Cisgênero e heterossexual. Este é o perfil de identidade de gênero e de orientação sexual identificado como predominante na composição dos cargos de governança no Brasil, em levantamentos recentes sobre o tema. O padrão é também confirmado a partir de relatos de executivos autodeclarados LGBT+ que ocupam o alto escalão em grandes empresas no País e contaram ao Estadão sobre os desafios de suas trajetórias profissionais.
De modo geral, esses executivos sabem que fazem parte de um segmento que soma menos de 5% no quadro de líderes no mercado. Um mapeamento da consultoria de diversidade Gestão Kairós publicado em 2022, com a maior parte de respondentes do Brasil, indica que, dentre as funções gerenciais até a alta liderança, 96,1% são ocupadas por homens e mulheres cisgênero heterossexuais.
No caso de pessoas transexuais, a participação no mundo do trabalho e nas funções de comando é ainda menor. Estudos referentes a 2024 da startup de dados de diversidade To.gather mostram que profissionais trans são 0,9% no quadro funcional geral em empresas brasileiras e somente 0,2% estão em posições que vão da gerência ao alto escalão.
Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, uma das razões da discrepância está nos chamados vieses inconscientes, que atribuem estereótipos negativos a pessoas LGBT+ e acabam impactando suas carreiras. Apesar de o avanço da agenda ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança) nas grandes empresas ter encorajado e ampliado a contratação desses profissionais, tais vieses por vezes se tornam uma barreira para que possam chegar à alta liderança com mais facilidade.
“É um fator que (pode) jogar para baixo ou para fora, ou impedir o seu desenvolvimento na carreira, pois aí vêm os atributos (preconceituosos) ligados a ser uma pessoa LGBT+: ‘não é sério’, ‘tem costumes que vão atrapalhar os rituais da empresa’, entre outras desculpas”, avalia o secretário-executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, Reinaldo Bulgarelli.
A organização liderada por Bulgarelli reúne quase 200 companhias na busca por promover e ampliar os Direitos Humanos LGBT+ no ambiente empresarial. “Ser LGBT+ é um tema pessoal, mas o que estamos trazendo para a agenda ESG como assunto principal é a questão da cidadania, no sentido de: há espaço no mercado de trabalho para (a pessoa LGBT+) se expressar e se desenvolver na carreira? Estamos vendo que não.”
Na visão da CEO da Gestão Kairós, Liliane Rocha, um ambiente corporativo pouco acolhedor para a diversidade pode, inclusive, não dar a dimensão real da representatividade LGBT+ na liderança, uma vez que esses profissionais podem decidir não expor sua orientação sexual por temer uma futura dificuldade de progressão profissional. Sendo assim, ela acredita que os números são, de fato, baixos, mas deve ser considerada também a alta probabilidade de subnotificação.
“Temos dois cenários”, pondera Rocha. “O primeiro é o das pessoas LGBT+ que estão dentro das empresas e não falam sobre sua orientação sexual e identidade de gênero porque não há um ambiente de acolhimento e segurança psicológica para que isso seja feito. Para que tivéssemos os números de forma concreta e real, as pessoas teriam que se sentir confortáveis em afirmar a sua diversidade sexual. E o segundo ponto são processos LGBTfóbicos. Eles realmente reduzem ou inviabilizam a entrada desses grupos nas empresas.”
Dizer quem você é na empresa não é privilégio, é um direito
Javier Constante, Dow
Hoje, aos 63 anos, o CEO da Dow no Brasil e América Latina, Javier Constante, fala publicamente sobre sua orientação sexual. Mas o percurso até se sentir seguro para tratar do tema foi desafiador. No início dos anos 1980, o executivo cursava Engenharia Química na Argentina em meio à ditadura militar no país. Ele conta que, na época, com a repressão do regime às pessoas LGBT+, revelar a sua orientação sexual poderia não só causar dificuldades em ascender na carreira, como custar a própria liberdade.
“Se você fosse descoberto pela polícia em um bar gay, ia preso. E mesmo com a chegada da democracia, em 1984, isso ficou na cultura argentina por muitíssimo tempo. Então, eu sempre tive preocupação com esse assunto”, relembra Constante, acrescentando que, por muito tempo, escutou em reuniões de negócios expressões pejorativas relacionadas às pessoas LGBT+ e se sentiu intimidado em falar sobre si.
A segurança para revelar sua homossexualidade no ambiente corporativo veio com a evolução das políticas de inclusão da empresa na qual hoje ocupa um cargo de alta chefia. “Antes eu falava que tive o privilégio de trabalhar em um lugar que criou um espaço de segurança para eu abrir a minha vida. Mas, ultimamente, eu não falo mais de privilégio, falo que estou exercendo um direito que todo mundo tem e que as pessoas LGBT+, em algumas empresas, não conseguem ter. Dizer quem você é (significa) um privilégio? Eu não acho, (isso) é um direito”, defende Constante.
