Após o Brasil ter se tornado o primeiro país do mundo a adotar oficialmente as normas globais de reporte de dados ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança), o fortalecimento de informações financeiras, e numéricas na pauta de sustentabilidade deve ser um dos grandes destaques desta agenda em 2024.
Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam que essa é uma tendência natural, após a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) editar uma resolução que avaliza as normas do International Financial Reporting Standards (IFRS) em outubro deste ano. “As normas colocaram o Brasil debaixo dos holofotes do mundo”, afirma o diretor de vendas da EY para América Latina, Ricardo Assumpção.
As normas, lançadas globalmente em junho deste ano, criam padrões para o reporte de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade para empresas e fundos de investimento, obrigando as empresas de capital aberto, listadas na B3, a publicar, a partir de 2026, relatório especial com informações financeiras relacionadas à sustentabilidade. A medida está inserida no plano de transformação ecológica, como é chamado oficialmente a agenda verde do governo.
Embora as normas não entrem em vigor no próximo ano, a expectativa é de que as grandes empresas de setores econômicos relevantes comecem a se movimentar para se adequarem ao IFRS ainda em 2024, impactando também as de pequeno e médio porte - que, segundo o presidente do conselho do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, Hugo Bethlem, costumam seguir as ações das maiores do mercado.
Além disso, essa é uma forma de atender a demanda dos investidores, que pedem há anos por dados mais comparáveis da agenda ESG, permitindo se tornar um balizador para decisões corporativas, de fato. “Com esse lançamento, não dá mais para você escolher o relatório que você quer usar; vai ter que cumprir esse e fazer o seu relatório integrado junto com o balanço financeiro”, afirma Bethlem.
Para o executivo, o fato de a CVM ter chancelado o IFRS ainda neste ano fará com que o mercado executivo como um todo evolua, forçando os empresários a mudar por convicção, legislação ou por constrangimento - já que, para ele, a ampla adesão das empresas à agenda ESG fará com que sejam poucos os executivos que não falam dessa pauta no mercado.
Financiamento verde
Além do endurecimento dos dados numéricos, um dos maiores destaques da pauta de sustentabilidade em 2024 deve ser o financiamento verde, assunto que já ganhou grande destaque nas pautas das principais economias do mundo durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-28), realizada entre novembro e dezembro deste ano em Dubai.
“O financiamento verde verá muito crescimento, com foco em novas opções de títulos verdes, fundos mútuos sustentáveis e fundos negociados em bolsa com foco em ESG entrando no mercado”, afirma o sócio-gerente da Kaapora Finance, Pedro Gerhardt.
Essa é uma opinião similar a da líder de sustentabilidade e clima da Deloitte, Maria Emília Peres, que afirma que trazer mecanismos práticos de operacionalização e de acesso a finanças sustentáveis deve ser um dos principais focos da agenda verde de 2024.
“É muito difícil a gente fazer toda essa transição sem financiamento. Para transicionar para uma economia de baixo carbono, precisamos de financiamento para que essas tecnologias sejam acessíveis para as empresas e também para o consumidor, para que os novos produtos não sejam tão caros”, afirma Peres.
A executiva destaca que um assunto que deve ficar em voga também deve ser o acesso a estes montantes, que ainda é dificultado. Uma pesquisa da Deloitte de novembro deste ano, divulgada com exclusividade pelo Estadão, aponta que 73% dos executivos não têm acesso a mecanismos de financiamento verde, demonstrando a necessidade de que os bancos e fundos de investimento trabalhem essa pauta.
Ela acredita no fortalecimento das linhas de crédito verdes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Banco do Brasil devem aumentar de forma progressiva a partir de 2024. “Não vai ser uma grande virada, é uma tendência crescente.”
A executiva ainda aponta que pautas que foram amplamente trabalhadas pelo governo Lula ao longo deste ano, como a produção de hidrogênio verde, os investimentos para criar estruturas para o desenvolvimento destas tecnologias e os biocombustíveis devem continuar em alta.
No pós COP-28, Maria Emília aponta que um tema que ganhou destaque foram as empresas revisitarem os seus planos sustentáveis, em especial os de transição energética. Para ela, em 2024 essa deve ser uma pauta que crescerá exponencialmente para trazer tangibilidade para as ações.
“Quando esses planos foram feitos, apostou-se muito na eletrificação. Ela tem um potencial e vai ser responsável por grande parte; mas, quando se fala de caminhões e indústria pesada, não vai ser uma realidade tangível. Essa provocação é muito pertinente para acelerar os planos das empresas.”
Para ela, outros temas de destaque em 2024 serão o uso de inteligência artificial para acelerar a criação de hipóteses dentro de empresas e o crescente destaque da Arábia Saudita na agenda internacional. Ela explica que o país possui uma grande quantidade de recursos internos que somados à influência deles na economia mundial; e o seu poder econômico pode levar o país a se tornar um líder na bioeconomia.
“Hoje eles têm essa dependência do petróleo e precisam diversificar a economia, mas também têm um potencial de recursos naturais que podem ser potencializados para a parte de energia renovável, especialmente a parte solar. Eles vêm desenvolvendo tecnologias; mostraram isso na COP e devem avançar cada vez mais”, explica.
