Alimentos caros impedem gastos dos mais pobres com serviços e agravam inadimplência

Famílias de renda mais baixa puxaram a inadimplência recorde no País em agosto

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RIO - O corte de impostos reduziu os gastos das famílias com combustíveis, energia elétrica e telecomunicações, mas o encarecimento dos alimentos segue pesando no orçamento doméstico, especialmente nos lares mais pobres. O gasto maior com a alimentação, item de primeira necessidade, reduz o espaço das famílias brasileiras de renda mais baixa para o consumo de serviços e de bens não essenciais, além de dificultar o pagamento de dívidas e contas em atraso.

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As famílias de renda mais baixa puxaram a inadimplência recorde no País em agosto: um ápice de 33,1% dos lares com renda mensal de até dez salários mínimos tinham contas ou dívidas em atraso, ante uma fatia de apenas 13,7% de famílias inadimplentes no grupo que recebia mais de 10 salários mínimos mensais. O endividamento também foi recorde no grupo de menor renda, com 79,9% dessas famílias com contas a pagar, contra uma fatia de 75,9% de endividados na faixa de maior renda. Os dados são da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), iniciada em janeiro de 2010 pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

“A inflação tem realmente pesado mais no orçamento dessas famílias de menor renda. Sobra menos dinheiro na verdade para poder pagar as dívidas e o resto das contas, e ainda manter o nível de consumo. Então a inflação é, sim, um dos postos-chave que explica essa alta do endividamento e também da inadimplência”, disse Izis Ferreira, economista responsável pela pesquisa da CNC. “A gente ainda tem um nível muito alto de inflação de alimentos, de alimentação no domicílio, que representa uma parcela muito significativa do orçamento das famílias de renda média e baixa no Brasil. Então, certamente esse é um dos fatores que explicam essa alta na necessidade de buscar crédito para manter seu nível de consumo, mas também uma dificuldade de pagar tudo.”

Produtos alimentícios subiram 13,43% em um ano; gasto maior com a alimentação reduz espaço de famílias de renda mais baixa para consumo de serviços e de bens não essenciais Foto: Celso Junior/Estadão

Alta de 13,43% nos alimentos

No período de um ano, os produtos alimentícios subiram 13,43%, após já terem ficado 13,94% mais caros no ano anterior, de acordo com os dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de agosto, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Os alimentos para consumo no domicílio, aqueles comprados em supermercados, subiram ainda mais: a alta foi de 16,59% nos 12 meses terminados em agosto de 2021, seguida de nova elevação de 15,63% nos 12 meses seguintes, ou seja, de setembro de 2021 a agosto de 2022. “É uma inflação de dois dígitos na alimentação no domicílio, e ela vai continuar, grosso modo, sendo o dobro da inflação como um todo”, previu Fábio Romão, economista da LCA Consultores. “Isso acaba afetando a família de mais baixa renda.”

Romão espera que o IPCA encerre o ano de 2022 em 6,2%, o que inclui um aumento de 12,40% projetado pela LCA para os alimentos consumidos no domicílio. Ele espera uma trégua mais consistente dos preços dos alimentos apenas em meados de 2023.

O encarecimento da alimentação respondeu por 42% (ou 3,88 pontos porcentuais) da inflação de 9,24% percebida pelos mais pobres nos 12 meses até agosto, calculou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para os mais ricos, o encarecimento dos alimentos significou menos de 19% (1,70 ponto porcentual) da taxa de inflação de 9,11% percebida em 12 meses, apontou o Indicador Ipea de Inflação por Faixa de Renda.

A faixa de renda mais baixa se refere às famílias com renda domiciliar mensal menor que R$ 1.726,01, enquanto o grupo mais rico recebe mensalmente mais de R$ 17.260,14. Para os mais pobres, a forte pressão do grupo alimentação e bebidas sobre a inflação em 12 meses é decorrente de altas expressiva nos preços de produtos como: farinhas e massas (19,9%); tubérculos (18,9%); hortaliças (15,7%); frutas (32,0%); leite e derivados (39,2%); aves e ovos (16,2%); panificados (18,3%); e óleos e gorduras (19,3%).

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Entre as famílias de renda mais alta, apesar da trégua recente dos combustíveis e da energia elétrica, houve aumentos no transporte por aplicativo (43,9%), passagens aéreas (74,9%), seguro veicular (43,6%) e automóveis novos (15,1%).

Auxílio Brasil

A ampliação do valor do Auxílio Brasil, a partir de agosto, pago às famílias de renda mais baixa deve favorecer o consumo de alimentos e produtos farmacêuticos, mas não chega a estimular o consumo de serviços, especialmente num ambiente de endividamento e inadimplência elevados, avalia Rodolpho Tobler, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).

Impulsionado por uma demanda reprimida, o consumo de serviços pelas famílias brasileiras cresceu por cinco meses consecutivos, de março a julho, mas já sinaliza perda de fôlego. O volume de serviços prestados às famílias avançou 0,6% em julho ante junho, na série com ajuste sazonal, segundo os dados da Pesquisa Mensal de Serviços, do IBGE. O avanço sucede altas em junho (0,5%), maio (2,2%), abril (2,8%) e março (3,3%).

“(A perda de fôlego) Tem a ver com a inflação e tem a ver com o orçamento das famílias, que ainda está muito apertado”, afirmou Tobler. “O mercado de trabalho reagiu, mas com renda ainda muito baixa, salários muito baixos.”

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O segmento de serviços às famílias ainda opera 5,7% abaixo do patamar de fevereiro de 2020, período anterior à pandemia de covid-19. “Os principais fatores que podem influenciar de uma maneira decisiva o aumento dos serviços prestados às famílias são o nível de rendimento da população e o nível de preços. De maneira que, quanto maior o nível de preços, mais difícil será o volume de serviços prestados às famílias crescer. E, quanto maior o rendimento das pessoas, mais chance de despender uma proporção maior da sua renda em serviços”, corroborou Rodrigo Lobo, gerente da Pesquisa Mensal de Serviços do IBGE.

Lobo lembra ainda que, por não terem caráter essencial e dependerem de renda sobrando no orçamento doméstico, os serviços prestados às famílias são essencialmente consumidos pelos brasileiros de renda mais elevada. “Talvez a questão da desigualdade de renda ainda seja uma variável relevante para a gente entender essa maior morosidade dos serviços prestados às famílias em alcançar o ponto mais alto da série, ocorrido em maio de 2014″, lembrou Lobo.

Segundo a pesquisa do IBGE referente ao mês de julho, o volume de serviços prestados às famílias ainda estava 14,1% abaixo do pico alcançado em maio de 2014.

As famílias de renda mais baixa, com orçamento pressionado, já não estão usufruindo do consumo de serviços. O setor segue aquecido pela demanda de uma pequena parcela mais rica da população, que fez uma espécie de poupança forçada durante as restrições impostas pela pandemia, acrescentou Fábio Romão, da LCA Consultores. “Tem uma parcela grande da população que não pode, evidentemente, usufruir disso”, lembrou Romão, que prevê ainda desaceleração na demanda por serviços ao longo de 2023 mesmo entre os mais ricos. “A poupança forçada tem algum fôlego, mas ele termina”, concluiu.

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