O projeto que regulamenta o mercado de carbono no Brasil foi aprovado nesta quinta-feira, 21, pela Câmara dos Deputados, sendo um dos primeiros projetos da “agenda verde” idealizada pelo presidente Lula a efetivamente sair do papel. O texto ainda tem um longo caminho para ser sancionado - terá de passar pelo Senado e depois voltar à Câmara. E foi recebido com ressalvas por especialistas.
A avaliação é de que a aprovação do projeto é um avanço importante, uma vez que a implementação de um mercado de carbono regulamentado deve impulsionar a agenda de descarbonização da economia. No entanto, o fato de o relator do projeto, o deputado Aliel Machado (PV) ter protocolado quatro versões diferentes do texto nesta semana gerou insegurança e apreensão nas empresas envolvidas diretamente com este mercado, que classificaram o PL como “de difícil compreensão”.
“Essa minuta foi tirada aos 55 do segundo tempo e nem conseguimos olhar. A Câmara trabalhou com um projeto que ninguém conhecia, isso dá uma insegurança por si só porque, no mínimo, vamos ter outra votação só em fevereiro e perdemos um tempo. Isso é ruim”, diz o sócio de Direito Ambiental do Cascione Advogados, Rafael Feldmann. “Por outro lado, temos um projeto. É melhor ter uma votação e tentar consertar no Senado do que não ter nada.”
Feldmann se refere ao fato de que o texto da senadora Leila Barros (PDT), já aprovado pelo Senado, até foi aproveitado na votação desta quinta-feira, 21. Mas o que a Câmara aprovou oficialmente foi o projeto de autoria do ex-deputado Jaime Martins (PSD), de 2015. Desta forma, o projeto vai passar de novo pelo Senado e provavelmente retornará à Câmara.
O advogado destaca que havia uma expectativa do mercado de que a minuta do Senado fosse aprovada nesta semana e o projeto seria finalizado agora, sendo sancionado ainda este ano. “Perdemos esse timing”. Para ele, a aprovação do projeto é positiva, mas a versão do Senado era melhor.
Teto para emissões
O PL aprovado nesta quinta-feira cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que estabelece tetos para emissões de gases do efeito estufa das empresas, criando incentivos para reduzir impactos sobre o clima por meio do estabelecimento de metas.
O modelo de projeto aprovado é baseado no sistema “cap-and-trade” idealizado pela União Europeia (UE), permitindo a negociação de créditos de carbono entre as empresas que mais poluem e as que menos poluem e a criação de um preço único para negociação desses créditos.
O relator, Aliel Machado, propôs um texto que une projetos discutidos na Câmara a uma proposta já aprovada pelo Senado. As empresas que mais poluem deverão compensar suas emissões com a compra de títulos, enquanto as que não atingiram o limite ganharão cotas para serem negociadas no mercado.
Isabela Morbach, advogada e cofundadora da CCS Brasil, organização sem fins lucrativos que visa a estimular as atividades ligadas à captura e armazenamento de carbono, destaca que a primeira impressão que teve ao ver o PL final foi que tentaram abarcar diversos temas robustos, que demandam mais calma e mais discussão, em um só projeto. Para ela, o texto apresenta “algumas incertezas técnicas”. “É aquilo: o bom é inimigo do ótimo. Óbvio que a gente não pode passar qualquer coisa, mas é positivo.”
Ela destaca que o texto do Senado era mais conciso, tinha conceitos mais enxutos e por isso tinha “menos risco de causar confusão ou erros de interpretação”, focando em como o projeto funcionaria.
A executiva afirma que a aprovação é positiva por incluir temas que eram demandas do setor, mas que ainda não haviam sido levados ao Senado, como as pautas trazidas pelos governadores dos Estados da Amazônia.
“Ainda que não seja perfeito, ao incluir no projeto é um ganho. Mesmo que não seja um texto redondo, agora o Senado vai se debruçar sobre essa análise. É mais positivo do que negativo”, afirma. “Com tópicos importantes indo para o Senado, esses temas precisam ser tratados e aperfeiçoar o que está tecnicamente confuso ou errado”.
Morbach ainda critica o fato de o projeto ter ganhado tons ambientais que não necessariamente tem foco no mercado de carbono, ponto que também pode causar dúvidas.
“Os projetos de redução de emissões ou de remoção eles não necessariamente têm efeitos ambientais positivos diretos. Se eu repito que é ambiental, eu confundo as pessoas e a legislação já endereça muito bem e de forma rigorosa as responsabilidades ambientais. No mercado de carbono estamos falando de efeitos climáticos. Precisamos de legislação para tratar isso e não outras pautas nesse PL”.
