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Como a indústria do cimento pretende, com investimentos bilionários, reduzir a emissão de poluentes

Segundo associação, setor deve investir até R$ 4 bilhões em mudança de fontes de energia em seis anos; alternativas têm sido adotada por empresas como CSN, Votorantim e InterCement

Foto do author Shagaly Ferreira
Atualização:

As fábricas de cimento respondem por cerca de 2,3% do total das emissões de gases de efeito estufa da indústria no Brasil. O número está abaixo da média global, em que o setor é responsável por 7% das emissões da indústria, mas as empresas no Brasil têm se movimentado para reduzi-lo ainda mais.

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Uma das principais apostas para isso, com investimentos bilionários, é o uso de resíduos urbanos e industriais para a geração de energia.

A produção do cimento comercial é resultado, basicamente, da moagem de calcário e argila, que dá origem ao clínquer, principal matéria-prima do produto. Para chegar a ele, é necessário que essas matérias-primas e outros componentes sejam misturados em altos-fornos, aquecidos a 1.450 ºC, usando como fonte térmica principalmente o coque de petróleo, que no Brasil é distribuído pela Petrobras.

Para reduzir o uso do coque, mais poluente, as cimenteiras têm investido cada vez mais no uso de resíduos como combustível para os fornos, em um processo chamado de coprocessamento. Além do apelo ambiental, há também o apelo econômico, já que o uso de resíduos é mais barato, no longo prazo, do que o de derivados de petróleo.

São basicamente três categorias de resíduos usados na indústria do cimento:

  • Combustíveis de biomassa: como carvão vegetal, sementes e cascas;
  • Combustíveis alternativos: como pneus usados e resíduos urbanos;
  • Matérias-primas alternativas: como areia de fundição e lama.

Dados do relatório “Panorama do Coprocessamento 2023″, da Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP), mostram que a cadeia cimenteira brasileira coprocessou mais de 3 milhões de toneladas de resíduos em 2022, a maior marca da série histórica. Segundo o documento, a tecnologia evitou a emissão de quase 3 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO₂) na atmosfera em relação aos métodos mais tradicionais de produção, que envolvem o uso do coque de petróleo como combustível.

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“Nossa meta para 2025 era fazer uma conversão térmica do coque pelos combustíveis alternativos em 30%. Nós já antecipamos isso em três anos, ou seja, em 2022 já havíamos atingido a meta prevista para 2025. Isso mostra claramente a disposição da indústria em avançar com esse projeto”, afirma o presidente da ABCP, Paulo Camillo Penna, que também dirige o Sindicato Nacional da Indústria de Cimento (SNIC). A ideia é chegar a pelo menos 55% da matriz energética até 2050.

Essa mudança tem o suporte de investimentos robustos em estrutura logística e tratamento de materiais. A estimativa da ABCP é a de que entre R$ 3,5 bilhões e R$ 4 bilhões sejam investidos na técnica pela indústria cimenteira até 2030. Os recursos devem ser alocados em unidades de tratamento e fábricas.

Galpão de resíduos na fábrica da Votorantim Cimentos em Vidal Ramos (SC) Foto: Votorantim Cimentos/Divulgação

O que as indústrias têm feito

As grandes empresas brasileiras do setor cimenteiro já vêm utilizando o coprocessamento em sua matriz energética, tanto nas fábricas domésticas quanto nas unidades internacionais, há algum tempo. Uma delas é a Votorantim Cimentos, que começou a usar os resíduos em 1991, e atualmente possui 30 unidades fabris no mundo que usam a tecnologia, sendo metade no Brasil.

Em 2019, a Votorantim Cimentos abriu no País a própria empresa de tratamento de resíduos para o coprocessamento, a Verdera. O empreendimento é responsável pela separação, transporte, recebimento, trituração e preparação de resíduos brutos e tem capacidade de atuação em todo o território nacional.

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No ano passado, a companhia cimenteira atingiu o maior nível de substituição térmica de sua história na Europa, Ásia e África, com 42,9% da geração de energia vinda dos combustíveis alternativos. No Brasil, esse nível chegou a 34,3%, e a ideia é que isso avance com um projeto de modernização e ampliação da capacidade de substituição térmica da fábrica de Salto de Pirapora (SP). A unidade recebeu investimento de R$ 180 milhões, com financiamento do International Finance Corporation (IFC), do Banco Mundial.

A meta global do uso de resíduos na empresa para 2030 é de 53%, diz o diretor Global de Sustentabilidade da Votorantim Cimentos, Álvaro Lorenz. “Nossas metas estão validadas pela Science Based Targets Initiative (entidade internacional chancelada pelo Pacto Global da ONU)”, diz. “São metas baseadas na ciência, e nos dá orgulho poder dizer que temos não somente metas públicas, mas metas validadas, e seguimos nosso compromisso de descarbonização do setor.”

No caso da InterCement Brasil, o uso das técnicas de coprocessamento foi iniciado na planta de Pedro Leopoldo (MG), em 1997. Atualmente, a tecnologia é a principal estratégia de transição térmica da companhia, com foco em descarbonização, diz o gerente sênior de coprocessamento da companhia, Cristiano Ferreira.

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Há dez anos, o coprocessamento foi definido como uma área estruturada de negócios na empresa e foram definidas metas de 52% de substituição térmica até 2050. Nesse período, a companhia registrou investimento de R$ 105 milhões no coprocessamento e nas adequações necessárias para o processo.