Em virtude da função, o executivo mora no Brasil desde 2019 e integra movimentos para ampliar a diversidade na governança. “Nas empresas mais internacionais, começamos a ver presidentes, vice-presidentes, grandes diretores que são LGBT+, todo mundo sabe e as pessoas são respeitadas. Eu acho que isso no Brasil ainda está um pouco embrionário. Temos muitas empresas que estão ajudando no desenvolvimento de carreira de pessoas LGBT+ e estão evoluindo de maneira positiva, mas essas pessoas ainda não conseguiram chegar a um nível executivo maior.”
Quando a empresa não é inclusiva, o LGBT+ se especializa em se camuflar
Geovanne Tobias, Banco do Brasil
Durante metade da sua vida laboral, o atual diretor financeiro do Banco do Brasil, Geovanne Tobias, de 58 anos, teve medo de não ser aceito e “ser penalizado” no mundo corporativo por ser homossexual. Por isso, ele diz que precisou manter uma “vida hétero”. O receio que sentiu, segundo ele, está no imaginário de toda pessoa LGBT+.
“Quando o ambiente não é inclusivo, a pessoa LGBT+ acaba se especializando em se camuflar e se esconder. Durante boa parte do crescimento profissional, eu fiquei ‘dentro do armário’”, conta o executivo. “No mundo corporativo, antes da pauta ESG, era muito difícil (falar da sua homossexualidade), e quando se fala de mercado financeiro, é mais difícil ainda. É um ambiente totalmente hétero, cisnormativo, branco e masculino.”
As relações e eventos sociais são ainda o ponto menos acolhedor para líderes LGBT+, avalia Tobias. “É uma luta diária. Uma coisa é marcar uma reunião para falar de trabalho, quando a questão pessoal não vai estar ali. Mas quando se vai para um evento mais social, em que os executivos estão relatando questões familiares e perguntam pela esposa, (falo): eu tenho marido”, relata. “As peças dessa estrutura social que a gente vive, inclusive no mundo corporativo, são feitas para a heteronormatividade.”
O diretor, que é um dos criadores do comitê de diversidade e inclusão do Banco do Brasil, defende que mais líderes LGBT+ possam falar sobre o tema em suas corporações para ajudar a diminuir vieses preconceituosos. “Se você quer ser líder, eu acho que tem que estar preparado para assumir, sim, quem você é. Como você vai inspirar seus liderados se você se mostra uma outra pessoa que não a sua essência? Essa é uma reflexão importante. Os líderes precisam ser mais verdadeiros.”
Antes de ser lésbica na liderança, vêm as barreiras por ser mulher
Karina Monaco, Basf
Para a executiva Karina Monaco, de 44 anos, chegar à liderança foi enfrentar dois entraves culturais para a ascensão de carreira: ser homossexual e ser mulher. Gerente sênior de comunicação corporativa da Basf para América do Sul desde 2022, ela conta que o mercado lhe impunha uma dupla pressão social.
“Eu costumo dizer que antes (da homossexualidade) para mim veio o ponto de ser mulher”, explica Monaco. “Como mulher também eu enfrentei muitas situações desconfortáveis, muitas barreiras, machismo. Aí soma ao fato de ser lésbica e fica um pouco mais complexo.”
Com sua equipe, quando falou abertamente sobre sua orientação sexual, ela conta que não houve dificuldades depois em exercer as atividades de liderança. Além disso, ela tem percebido uma melhora na ocupação de postos de chefia por mulheres LGBT+. No entanto, avalia que estas profissionais ainda podem fazer mais, e se tornarem para as jovens a referência que ela não teve no início da carreira.
“Um tema que ainda me intriga é que vejo uma evolução e mulheres lésbicas ocupando esses espaços, mas ainda poucas falando e sendo porta-vozes, de fato, não só desse tema, mas de temas diversos”, pondera. “Então, a gente ainda tem uma jornada para cumprir, porque a gente precisa também começar a assumir esses (papéis).”
A cadeira sênior acaba nos protegendo do preconceito
Ricardo Yuki, Citi Brasil
Quando era universitário, o diretor de gestão de riscos do Citi Brasil, Ricardo Yuki, de 53 anos, teve dúvidas se sua homossexualidade seria um entrave no mundo corporativo. Mas, na prática, o temor não se confirmou. A ascensão de carreira no mercado financeiro, no entanto, o fez pensar por muito tempo que as barreiras para o público LGBT+ na alta liderança já estavam superadas. “Há quase dez anos, fui convidado para dar uma entrevista e perguntei ao jornalista: isso ainda é um tema? Eu era tão míope a ponto de achar que isso estava superado, porque eu não vivia isso.”
