RIO - A pedido de um investidor a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vai apurar se há conflito de interesse na decisão de 28 companhias abertas de ocultarem dos acionistas a remuneração detalhada de seus diretores e conselheiros. Amparadas em uma liminar judicial, essas empresas se recusam a revelar a remuneração mínima, média e máxima de seus administradores, contrariando a Instrução 480 da CVM. O que está em jogo é se a iniciativa de omitir a informação partiu dos próprios interessados em manter seu sigilo.
A lista é formada por companhias de diversos setores: Bradesco, Cielo, Itaú e Itausa (financeiro); Vale (mineração); CSN, Metalúrgica Gerdau e Gerdau (siderurgia); Fibria e Suzano (papel e celulose); Oi e Tim (telefonia); Braskem (petroquímica); CCR e Rumo (infraestrutura); Lojas Americanas, B2W e Via Varejo (varejo); BR Malls e Iguatemi (shopping); Alpargatas (calçados); Cosan e CPFL (energia), Embraer (aeronaves), Duratex e Even (construção); Multiplus (serviços); e Minerva (alimentos).
A alegação padrão é que os executivos ou a companhia estão são filiados ao Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (Ibef), que obteve a liminar e, portanto, estão protegidos por ela. A tese do instituto é que abrir a remuneração dos administradores violaria sua intimidade e privacidade, direitos garantidos pela Constituição Federal.
A batalha judicial entre o Ibef e a CVM se arrasta desde 2010. Em 2013 a Justiça do Rio negou um recurso do órgão regulador do mercado de capitais, impedido de aplicar qualquer penalidade pelo descumprimento da exigência. A CVM aguarda o julgamento de uma apelação na 8ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Ex-diretor de participações da Previ, especialista em governança corporativa e acionista dessas companhias abertas, Renato Chaves pediu às suas áreas de relações com investidores que detalhassem o processo que levou à não divulgação dos valores, contrariando a exigência da CVM. Na maioria dos casos, as explicações prestadas nos formulários de referência - documento público que traz informações gerais sobre companhias abertas - eram precárias.
Para Chaves, a falta de informação sobre o processo que levou à adoção da liminar impede os investidores de verificar se houve conflito de interesse dos administradores: "(...) a não apresentação das informações no formato exigido pela ICVM 480 serviria para proteger única e exclusivamente os interesses dos CEOs e demais executivos, além dos presidentes dos conselhos de administração, comumente detentores das maiores remunerações nas empresas, como podemos depreender da leitura da argumentação jurídica do Ibef-RJ", diz no documento enviado à CVM.
As poucas respostas que Chaves obteve em sua empreitada - de Itausa, Iguatemi e TIM - não revelaram a existência de um debate em órgão colegiado sobre o assunto, nem tão pouco sua submissão à uma instância superior, como o conselho de administração ou a assembleia geral de acionistas. Em sua visão, essa essa seria a melhor prática.
O investidor pede que a CVM avalie a possibilidade de elaborar uma orientação ao mercado nesse sentido, uma vez que os conflitos são latentes tanto na diretoria quanto no conselho. Ele sugere que mesmo nas assembleias as deliberações sejam tomadas sem o voto de acionistas controladores que atuem nos conselhos de administração das companhias, considerando que a mistura de posições (acionista e conselheiro) reforçaria o mencionado conflito, principalmente porque as empresas de controle acionário definido prevalecem no Brasil.
"Isso não é assunto a ser decidido pelo CEO ou CFO, por conta do acachapante conflito de interesses. Isso é assunto de conselho de administração, e mesmo assim com a necessária abstenção do presidente do conselho, que por usualmente ter maior remuneração do órgão pode ter interesse de não divulgar as informações requeridas", alerta Chaves em uma das 94 postagens em que trata do tema remuneração de administradores em seu Blog da Governança.
O Broadcast consultou as 28 companhias citadas no processo. Bradesco, Gerdau, Duratex e CPFL invocaram a liminar do Ibef, fazendo menção ao direito constitucional à privacidade e o respeito à segurança de seus administradores. A Alpargatas diz que não se manifesta sobre questões em discussão na Justiça.
A CCR afirma que a divulgação do dado global de custos com a administração permite que os acionistas tenham conhecimento do valor envolvido e que "a informação individualizada não acrescenta nenhuma informação nova". Sobre o conflito de interesse na opção por não divulgar a informação, o grupo diz que a decisão é do judiciário, que concedeu a liminar. A companhia avalia que abrir esses valores é desnecessário e inconveniente tendo em vista a situação social, econômica e de segurança pública do País. A Embraer enviou posicionamento na mesma linha.
A Rumo e a Suzano também avaliam que, ao divulgar os dados consolidados sobre a remuneração dos administradores, atendem as necessidades dos investidores. A companhia de papel e celulose diz ainda que "divulga a remuneração global efetivamente paga, por órgão da administração, assim como os critérios para sua determinação, de modo que entende inexistir conflito de interesses."
Segundo a Rumo, o modelo de divulgação consolidado é aprovado por seu comitê de remuneração, composto por membro independente. A Cosan também diz que a decisão tem respaldo de seu comitê de remuneração, para quem informar o valor global da remuneração mantém a transparência da sua conduta.
"A divulgação de informação no nível de detalhe requerido pela CVM expõe de forma delicada e significativa um determinado grupo de executivos, podendo gerar impactos na segurança dos envolvidos e nas diretrizes estratégicas da empresa", disse a Multiplus em nota.
O contraponto ao argumento de que a divulgação da remuneração global é suficiente é que sem o detalhamento das remunerações fica mais difícil identificar e coibir discrepâncias de remuneração dentro da diretoria e do conselho de administração das companhias. Não é a toa que na reforma da Instrução 480 a CVM propõe que as companhias passem a detalhar o processo pelo qual o conselho de administração determina a remuneração individual de seus membros e da diretoria, informando, por exemplo, se recorre a pesquisas de mercado ou submete o cálculo a algum comitê interno.
As demais companhias preferiram não se manifestar a respeito. A BR Malls está entre elas. O conselho da companhia, entretanto, decidiu no fim de 2016 que passará a divulgar a remuneração individual máxima, mínima e média da diretoria executiva a partir deste ano. A alteração foi uma vitória dos acionistas que vinham questionando o modelo e na AGO de abril do ano passado rejeitaram, por maioria, a proposta da administração para a remuneração global anual dos administradores. Depois disso, o tema remuneração foi encampado pelo novo conselho, eleito com membros independentes.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.