BRASÍLIA - A Casa Civil deve fazer uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a possibilidade de bancar investimentos em infraestrutura por meio de créditos extraordinários, que ficam livres de qualquer limitação do teto de gastos, mecanismo que restringe o avanço das despesas à inflação.
A decisão atende a uma pressão do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que quer impulsionar R$ 35 bilhões em obras públicas sob a justificativa de estimular a retomada da economia após o impacto da covid-19, mas esbarra nas regras fiscais.
O TCU já tem sido ouvido informalmente sobre o tema. Caso tenha o aval da corte de contas, o governo poderia na prática usar a calamidade para bancar investimentos do chamado Plano Pró-Brasil driblando o teto de gastos, hoje colocado pela própria equipe econômica como âncora da sustentabilidade fiscal do País.
O assunto foi debatido nesta segunda, 20, em reunião da Junta de Execução Orçamentária (JEO), formada pelos ministros da Casa Civil, Walter Braga Netto, e da Economia, Paulo Guedes. Segundo apurou o Estadão/Broadcast, a JEO aprovou a realização da consulta, que deve ser formalizada pela Casa Civil. No decreto que criou a Junta, o texto diz que o quórum de votações do colegiado precisa ser consensual.
Apesar da aprovação, o desconforto permanece na área econômica, ainda contrária à manobra para gastar mais. Marinho, por sua vez, adotou como mantra o discurso de que a ordem do presidente Jair Bolsonaro é não deixar obras paradas. O ministro do Desenvolvimento Regional tem conseguido apoio de parlamentares à estratégia “fura teto”.
Segundo um integrante do TCU ouvido sob condição de anonimato, a área técnica do tribunal também é contra e “não quer nem ouvir falar”. O plenário da corte de contas, porém, pode em tese votar de forma descolada do corpo técnico.
Outros integrantes do TCU têm demonstrado sensibilidade em relação ao desejo de parte do governo de alavancar a retomada da economia, “desde que isso não comprometa o esforço de equilíbrio fiscal”.
O governo precisa correr se quiser ter o aval da corte de contas para a manobra, pois precisa enviar até 31 de agosto o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021, já com as despesas desses investimentos. A Casa Civil também havia prometido para este mês uma primeira versão do chamado Pró-Brasil.
A maior dificuldade em atender ao pedido do governo, segundo fontes do TCU, é comprovar que o investimento público se encaixa nas exigências de imprevisibilidade para a abertura de um crédito extraordinário, ainda mais considerando a natureza e a duração das obras. O MDR tem planos de investimento em revitalização de bacias hidrográficas e em um novo programa habitacional, políticas que já estavam sendo desenhadas antes mesmo da pandemia e cuja execução se estende por vários anos. A área econômica também não vê como colocar o carimbo de “emergência” em uma obra que dura três anos, por exemplo.
Dentro do próprio TCU, tem se alertado para a sinalização ruim que o tribunal pode dar caso acate o pedido do governo, além do risco de ficar de mãos amarradas para punir eventuais irregularidades depois de dar aval à manobra. Por outro lado, há quem avalie que o governo pode acabar se atirando em uma “armadilha” e acabar sendo punido pela burla às regras fiscais.
Ainda no início da crise provocada pela pandemia, Marinho travou um embate com Guedes em torno do Pró-Brasil. O ministro da Economia chegou a insinuar que Marinho era o equivalente a um “batedor de carteira” dentro do governo ao defender a ampliação de investimentos públicos. Eles ficaram quase dois meses sem se falar após discutirem em uma reunião em 22 de abril.
Apesar de uma trégua entre os dois, o ministro do Desenvolvimento Regional segue com um plano ambicioso de investimentos, o que vai na direção contrária da orientação da equipe econômica de que a recuperação virá pelo setor privado.
Consulta
Na minuta da consulta, à qual o Estadão/Broadcast teve acesso, a Casa Civil argumenta que “o atual momento torna essencial que se garanta recursos orçamentários adicionais, tanto para garantir a conclusão de obras já em andamento bem como para a realização de novos investimentos em projetos de infraestrutura, em razão dos efeitos diretos e indiretos sobre todos os setores da economia, constituindo-se em eficaz instrumento de alavancagem econômica e enfrentamento da crise”.
A partir dos argumentos, a pasta faz três perguntas. A primeira é se o orçamento de guerra, aprovado para facilitar as despesas de combate à crise da covid-19, permitiria a execução de investimentos em infraestrutura associados ao enfrentamento da calamidade contratados até o fim de 2020, mas sem que sua conclusão se desse até o fim do ano.
A segunda pergunta é se o TCU considera admissível a abertura de crédito extraordinário para garantir os recursos necessários aos investimentos “com a justificativa de estímulo à economia e consequente geração de emprego e renda que amenizem os efeitos sociais e econômicos da pandemia”.
A última pergunta é sobre a possibilidade de empenhar todos os gastos autorizados por meio dos créditos extraordinários ainda em 2020 (o empenho é a primeira fase da despesa, em que o governo se compromete com a obra) e, depois, inscrever a parcela que seria executada em exercícios posteriores nos chamados restos a pagar.
A inscrição dos restos a pagar é particularmente visto como irregular por fontes da área econômica, uma vez que significaria o reconhecimento de obrigações com despesas que sequer ocorreram.
Procurados, Casa Civil, Economia e Desenvolvimento Regional não responderam até a publicação desta reportagem. O TCU informou que até o momento não recebeu a consulta do governo.
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