Sustentabilidade
Para o especialista da EY para América Latina, Ricardo Assumpção, embora a preocupação com o financiamento verde seja um possível destaque para 2024, o especialista aposta que haverá uma diminuição crescente de investimentos com foco exclusivo na pauta de sustentabilidade.
O executivo explica que a demanda global pela pauta de bioeconomia, somada às ações da indústria privada e do governo federal, passará a integrar cada vez mais a estratégia de negócios como algo essencial, e não como um assunto à parte.
“A diminuição de investimentos em sustentabilidade vai perder força de forma individual, mas vai ganhar força integrada em qualquer prática que uma empresa faça. Uma agenda de mudanças climáticas integradas dentro de outras agendas. Em 2024, não vamos ter estratégias ESG e de negócios. Vamos ter estratégias de negócios sustentáveis”, explica Assumpção.
Para ele, prova disso é que antes os investimentos e os custos para adaptação climática eram feitos massivamente pelo governo, algo que mudou drasticamente nos últimos anos, passando a ser uma preocupação das empresas. Assumpção vê que atualmente a comunidade empresarial brasileira está focada em investir em regulamentação, algo que é problemático para ele e deve começar a ser revisto no ano que vem.
“Hoje o capital está focado em regulamentação. Essa atenção vai causar um pouco de distração do que deveria ser o foco. Estamos focados em compliance e não em promover a mudança agora. Vejo esse sino tocar muito forte no mundo corporativo nos próximos anos.”
Outro ponto de destaque deve ser o mercado de carbono, principalmente após ele ter sido aprovado na Câmara dos Deputados no final de dezembro. O CEO da Biofílica Ambipar, Plínio Ribeiro, avalia que em 2024 a contabilidade de carbono no nível empresarial deve ser fortalecida.
“No Brasil vamos ter uma discussão mais séria e técnica, que ainda falta muito, de qual é a emissão de cada empresa, de cada indústria dessa empresa no território. As empresas vão ter que reportar exatamente quanto emitem e tem empresa que ainda que nem fez a conta”, afirma.
Tendências para o governo
A diretora executiva da Fundação Ellen MacArthur para América Latina, Luisa Santiago, destaca que o fortalecimento que o governo federal deu para a pauta de economia verde deve se prolongar no próximo ano.
Diante deste cenário, a executiva acredita que deve haver uma intensificação das discussões sobre economia circular, especialmente porque o tema esteve na pauta do governo de um jeito mais apurado e consistente em 2023, se posicionando sobre o tema inclusive globalmente.
“Há a expectativa de que o governo vá começar a colocar em prática políticas de economia circular, o que impacta as empresas, os negócios e a economia. Devem haver discussões que resolvem os problemas de resíduos, poluição e degeneração da natureza no início da cadeia de produção, na etapa de criação dos produtos e modelos de negócio”, explica.
Para ela, atualmente o tema ainda é bastante centrado nas soluções de fim de cadeia, quando se tenta resolver o problema dos resíduos depois que eles já foram gerados, como é o caso da reciclagem. No entanto, as soluções mais efetivas do ponto de vista econômico e ambiental são aquelas que evitam que os resíduos e a poluição sejam gerados e que contribuam para regenerar a natureza.
“Na prática, isso significa criar produtos e modelos de negócio que mantenham os produtos e materiais circulando na economia e preservando todos os recursos empregados na sua produção - tanto os materiais quanto a energia e o trabalho”, aponta Santiago.
O vice-presidente de PMEs da Serasa Experian, Cleber Genero, afirma que a agenda ESG já é uma preocupação dos médios e pequenos empresários e que isso deve se fortalecer cada vez mais, tanto com o incentivos do governo em impulsionar essa pauta em empresas de todos os portes, quanto com a cadeia de fornecedores.
“Grandes empresas vem cobrando que os seus fornecedores apresentem boas práticas nas áreas sociais e ambientais”, explica Genero, destacando que esta ação dos maiores players do mercado impulsiona que a cadeia produtiva como um todo adote o ESG dentro de suas empresas.
O engajamento do governo, no entanto, não é uma unanimidade. Para o ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e sócio do Bocater Advogados, Carlos Portugal Gouvêa, o Brasil possui um grande potencial em liderar a bioeconomia pela sua matriz energética limpa e pela quantidade de recursos naturais. Ele destaca que para que isso se torne realidade, no entanto, ainda falta uma longa jornada a ser percorrida.
“Um pouco do discurso de que o Brasil vai ser uma potência verde não tem fundamento prático. Antes de se tornar uma liderança, ainda estamos no processo de correr atrás do tempo perdido, de anos e anos em que o governo e as empresas brasileiras não participaram desse processo de forma intensa e não se envolveram nas discussões nos países mais desenvolvidos”, afirma.
“Temos estatais que não fizeram nada para a transição energética nos últimos anos. Agora é preciso investir sem por menores, sem dúvidas. É preciso olhar o balanço e ver que mais da metade do faturamento vem de energias limpas. Mostrar resultados, números e não intenções. Atualmente existem coisas sendo faladas, mas não sendo feitas.”
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