No Citi há 24 anos, o executivo conta que nunca precisou esconder sua orientação sexual para chegar à alta liderança, mas entende que é um “caso de exceção” no mercado. “Eu já estou em uma cadeira sênior há muitos anos, e a verdade é que o dinheiro protege (do preconceito). É diferente de uma pessoa que está em um outro momento da carreira, em uma posição junior”, diz.
“(Por isso), a liderança tem a obrigação de criar uma salvaguarda que possa proteger essas pessoas. Dado o momento em que se encontram, eventualmente elas são anônimas ainda e são elas que estão enfrentando (preconceitos) no cotidiano”.
Na visão de Yuki, para que os profissionais LGBT+ tenham liberdade para ascender profissionalmente, as ações de inclusão precisam estar presentes em todo o mercado e não apenas em poucas empresas. Ele é cofundador da Outstand Brasil, uma liga formada por representantes do setor financeiro para promoção de mudanças corporativas que impactem positivamente a diversidade.
“O que estamos fazendo não é por nós. Se temos a oportunidade de estar aqui, para nós a questão está praticamente resolvida. (Isso) é para poder mandar uma mensagem para aquela pessoa que está em outro momento da carreira e ainda se sente restringido. É o poder da demonstração”, comenta o gestor. “Falar disso é dizer que você pode ser o que quiser: um cabeleireiro, trabalhar no mercado financeiro, um artista, um advogado, um pedreiro, qualquer profissão. A sua orientação não está correlacionada à sua carreira.”
Antes da preocupação de chegar à alta liderança como trans, há a preocupação se haverá emprego
Danielle Torres, KPMG
Sócia de práticas profissionais da KPMG, Danielle Torres, de 41 anos, faz parte do grupo de menos de 1% de lideranças transexuais do Brasil. Antes da transição, ela ingressou no mundo do trabalho como uma pessoa do gênero masculino e não percebia que estava camuflando sua identidade. “Quando eu comecei a trabalhar, eu cortei os cabelos, parei de usar maquiagem, mas não associava isso ao fato de ser trans. Não reparei na época que eu estava me agredindo”, lembra.
A transição social de gênero ocorreu publicamente há dez anos, acompanhada de alguns receios quanto ao futuro profissional. “A preocupação de chegar à alta liderança passou na minha cabeça. Aliás, a preocupação foi muito mais fundamental: será que eu não vou ter emprego porque eu sou trans?”. Ao comunicar a situação à empresa, ela se preparou para a demissão, mas teve o suporte que a levou a chegar ao posto que ocupa atualmente.
Torres conta que, com a transição, sua carreira deslanchou. O diferencial foi poder se apresentar às pessoas de forma autêntica e saber reagir aos preconceitos. “É óbvio que a LGBTfobia faz parte do meu dia a dia. Eu não posso achar que não. (Mas) eu comecei a me instrumentalizar de outra forma. A minha atividade profissional não será uma fuga em função da LGBTfobia, do machismo e de todos os preconceitos estruturais, mas eu preciso entender que eles existem para eu saber como ser menos afetada por eles”.
Antes de viajar, a executiva, que também trabalha internacionalmente, checa a legislação relacionada às pessoas LGBT+ nos países para garantir sua segurança. Sua atuação no mercado é quase sem pares. “É minimamente solitário. Você é sempre a única. Talvez tenham outras ocupando alguns espaços, mas no meio corporativo, em quase tudo que fiz, eu sou a primeira ou uma das poucas. Mas, ao mesmo tempo, grande parte do que eu passo é comum ao universo da mulher cisgênero, então, a solidão acaba diminuindo um pouco.”
A dor dos grupos minoritários na governança é parecida: a dor da falta de pertencimento
Argentino Oliveira, Braskem
Com anos de atuação na grande indústria de setores como celulose, energia e química no Brasil, o executivo Argentino Oliveira, de 38 anos, conta que em momentos da carreira chegou a passar por microagressões no mundo corporativo por causa da homossexualidade. “Hoje, eu estou em RH (Recursos Humanos), mas sempre trabalhei em supply chain e vendas. Uma coisa é você ser um LGBT+ em áreas mais soft, outra é ser LGBT+ em áreas mais hard. Você não tem a mesma aceitação, as pessoas te põem à prova duas, três vezes “, afirma.
