Um batom que pode ser aplicado sem a necessidade de usar as mãos. A máquina, com informações em braile e ferramentas de inteligência artificial (IA), está sendo elaborada há sete anos pelo Grupo Boticário, que terminou nesta semana a fase de testes com o público externo para o desenvolvimento do produto, chamado de Batom Inteligente. O objetivo é ajudar pessoas com deficiência visual ou com dificuldade de mobilidade a se maquiar com autonomia.
A iniciativa da companhia de cosméticos é um exemplo de como empresas já consolidadas no mercado brasileiro têm buscado ampliar seu portfólio para atender clientes com deficiência, para atrelar a sua cultura organizacional às políticas ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança), para além dos muros do ambiente corporativo.
Segundo o Boticário, o mecanismo criado com o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), a startup Neurobots e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), faz parte das estratégias de diversidade e inclusão (D&I) da companhia. A ideia é trabalhar a pauta da acessibilidade e alcançar pessoas integradas ao ecossistema do negócio, como os clientes com deficiência.
“Temos uma perspectiva que chamamos de círculo de ouro da diversidade, que é entender que o consumidor diverso pode ter acesso a estímulos de comunicação representativos para ele, e que isso pode gerar um desejo de ir até uma loja física onde haverá um atendimento inclusivo e onde ele terá acesso a produtos pensados para suas necessidades”, explica o gerente sênior de D&I do Grupo Boticário, Rony Santos.
A Mercur, que já atuou em parceria com o Boticário para criar maquiagens acessíveis, também desenvolve desde 2011 uma gama de materiais direcionados ao bem-estar de pessoas com deficiência (PCDs). Entre outros itens, a linha de acessibilidade da empresa conta com fixadores de objetos, alças, pulseiras para estabilizar movimentos, luvas para reabilitação das mãos e engrossadores para lápis.
Conforme a facilitadora de coordenação da empresa, Fabiane Lamaison, o desenvolvimento dos acessórios começou como um projeto pontual com participação de criadores PCDs, e, em 2018, passou a integrar a prática organizacional da companhia.
“A Mercur tem como proposta de negócio oferecer soluções para impulsionar o potencial humano. E o relacionamento com o meio ambiente e a produção responsável são pilares estratégicos assumidos desde 2009. Nesse sentido, os recursos de inclusão tem feito parte do jeito da empresa de fazer (seus produtos) com as pessoas, ao mesmo tempo que busca reduzir impactos ambientais.”
No caso da Tramontina, o foco no público com deficiência ocorreu mais recentemente, em 2023. A empresa de utensílios de cozinha lançou uma coleção de talheres assistivos, com garfo, faca e colher voltados para pessoas com doença de Parkinson e outras condições clínicas que interferem no movimento das mãos. Os modelos, que têm texturas nos cabos para facilitar a aderência, foram desenvolvidos com a empresa ZON Design e a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Também no ano passado, a companhia lançou um conjunto de mesa e cadeira para crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). “Além de observar os aspectos ambientais, cuidar das pessoas é parte do propósito da marca”, diz o diretor comercial da Tramontina, Marcos Grespan. “Dessa forma, o lançamento (dos produtos com acessibilidade) veio ao encontro da nossa cultura organizacional, que está atenta às questões sociais, como o interesse dos consumidores por produtos assistivos.”
Desafios na oferta de produtos
O público atendido por esses produtos é numeroso no País. Segundo dados da Pnad Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, o Brasil tem cerca de 18,6 milhões de pessoas de dois anos ou mais com algum tipo de deficiência. No mercado, são muitas também as limitações enfrentadas por elas, indo desde a falta de acessibilidade em lojas físicas até a carência de itens à venda que possibilitem a fácil identificação. Conforme pesquisa do Procon de São Paulo, de 2020, essas estão entre as maiores dificuldades de PCDs nas atividades comerciais.
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Segundo a executiva Carolina Ignarra, CEO da consultoria especializada Talento Incluir, as iniciativas existentes até agora nas empresas instaladas no Brasil são importantes, mas ainda muito pontuais diante do universo de empresas com produtos e serviços B2C (da empresa para o cliente, em português) no País.
A situação, segundo ela, demonstra tanto a falta de percepção das companhias sobre o potencial consumidor de PCDs quanto a ausência de números oficiais mais detalhados que deem a dimensão das múltiplas deficiências existentes na população brasileira e de suas demandas de mercado.
“Nenhum produto é lançado se não tiver público para consumi-lo. Nós, como PCDs, existimos, mas não somos bem contados. Então, a questão de não termos produtos direcionados está muito ligada às organizações não saberem qual o real potencial de alcance”, afirma a especialista.
O pouco conhecimento sobre esse público também acaba prejudicando as empresas que têm apostado nele como cliente, acrescenta Ignarra. A incorporação de produtos acessíveis para todos às coleções já existentes, segundo ela, é mais eficaz do ponto de vista da inclusão e da perenidade do produto no mercado do que a segmentação das linhas.
“A comunidade com deficiência tem feito um esforço significativo para tentar convencer as empresas de que, quando elas atendem as necessidades de um grupo específico, também estão atendendo as necessidades de um público mais amplo”, diz. “A questão de fazer produtos acessíveis para todos, inclusive para PCDs, tem um poder de convencimento muito maior e também é mais interessante tanto para quem produz quanto para a pessoa com deficiência, que vai consumir o que todos consomem.”
A estratégia defendida por Ignarra foi utilizada pela Nike quando lançou, em 2021, a linha FlyEase, com calçados elaborados para serem colocados nos pés sem utilização das mãos. A empresa informou os benefícios da tecnologia empregada nos tênis para as pessoas com deficiência, mas acrescentou que eles também poderiam ser úteis para agilizar atividades de pessoas sem deficiência quando estivessem com as mãos ocupadas. Os calçados continuam sendo vendidos pela empresa três anos depois.
No caso da Reserva, a companhia desenvolveu uma linha segmentada para PCDs em 2021, e cocriou as peças de roupa com a empresa Equal Moda Inclusiva, já especializada nesse público. Porém, segundo o gerente de Estilo da Reserva, Felipe Crepalde, a coleção teve como base os produtos que já são clássicos da marca como camisetas de algodão, camisas de manga e calças. Com a adaptação, os produtos passaram a ser direcionados também às pessoas que usam cadeiras de rodas e com amputação dos membros superiores e inferiores, complementa a CEO da Equal Moda Inclusiva, Silvana Louro.
Repensar padrões na alta liderança
Mesmo que o cenário ainda seja desafiador para o atendimento do público com deficiência externo às empresas, as companhias podem buscar maneiras de compreender as demandas do segmento e atuar para incluí-lo no seu público consumidor, diz Ignarra. O ponto de partida dessas iniciativas, segundo ela, deve vir da intencionalidade da alta liderança dessas companhias, formada por pessoas que definem a cultura corporativa de inclusão.
“O caminho é trabalhar a mente da alta liderança para repensar padrões, pois os padrões nos fazem diminuir o nicho de atendimento. É preciso trazer D&I para o letramento. O executivo que faz um curso sobre finanças, por exemplo, precisa fazer também um curso sobre D&I. Assim, ele terá um negócio mais inteligente e mais lucrativo.”
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