BRASÍLIA - O Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) prepara uma nova regulação para disciplinar a concessão de medidas antidumping, de proteção a produtores domésticos contra concorrentes do exterior. A ideia é dar parâmetros mais claros para a adoção do chamado “interesse público”, instrumento que congela o antidumping e permite que o produto importado, mesmo que adote práticas desleais, entre no País sem sofrer restrições.
O argumento do governo Lula é que o “interesse público” foi usado de maneira excessiva no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, com o pretexto de era preciso expor o mercado doméstico a produtos vindos do exterior a qualquer custo. Mas isso colocou o setor industrial brasileiro em pé de guerra e mobilizou também o Congresso e o Judiciário.
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Isso porque, em muitos casos, as empresas brasileiras conseguiram provar que os concorrentes estrangeiros atuaram de maneira desleal, com o objetivo de causar danos ao produtor local para tomar o mercado.
Com a volta de Lula ao poder e a nomeação do vice-presidente, Geraldo Alckmin, para o MDIC, os temas afeitos ao setor industrial ganharam peso na Esplanada dos Ministérios, indicando uma mudança de rumos também na defesa comercial.
No governo Bolsonaro, a avaliação do “interesse público”, que era analisado apenas sob demanda, tornou-se obrigatória. Isso fez com que a aplicação do dispositivo aumentasse excessivamente, na avaliação do MDIC. Foram oito episódios de suspensão do antidumping em razão do “interesse coletivo” -- 20% do total de casos registrados desde 1987.
Segundo o MDIC, o Brasil é um caso “fora da curva” no uso do “interesse público” e foi o que mais utilizou o dispositivo, em relação aos outros quatro mercados que adotam o instrumento (Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia e União Europeia). Foram 38 episódios de “interesse público” ante oito da União Europeia, a segunda colocada.
Na cláusula de “interesse público”, ainda que a indústria local comprove que o concorrente externo está agindo de forma desleal e provoque danos ao seu negócio, o governo pode permitir a importação, alegando que, no conjunto, a economia obtém ganhos.
Foi esse o argumento utilizado, em 2018, no governo Michel Temer (MDB), para permitir que o aço laminado a quente fabricado na Rússia e na China entrasse no Brasil sem restrições, apesar de a indústria local ter demonstrado prática anticoncorrencial. Na ocasião, a indústria consumidora de aço, como os fabricantes de máquinas e de automóveis, apoiaram a decisão do governo, alegando impactos na inflação.
Em outro caso, dessa vez no governo Bolsonaro, graças à pressão do agronegócio, o governo manteve o antidumping que já dura 25 anos contra produtores chineses de alho, ainda que a equipe econômica não tivesse encontrado danos aos produtores nacionais.
Para a secretária de comércio exterior do MDIC, Tatiana Prazeres, é preciso fazer uma calibragem técnica no uso do “interesse público” para retirar doses de subjetividade na avaliação e dar segurança jurídica ao setor privado, que recorre à proteção comercial.
O antidumping é reconhecido pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e tem por objetivo punir quem tenta entrar em novos mercados usando práticas anticoncorrenciais. Mas em muitos casos também é aplicado pelos países só para proteger seus mercados.
O ex-secretário de comércio exterior Welber Barral afirma que um indicativo dessa prática é que o antidumping normalmente ocorre onde há disputas mais aguerridas por fatias de mercado. Entretanto, ele afirma que o governo Bolsonaro teve uma “visão simplista” sobre a não aplicação da defesa comercial de maneira excessiva.
“Coibir a percepção da concorrência desleal aumenta o compliance das empresas que atuam no comércio exterior e desencoraja práticas ilegais, como o subfaturamento de importações, por exemplo”, diz Barral. “Houve um exagero no uso do ‘interesse público’ e isso gerou imprevisibilidade para as empresas. O antidumping era aplicado e, em seguida, suspenso”.
A adoção excessiva do instrumento fez com que a indústria brasileira organizasse o lobby no Congresso e promovesse o Projeto de Decreto Legislativo 575, de 2020, com o objetivo de derrubar a cláusula do “interesse público” por completo.
O projeto está sob relatoria do deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), que em relatório apresentado no fim de maio, deu seguimento ao pedido. Em março deste ano, o MDIC editou uma portaria tentando reduzir o problema, retirando a obrigatoriedade da análise do “interesse público”. Ainda assim, o parlamentar considerou insuficiente.
“A edição recente da portaria, que torna facultativa a avaliação de interesse público nas investigações originais de dumping e subsídios, não elimina o risco de continuar a avaliação de interesse público nos moldes que vinham sendo realizados. A falta de revogação da portaria que dá suporte jurídico ao tipo de avaliação realizada pode ainda permitir a questionada avaliação de interesse público”, escreveu Mattos em seu relatório.
Prazeres afirma que a solução não pode ser o exagero pelo outro lado e, por isso, defende a nova regulação. O tema mobilizou a indústria local de tal maneira que uma consulta pública apresentada pelo MDIC em abril encerrou-se na semana passada com 628 contribuições de órgãos do governo e do setor privado.
O MDIC pretende apresentar uma portaria com as normas para a aplicação do “interesse público” no segundo semestre, com a expectativa de apaziguar a relação com o setor privado.
“Os ajustes são para dar maior equilíbrio, com o objetivo de combater práticas desleais e também preservar o instrumento de que o governo dispõe para suspender ou modificar a aplicação da defesa comercial quando necessário”, diz Prazeres.
“Não há que se falar em protecionismo. A OMC estabelece ferramentas para combater práticas desleais. Parece injusto que uma empresa brasileira esteja submetida a essas regras quando atua no exterior, mas não tenha acesso às mesmas regras quando atua no Brasil”.
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