Como uma estratégia de “compensação”, ele passou a fazer das entregas profissionais uma maneira de assegurar sua ascensão na carreira. “Quando estou transitando de área, eu já apresento tudo que entreguei, meus resultados, meu currículo, porque eu tenho um receio tão grande de as pessoas virem primeiro o Argentino e (a associação) do ser gay como um ponto negativo, que a primeira coisa que eu quero é garantir que sou gay, mas entrego mais do que meus pares.”
Morando na Holanda, onde ocupa a cadeira de diretor de pessoas, comunicação, marketing e gestão de produtos pela Braskem, Oliveira tem conseguido visualizar uma maior abertura, no país europeu, para atuação de profissionais LGBT+ de alta liderança e não tem tido dificuldades em exercer as atividades do cargo nesse meio. “Pouco se importam com sua orientação sexual. O nível da discussão é qual é a sua entrega e o que você vai agregar para a empresa”, explica.
Quanto ao Brasil, Oliveira avalia que já consegue ver uma evolução quanto ao tema dentro das empresas, diferente de quando começou sua vida profissional. A maior inserção de grupos minoritários na governança aponta para isso. “Quando eu olho a representatividade que o Brasil tem nos cargos executivos hoje, acho que a (minha) solidão é muito menor. Eu consigo compartilhar com executivas mulheres e com executivos pretos as minhas dificuldades como gay, porque, por mais que sejam grupos minoritários distintos, a dor é relativamente parecida: a dor da falta de pertencimento. Aí eu me conecto.”
Tive sorte de não precisar me portar de uma maneira diferente no ambiente corporativo
Felipe Braz, Natura
O diretor global de marketing da Natura, Felipe Braz, de 43 anos, atuou durante quase toda carreira no ramo da indústria cosmética na mesma empresa e afirma que nunca chegou a se preocupar com a possibilidade de sua orientação sexual interferir negativamente na escalada à liderança. “Eu tive sorte. Vim de uma família muito acolhedora, um círculo de amigos muito acolhedor e uma empresa acolhedora. Nunca tive que me colocar de uma maneira diferente.”
Mesmo estando em um contexto mais favorável à diversidade, ele lembra que a abordagem do tema no ambiente corporativo há 20 anos, quando começou, era ainda tímida. “Era um outro contexto. Não era um tema do qual a gente falava em um almoço, assim como as pessoas falam dos filhos. Então, a gente saiu de um lugar de pouca visibilidade para um lugar muito mais consolidado. Hoje, isso é pauta de momentos informais e formais.”
De acordo com Braz, alguns aspectos favorecem que seu caso seja de exceção, frente às dificuldades que outras pessoas LGBT+ passam para chegar à liderança. “Eu sou um homem cis, branco e não tenho nenhuma interseccionalidade. Eu acho que o único aspecto de minoria que eu tenho é o fato de ser gay. Então, certamente, isso ajudou em vários aspectos e ainda ajuda”, avalia.
Outro ponto que considera vantajoso tem sido atuar em um segmento permeado por mulheres, que também são minoria nas lideranças empresariais. “Trabalhar com um público mais feminino foi bastante importante nessa trajetória, porque, de certa forma, há uma conexão e uma abertura maiores (à diversidade). (Mas) é curioso que, mesmo nas empresas de beleza, há também muitos homens na liderança. Ainda tem um descompasso no geral e um grande caminho a ser percorrido.”
Ambiente favorável
Na avaliação do CEO da consultoria Mais Diversidade, Ricardo Sales, a decisão de falar publicamente na empresa sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero é de cunho individual do executivo ou aspirante à alta liderança. Porém, é papel das corporações implementar políticas de governança que possam fazer do ambiente corporativo um lugar de segurança para que a pessoa possa tratar do tema quando se sentir confortável, sem temer que o fato possa impactar sua carreira.
“Ninguém é obrigado a falar abertamente sobre sua orientação sexual. As pessoas devem fazê-lo se quiserem, no seu tempo e à medida que se sentirem confortáveis. No entanto, é obrigação da empresa garantir que o ambiente de trabalho ofereça condições para quem quiser fazer isso”, orienta o especialista.
Quando a companhia se torna aberta à diversidade, a decisão de um liderança em falar sobre sua experiência é positiva para as demais pessoas LGBT+, diz Sales. “O ato faz diferença para o profissional, porque aquele que fala abertamente sobre sua orientação sexual para de viver uma vida dupla, sai daquele lugar de ter que se esconder na empresa e vive a vida na integralidade. Além disso, o relato faz a diferença para a organização, pois uma liderança que é vocal em relação a esses temas pode usar o seu espaço de privilégio para passar recados importantes para essa agenda.”
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