fez com que eu visse o conselho em base zero. A grande vantagem foi poder construir um conselho olhando para o que a executiva precisa para chegar aonde quer chegar. Já hoje, existe uma visão muito maior de que o conselho tem de ser participativo e ter uma combinação de perfis importantes para dar suporte a executiva. Parte das empresas, hoje, já olham o conselho como esse veículo muito importante de contribuição.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.