As organizações sem fins lucrativos comandadas por pessoas negras têm em sua maioria mulheres como líderes, estão localizadas principalmente nas regiões Nordeste e Norte e encontram barreiras grandes para se formalizar e se financiar. As conclusões estão no relatório “Diagnóstico acerca de filantropia e raça no Brasil: do centro das lutas às margens dos recursos”, do fundo filantrópico Agbara, através do Núcleo de Pesquisa e Memória da Mulher Negra (NUPEMN).
As organizações classificadas como “negras” no estudo foram as que se definiram dessa maneira e possuem entre seus integrantes 50% + um de pessoas pretas. Foram ouvidas 834 organizações ao longo de 2024, com pesquisas quantitativas e qualitativas. O Fundo Agbara é voltado para mulheres negras. O relatório identifica quem lidera, a distribuição no Brasil e as áreas de atuação.
Segundo o levantamento, 89,2% das organizações negras têm mulheres cis entre seus líderes; 43,8% tem homens cis; 6,8% mulheres trans, 3,5% homens trans, 6,2% pessoas não binárias e 2,6% travestis.
Na distribuição regional, o Nordeste lidera, com 45,6%, seguido pelo Norte, com 23,6% e o Sudeste, com 18,2%. O Sul conta com 10% e o Centro-Oeste com 7,1%. Outros 2,3% têm atuação nacional. Segundo as autoras do estudo, foi notada uma maior receptividade entre as organizações do Nordeste e Norte para responder, enquanto as do Sudeste foram mais refratárias.
Um dos temas principais da pesquisa foi a questão da formalização das ONGs, e o acesso a recursos por meio de editais públicos ou de empresas. No total, apenas 45,3% das organizações respondentes possuem CNPJ, e os 54,7% restantes não possuem.
O processo pode ser burocrático, e também trazer riscos. “Algumas entidades precisam preservar a sua forma, não podem se registrar por uma questão de segurança, para garantir a continuidade e segurança dos membros”, relata Iracema Souza, coordenadora de pesquisa do Fundo Agbara.
Tentar superar a burocracia também traz problemas. A ONG Gris Espaço Solidário, localizada na Vila Arraes, em Recife, passou por isso: para se formalizar, precisava pagar IPTU, mas por estar localizada numa zona especial de interesse social (Zeis), não era cobrada pelo imposto. “Nos fizeram de bolinha, jogando para lá e para cá. A solução foi comprar endereços fiscais virtuais. Foi um processo de três anos, longo e custoso até conseguir o CPNJ. Mas entramos com processo para regularização dos imóveis que ocupamos”, diz a coordenadora da Gris, Joice Paixão.
Arrecadação
Entre as principais dificuldades de gestão apontadas pelas organizações negras na pesquisa, o financiamento é de longe o mais citado, tendo sido mencionado por 89,1% dos participantes. E as fontes de recursos mais citadas são os próprios membros (57,7%) e doações individuais (57,6%). Editais públicos aparecem na terceira colocação (45,2%), seguidas por outros de responsabilidade da própria entidade, como eventos, rifas, crowdfunding e venda de produtos. Empresas privadas são fontes de financiamento para 13,2%.
As barreiras também aparecem em outros momentos. Além da captação de recursos, outros desafios citados são a escrita de projetos (56,5%), o planejamento estratégico (48,3%) e o mapeamento de editais (47,8%). Além disso, 58,8% menciona ter conhecimento de instituições financiadoras no Brasil, mas apenas 37,5% conseguiu captar com elas — 38,4% não conseguiu e 24,1% nem sequer tentou.
A maior parte das respondentes da pesquisa relata ter arrecadado entre R$ 501 e R$ 5 mil no ano anterior (30,7%). A segunda maior parcela (28,5%) disse ter arrecadado entre R$ 1 e R$ 500.
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“Elas entendem que não têm condições de competir com organizações ‘brancas’”, explica Souza. “Então, é necessário investir em iniciativas de detalhamento e compreensão dessa realidade, fazer uma trilha formativa e conversar com outras organizações a partir do reconhecimento financeiro e político, porque essa ação é coletiva”. As principais dificuldades citadas pelas entidades para captar recursos são os editais burocráticos, a falta de abertura das empresas para diálogo e não possuir CNPJ.
