O vidro é um dos materiais comuns do cotidiano que pode ser reciclado. No entanto, sua cadeia de logística reversa no Brasil enfrenta problemas. O baixo valor comercial do quilo de vidro torna o interesse menor nas cooperativas; além disso, as centrais de triagem estão concentradas nas regiões Sul e Sudeste. Na tentativa de alterar este quadro, a startup eureciclo tenta estruturar a cadeia de fornecimento e garantir uma melhor remuneração aos catadores, com o uso da governança.
O instrumento para isso são os créditos de reciclagem, criados por meio de compensação ambiental. Eles funcionam da seguinte maneira: se uma empresa colocou 20 toneladas de embalagens no mercado, parte desse total deve ser retirado do mercado para cumprir a Política Nacional de Resíduos Sólidos. No entanto, caso ela mesma não consiga realizar essa retirada, compra os créditos de reciclagem da eureciclo e outras empresas, que garantem que a quantidade necessária será reciclada.
Leia mais sobre governança corporativa e ESG
A startup, então, fica com parte do dinheiro e investe o restante para aumentar a remuneração pelo vidro ao longo da cadeia, incluindo para quem recolhe. Dessa forma, o vidro passa a se tornar mais interessante de ser recolhido. “Os créditos são um instrumento financeiro para tornar viáveis cadeias que economicamente não eram”, afirma Marcella Bueno, diretora de operações da eureciclo.
A venda de créditos exige uma governança para provar a quem compra os créditos que o material correspondente de fato será reciclado. Para tal, a eureciclo utiliza uma plataforma própria, baseada nas notas fiscais geradas pelas cooperativas e demais entes da cadeia, de que o material foi recolhido, triado e vendido até ser reciclado. “Funciona como um validador de que o material é pós-consumo. Assim, podemos passar a informação correta e rastreável, e garantir que o material é único e realmente foi compensado”, explica Marcos Matos, sócio-diretor e diretor de marketing da empresa.
“Os parceiros conectados com a plataforma enviam uma série de documentos de homologação para emitirem crédito e eles terem estoque desses créditos”, completa Bueno. As empresas compradoras dos certificados ainda podem ir além dos que é exigido pela lei e receber o selo neutro, para quem retira a mesma quantidade de material que coloca no mercado, e o selo regenerativo, para quem retira o dobro do que coloca.
Regiões
Tornar o vidro mais atraente para ser recolhido resolve parte do problema, mas não ele todo. Ainda resta a questão da falta de locais apropriados para realizar a triagem e a reciclagem em grande parte do país - por exemplo, uma carga teria que viajar de Manaus até Sergipe para ser reciclada, tornando o custo do transporte mais caro que o arrecadado.
Além dos créditos, outra solução para tornar a cadeia viável foi criar hubs locais que poderiam receber cargas de operadores, realizar a triagem e enviá-las às indústrias recicladoras em quantidades maiores. Em 2022, seis rotas foram estruturadas, e uma sétima está sendo criada. Segundo a eureciclo, o número de operadores cadastrados na plataforma que trabalham com vidro saltou de 19 em 2020 para mais de 100 em 2023.
O trabalho para a estruturação dos hubs envolve três etapas: mapear a região para entender questões como distância, logística necessária, custos, se há tecnologia local que possa ser melhorada, e planejar; a segunda é uma fase de testes para saber se o planejamento deu certo, se necessário reforçando pontos como compra de equipamentos de coleta e conscientização dos operadores locais; por fim, entra na fase de perpetuação, em que no máximo alguns ajustes são necessários. “No mapeamento vemos as possibilidades que existem e buscamos entender quais tecnologias há no local”, conta Bueno.
Embora ajude a superar a questão das distâncias, ainda há reflexos. O crédito para a mesma quantidade de material reciclado no Amazonas é mais caro do que no Mato Grosso do Sul, que por sua vez é mais caro do que em São Paulo. Atualmente, o projeto da eureciclo está presente em sete estados (Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Piauí) e há a previsão de expansão para Espírito Santo, Paraíba, Rio Grande do Norte e Rondônia.
A startup calcula que desde o início em 2021, 8.400 toneladas de vidro foram recicladas e retornaram à cadeia produtiva, e a expectativa é que o volume seja de aproximadamente 6.000 toneladas em 2023. A capacidade de triagem e reaproveitamento dos resíduos cresceu mais de 440%. “O crédito no fim é só um meio para que tudo aconteça de forma mais eficiente possível, e a gestão do sistema seja feita da melhor forma”, resume Bueno.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.