A opinião da CEO da Carbonext, Janaína Dallan, é similar. Para a executiva, o texto não tem “a melhor redação e conceitos”, mas pontuou a necessidade de respeito e cooperação entre iniciativa privada e projetos estaduais de colaborarem e terem alinhamento para impulsionar esse mercado e catapultar o Brasil para uma posição de destaque no mercado internacional.
“O projeto protege os projetos individuais do mercado voluntário, trouxe autonomia para o setor privado e comunidades tradicionais. Diversos pleitos do setor não foram atendidos, mas que para acomodar o setor privado e público não foi o pior cenário.”
O sócio da área Ambiental do Rolim, Goulart, Cardoso Advogados, Thiago Pastor, afirma que a aprovação é positiva por trazer segurança jurídica para esse mercado. Além disso, ele destaca que foi a proposta mais robusta que tivemos até então, o que é um fator positivo para ele.
O executivo concorda que o texto deve ser melhor trabalhado no Senado, com esclarecimento de alguns pontos, como de como os ativos deste mercado serão tratados do ponto de vista tributário. Para Pastor, outro ponto que deve ser trabalhado é o próprio funcionamento do mercado voluntário, que existe há mais de 20 anos, mas também foi tratado no próprio PL.
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“No Brasil ele cria um mercado regulado e um mercado voluntário regulado, então vamos ter que entender como isso vai funcionar, porque isso é diferente do mundo todo. Ele traz uma questão de redução de emissão voluntária para o setor automotivo, e esse é outro ponto de atenção para a discussão do projeto.”
Feldmann destaca que uma das principais alterações é que na versão do Senado havia um comitê interministerial, o qual o Ministério de Ciências e Tecnologia compunha, que poderia ajudar em toda essa tramitação e que agora não faz mais parte.
O texto ainda uma propõe uma regulamentação para empresas que emitam mais de 10 mil toneladas de gases de efeito estufa por ano, com limitações para as empresas que emitem mais de 25 mil toneladas de CO2 por ano.
“10 mil toneladas pouco para iniciar o mercado, pois empresas desse porte muitas vezes não possuem hoje a gestão necessária de controle de emissão. Empresas de menor porte de setores que naturalmente possuem mais emissão como energia, óleo e gás, mineração, cimentos etc tendem a atingir 10 mil toneladas mais facilmente que outros setores. 25 mil seria o ideal e entendo que posteriormente, isso será ajustado de acordo com setores”, afirma O CEO da WayCarbon, Felipe Bittencourt.
Expectativas diretas para 2024
Para a cofundadora da CCS Brasil, em 2024 o impacto deve ser mais “psicológico” do que prático, com as indústrias começando a se movimentar para quais serão as sua obrigações quando o projeto entrar em vigor, de fato, em 2026.
Pastor afirma que a aprovação nesta reta final da agenda legislativa demonstra o compromisso do governo federal em, de fato, promover a regulamentação da agenda verde no Brasil. “Estamos vendo que o congresso tem dado priorização a esses temas importantes para a economia brasileira”, afirma ele, que espera que o próximo ano mostre ainda mais a potência do país na agenda internacional.
O sócio da Kearney à frente das iniciativas ESG, Mark Essle, afirma que a lei foi o primeiro passo para fortalecer esse mercado, mas destaca que é preciso que o regulador entenda que a regulamentação é o primeiro passo para impulsionar esse mercado, mas que o seu sucesso dependerá do comprometimento em manter essa agenda em alta no próximo ano.
Para ele, o próximo ano será uma chance para que as empresas, em especial o setor industrial, se movimente para entender como reduzir as emissões de suas operações e também como adequar os créditos de carbono como uma ferramenta de descarbonização dentro da empresa.
Essle destaca que mesmo que a exclusão do agronegócio tenha sido mantida, ela deve retornar após o PL ter sido sancionado, considerando o peso do uso da terra e da agropecuária nas emissões brasileiras.
“Não é negativo a exclusão porque deram um passo, mas é, sim, negativo se deixarem por isso mesmo e acharem que tudo já foi endereçado. Ai não. Vão pasar essa primeira etapa e depois precisamos entender uma metodologia para estudar as emissões de carbono do agro.
Feldmann acredita que em 2024 o PL do mercado de carbono deve ser extremamente trabalhado pelo governo federal. Ele lembra que o próximo ano terá eleições municipais e provavelmente as pautas legislativas mais espinhosas terão menos propensão de receber atenção, abrindo um espaço maior para o carbono.
“Essa não é espinhosa, estamos discutindo a forma, mas não existe gente contra. Como quem vai ser remunerado, quais as metas, essa é a discussão, mas o mercado é uma pauta interessante para todo mundo e deve ser a pauta central do ano que vem.”
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