Se o mundo digital — domínio dos bits processados incessantemente ao redor do planeta — tem como algumas de suas principais características a eficiência, rapidez, consistência e repetibilidade, o mesmo não pode ser dito sobre o mundo dos átomos. A realidade do mundo físico é imprevisível, em constante estado de mudança, frequentemente ineficiente e desnecessariamente complexa. Para um computador, multiplicar dois números com trinta casas decimais é uma tarefa trivial, mas fazer um robô humanoide subir alguns degraus é um desafio de engenharia que somente há pouco tempo foi razoavelmente resolvido. Você pode jogar uma partida de xadrez no seu telefone, movimentar sua conta bancária, planejar uma viagem, mas encontrar um robô capaz de fazer seu café ainda não parece estar no horizonte de curto prazo em nenhum país do mundo.
Este foi o teste que definiria se a Inteligência Artificial Genérica (AGI, na sigla em inglês) foi atingida, segundo Steve Wozniak (1950- ), cofundador da Apple juntamente com Steve Jobs (1955-2011). Ele declarou que, quando criarmos uma máquina capaz de fazer café em uma cozinha qualquer, localizando a xícara, o café, a água e a cafeteira, e manipulando corretamente o equipamento, teríamos chegado à AGI. Esta máquina ainda não existe, validando o chamado Paradoxo de Moravec.
Hans Moravec (1948- ), nascido na Áustria, naturalizado canadense e atualmente morador dos Estados Unidos, é membro do corpo acadêmico do renomado Instituto de Robótica da Universidade de Carnegie Mellon (Pittsburgh, EUA). Ele observou que atividades que necessitam de habilidade de raciocínio possuem um custo computacional bem mais limitado que atividades que exigem percepção e movimento. Em seu livro de 1988, Mind Children (no Brasil, “Homens e Robots: O futuro da inteligência humana e robótica”), ele escreve: “é relativamente fácil fazer computadores apresentarem um desempenho comparável ao de um adulto em testes de inteligência ou em um jogo de damas, mas difícil ou impossível atribuir-lhes as habilidades cognitivas e de locomoção de uma criança de um ano”.
A lógica que explica este paradoxo pode estar, segundo o próprio Moravec, na forma sistemática da evolução das espécies, conforme publicado por Charles Darwin (1809-1882) em 1859: quanto mais antiga a habilidade, mais tempo o processo de seleção natural teve para atuar e otimizar aquela característica. Andar, interagir com o meio ambiente, reconhecer imagens, desviar-se de obstáculos, são tarefas que nossos antepassados já desempenhavam há centenas de milhares de anos. O raciocínio lógico, a matemática, a ciência — esses são atributos relativamente novos, que estamos desenvolvendo há muito menos tempo. Como Steven Pinker (1954-) escreveu em seu livro de 1994, “O Instinto da Linguagem”: “a principal lição [...] de pesquisa em IA é que os problemas complexos são simples e que os problemas simples são complexos.”
Foi apenas nos últimos anos, com a redução no custo do espaço de armazenamento digital, o maior poder dos microprocessadores, a evolução dos sensores e a criação de algoritmos revolucionários que permitem que máquinas “aprendam”, que finalmente entidades artificiais começaram a ser capazes de perceber o mundo à sua volta: entre tantos exemplos, temos sistemas de reconhecimento de voz e de imagem, veículos autônomos, robôs em centros de logística e distribuição e braços robóticos em fábricas.
Menos de duzentos anos separam a Primeira Revolução Industrial, que modificou para sempre o regime de produção de bens na sociedade moderna, e o conceito das fábricas light-out (ou “luzes apagadas”), que faz referência a fábricas completamente automatizadas e que, portanto, não precisam de iluminação para utilização por seres humanos. Embora alguns exemplos deste tipo de fábrica existam, a grande questão aqui é qual o perfil da atividade manufatureira com o advento da IA — e, mais uma vez, a resposta está na combinação entre nós e a tecnologia. Quem são os profissionais da fábrica do futuro é nosso assunto para a próxima coluna - até lá.
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