A falta de diálogo com as empresas por vezes tem a ver com visões conflitantes. “O importante é que as organizações negras tenham autonomia, financiem suas estratégias. Elas buscam uma relação de paridade e não a de caridade e benevolência. Já as empresas financiam organizações que reproduzem essa mesma lógica de caridade”, avalia Souza. A falta de uma percepção sobre o tamanho do problema do racismo é outro empecilho.
O mesmo é citado por Paixão, da Gris, ao mencionar que encontram empresas com essa mentalidade. “Pensam num processo de marginalização ou de caridade, de ‘vou ajudar os pobres coitados’”, afirma a coordenadora da ONG.
Assim, por vezes, os integrantes das organizações negras não são ouvidos sobre suas principais ideias para solucionar os problemas. “As comunidades tem potências muito grandes, fazem desenvolvimento de tecnologias sociais muito grandes. Dá para pensar em algo que não se trate de coitadismo, de como eles precisam ser ajudados”, diz Joice.
Ela relata ter conseguido conversar com empresas que possuem unidades próximas à Vila Arraes para oferecerem formações ou doarem alimentos, por exemplo. Também buscou parcerias com universidades, para fornecer atendimentos ou realizar pesquisas. Contudo, procura negar ajuda de quem não possui a visão de parceria com as comunidades. “As empresas precisam construir algo diferente, algo para a sociedade, e ajudar a combater o racismo”, afirma Paixão.
A participação em editais, por vezes, não garante o pagamento das contas no dia a dia, uma vez que normalmente eles estão atrelados a projetos específicos. Assim, para as contas cotidianas, se torna necessário utilizar as doações ou recursos dos próprios membros, além de contar com trabalhadores voluntários.
Áreas de atuação
Uma questão importante na pesquisa são as áreas de atuação das organizações. A mais citada foi a cultura (71,2%), antes de educação (60,1%) e direitos humanos (51%). Contudo, a maioria das organizações trabalha em mais de um tema, para atender necessidades da população dos locais onde estão.
“Uma organização de base periférica não perde de vista o encontro com o território. Por exemplo, tem que lidar com violência, e os eventos climáticos extremos fazem todo mundo trabalhar em torno daquela questão. E não tem como falar de educação se o racismo impede que as crianças sigam na escola”, afirma Souza, do Fundo Agbara
Novamente, a Gris passou por essa situação. Inicialmente, a ONG foi fundada para atuar na educação e cultura de crianças da comunidade. Mas expandiu para oferecer atendimento médico à comunidade, direcionar cestas básicas aos moradores e, com as enchentes que atingiram a capital pernambucana em maio de 2022, passou a discutir racismo ambiental e participar de debates sobre o tema, ajudando na formulação de políticas públicas.
Sobre a construção de políticas públicas, Paixão entende que ocorre com o tempo. “Eu gostaria que fosse um pouco mais amplo, mas vai pouco a pouco. A política é muito de cima para baixo, estamos fazendo o caminho inverso, construindo com a comunidade para se tornar política pública”, diz. Ela comenta que boa parte das discussões que participa, incluindo saúde e meio ambiente, são por meio da rede Gera, que reúne outras associações comunitárias ribeirinhas da região metropolitana de Recife e consegue debater com as prefeituras e secretarias.
Superando as barreiras, as organizações estimam ter um impacto relevante nos territórios: a maior parcela (29,5%) afirmou na pesquisa que impacta entre 251 e 1000 pessoas, e outros 20,7%, que sua atuação atinge entre 101 e 250 pessoas. Outros 18,8% calculam chegar a um número entre 51 e 100 pessoas, e 13,7%, a entre mil e dez mil. O trabalho da Gris, por exemplo, alcança 42 crianças, 39 adolescentes e 78 mulheres atualmente.
A importância do trabalho das organizações negras é provocar melhorias justo onde elas são mais necessárias. “Precisa atacar a estrutura no lugar mais elementar para provocar mudanças significativas”, resume Souza, do Agbara.
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