Os dados mais recentes da InterCement mostram que, em 2023, 28% de toda energia térmica utilizada nas fábricas da companhia tiveram origem em materiais coprocessados como pneus, cascas de arroz e de café, bagaço de cana, entre outros resíduos.

O avanço nas políticas regulatórias e de estrutura para a atividade poderão ajudar a acelerar essas metas. “Por mais de 20 anos ficamos com a resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) desatualizada, e com isso, os Estados foram criando suas próprias resoluções, deixando o processo mais complexo”, diz Ferreira. “Além disso, só nos últimos cinco houve uma evolução forte na cadeia de suprimento e de preparação desses resíduos. Isso permitiu que as cimenteiras aumentassem a taxa de coprocessamento sem impacto no processo de estabilidade da operação.”

Já na CSN Cimentos, a ambição é a de que o coprocessamento contribua para que 50% da matriz energética seja formada por combustível alternativo até 2030. A tecnologia começou a ser utilizada pela companhia no final da década de 1990, na unidade de Cantagalo, região serrana do Rio de Janeiro. Na época, o processo passou a ser utilizado também em fábricas de Minas Gerais e da Paraíba.

As plantas que foram construídas em seguida pela companhia tiveram suas instalações já preparadas para o coprocessamento, explica o executivo Juliano Menezes de Melo, gerente geral da Revalora, que é a empresa do Grupo CSN responsável por viabilizar materiais alternativos para fabricação do cimento.

“Hoje (o coprocessamento) é a principal estratégia (de transição energética do setor). Sobretudo por ser uma iniciativa adotada e já validada com sucesso em alguns países da Europa, como a Alemanha, que hoje, em média, atinge uma taxa de coprocessamento de cerca de 85%”, diz Melo.

Ele explica que, na companhia, o coprocessamento já faz parte da rotina operacional. “Os combustíveis alternativos derivados de resíduos já fazem parte de forma consolidada na matriz energética das plantas de cimento da CSN.” A empresa não divulgou ao Estadão o valor investido na técnica.

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Votorantim Cimentos: uso do caroço de açaí como combustível para forno de produção de cimento na unidade Primavera (PA) Foto: Votorantim Cimentos/Divulgação

Como os resíduos chegam aos fornos

Antes de serem destinados aos fornos, os materiais alternativos passam por tratamento em unidades especializadas, como cooperativas, que fazem o manejo adequado dos resíduos e entregam o material preparado para gerar energia térmica, segundo o diretor de coprocessamento da ABCP, Daniel Mattos.

“Normalmente, não conseguimos utilizar essas fontes de maneira bruta. Grande parte desses resíduos precisa minimamente passar por um processo de preparo. Existem parceiros que fazem a coleta desses resíduos e preparam lotes deles em unidades de tratamento, de acordo com a especificação técnica que a fábrica de cimento precisa para o forno, como umidade e poder calorífico.”

Conforme o especialista, os gases emitidos no coprocessamento são manejados de acordo com regulações ambientais. “Todas as fábricas são licenciadas por órgãos ambientais, com base em uma resolução de licenciamento para a utilização de resíduos em fornos de cimento, que é a legislação do Conama nº 499/20. Ela estabelece quais são os equipamentos e limites de emissão. As licenças são obtidas após os órgãos ambientais estaduais fazerem testes acompanhando todo o processo, desde a armazenagem até a emissão desses gases em um sistema de filtros.”

Em pouco mais de duas décadas, a indústria cimenteira coprocessou quase 26 milhões de toneladas de resíduos. Frente aos materiais com maior dificuldade de decomposição na natureza, o destaque no reúso para geração de energia são os pneus. Em 17 anos, eles saltaram de pouco mais de 67 mil toneladas coprocessadas para 340 mil toneladas.

Solução para resíduos sólidos urbanos

Apesar de não solucionar totalmente a questão das emissões de gases poluentes no processo de fabricação de cimento, o coprocessamento tem se mostrado uma alternativa viável tanto para diminuição do uso do combustível fóssil quanto para a redução dos “lixões” no Brasil, que, geralmente, concentram grande parte dos resíduos não aptos para a reciclagem.

De acordo com o presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA, na sigla em inglês), Carlos Silva Filho, o Brasil ainda contabiliza 38% dos seus resíduos sólidos descartados em locais inadequados, e o coprocessamento atua como uma maneira de valorizar esse material como um insumo energético. “A grande premissa desse processo é a mudança de paradigma: o resíduo deixa de ser ‘lixo’ e passa a ser um recurso aproveitado em diferentes processos.”

Carlos Silva Filho é presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA) Foto: ISWA/Divulgação

No entanto, os benefícios precisam ser otimizados, ressalta o especialista. Segundo ele, considerando a estimativa de 80 bilhões de toneladas por ano de resíduos sólidos urbanos produzidos no Brasil, é preciso reforçar estruturas que permitam que essa utilização industrial possa avançar.

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“Para viabilizar esses processos que transformam o resíduo em combustível, há preparação, separação e homogeneização desse material. Tudo isso requer ainda mais investimento em plantas, (além da resolução) de um problema logístico no País, por conta das grandes distâncias para transportar um grande volume desses materiais. Equacionando esses pontos, nós teremos um potencial enorme”, prevê Silva.

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