A seca extrema que atinge, pelo segundo ano consecutivo, a Amazônia provocou uma disparada de preços da comida em Manaus. Isso fez a capital do Amazonas se tornar a campeã de inflação de alimentos básicos entre oito das principais capitais do País.
Em 12 meses até outubro, a cesta que reúne 22 produtos, como carnes, arroz, feijão, farinha, açúcar, café, leite, pão, manteiga, óleo de soja, macarrão e hortifrutigranjeiros, por exemplo, vendida em Manaus subiu 27,7%, aponta um levantamento exclusivo feito, a pedido do Estadão, pela plataforma Cesta de Consumo Neogrid & FGV Ibre.
Esse aumento é quase quatro vezes a inflação da alimentação no domicílio medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE. O indicador da inflação oficial do País estava em 7,28% no período. Manaus não faz parte das dez regiões metropolitanas e dos seis municípios nos quais o IBGE pesquisa preços para apurar o IPCA.
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A alta de preços registrada pela cesta de alimentos básicos de Manaus, pesquisada pela Neogrid & FGV Ibre, está muito à frente da vice-liderança do ranking das maiores variações, que ficou com São Paulo (22,9%), seguida por Salvador (19,8%) e Brasília (19,5%), Fortaleza (15,2%), Rio de Janeiro (13,7%), Belo Horizonte (13,4%) e Curitiba (5,3%).
“É a primeira vez que a cesta de alimentos de Manaus aparece com destaque”, afirma Anna Fercher, coordenadora de atendimento ao cliente e dados estratégicos da Neogrid.
Há cerca de um ano e meio essa cesta vem sendo monitorada nas oito capitais. Os dados de preços são extraídos pela plataforma de 40 milhões de notas fiscais emitidas por mês. Ou seja, são preços efetivamente pagos pelo consumidor, não apenas os que constam na prateleira do supermercado.
Anna observa que o Rio de Janeiro, com a cesta mais cara entre as capitais (R$ 1.009,11 em média, em outubro de 2024) sempre liderou a alta desse ranking por causa da alíquota maior do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). No entanto, nos últimos 12 meses, esse posto ficou com Manaus, que não tem a cesta mais cara. Em outubro de 2024, a cesta manauara custava, em média, R$ 814,28, aponta a pesquisa. Era a quarta maior em valor entre as oito capitais.
Problemas em dobro
A falta de chuvas enfrentada pela região Amazônica tem castigado duplamente o abastecimento de comida. Além do impacto direto no plantio e consequentemente na colheita de alguns poucos alimentos produzidos localmente, Manaus depende da logística fluvial para transportar a maioria dos alimentos que são “importados” de outras regiões do País. O problema é que o nível dos rios caiu e prejudica o tráfego de barcaças. Juntos, esses dois impactos da seca explicam o grande aumento dos preços dos alimentos, observa Anna.
“É a seca, não tem outro motivo (para esse aumento do custo da cesta)”, afirma o superintendente da Associação Amazonense de Supermercados (Amase), Alexandre Zuqui. Ele explica que 95% do abastecimento da cidade é feito através dos rios. E a localidade tem forte dependência da compra de alimentos de outras regiões do País.
“Hoje importamos banana e peixe de Estados vizinhos: a banana vem de Roraima e peixe de Porto Velho (RO)”, exemplifica o presidente da Federação do Comércio do Estado do Amazonas, Aderson Frota.
O pressuposto da Zona Franca de Manaus na sua concepção era criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário. Desses três, o polo agropecuário ficou esquecido, diz Frota. E, em momentos de seca como atual, os problemas aumentam, porque praticamente quase todos os alimentos que abastecem a cidade vêm de fora.
‘Taxa de pouca água’
Com a falta de chuvas, o nível dos rios pelos quais são transportados alimentos e outras mercadorias até Manaus diminuiu a partir de julho. Com isso, operadores logísticos passaram a cobrar a “taxa de pouca água”, diz Ralph Assayag, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Manaus, vice-presidente da Amase e dono da rede de supermercado Casas do Óleo.
O empresário conta que a taxa da seca aumentou em 18% o custo logístico das mercadorias. Isso pressionou preços e a inflação. “Não tivemos falta de produtos na seca deste ano”, diz, acrescentado que em 2024 houve antecipação de compras por parte dos supermercados. No entanto, na seca de 2023, o comércio não havia se preparado e chegou a faltar produto, lembra.
Os preços pressionados, sobretudo pela alta do frete, tiveram impacto nas vendas dos supermercados do Estado. Apesar de o faturamento ter crescido 3,5% entre janeiro e outubro deste ano em relação ao mesmo período de 2023, o número de itens comercializados recuou 7% na mesma base de comparação, apontam os dados da associação de supermercados.
O café virou chá
Desde o meio do ano, os consumidores têm reduzido suas compras, optando por quantidades menores para ajustar o orçamento doméstico. É o caso de Maryeti Fernandes, encarregada de departamento pessoal, que também assume a responsabilidade pelas compras da casa onde vive com o marido e o filho.
Ela conta que até junho gastava entre R$ 1,5 mil e R$ 1,8 mil por mês no supermercado, incluindo carne, frutas e verduras. Com a alta de preços dos alimentos, ela reduziu os volumes comprados para manter os valores gastos.
“Como o café subiu muito, estou tentando substituir por chá caseiro”, exemplifica. Ela também alterou a frequência de consumo da bebida. Antes tomava café duas vezes ao dia; agora é uma vez. Com isso, cortou pela metade as quantidades compradas de pó de café.
A dona de casa também passou a substituir marcas e a buscar promoções em supermercados diferentes. Apesar da ginástica para equilibrar o orçamento, Maryeti, de 53 anos, admite que perdeu a qualidade de vida que tinha anteriormente à disparada da inflação de alimentos. “Estou substituindo marcas e comprando produtos inferiores.”
Volta ao passado
A alta de quase 30% dos preços de alimentos básicos em Manaus nos últimos 12 meses fez supermercados locais, como a Casas do Óleo, ressuscitarem táticas usadas na época da hiperinflação tanto no abastecimento da loja como na venda para o consumidor.
Ralph Assayag, proprietário da rede que tem seis lojas na capital amazonense, conta que está negociando pesado com as indústrias para ter preços mais competitivos na ponta e não perder clientes. “Estamos deixando para comprar no final do mês da indústria, porque elas precisam bater metas e, assim, conseguimos preços melhores.”
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Outra estratégia adotada pela rede para reduzir custos tem sido comprar em grandes atacarejos da cidade, especialmente quando os preços de determinados produtos são mais baixos do que os obtidos em negociações diretas com a indústria. “Compro dos atacarejos e vendo na minha loja em promoção. Guerra é guerra”, afirma o empresário.
Do lado do consumidor, desde julho a rede voltou a parcelar o pagamento de compras acima de R$ 100, em três vezes no cartão de crédito sem acréscimo. Os encargos correm por conta da varejista.
Passagem de ônibus e entrega em casa
Outro diferencial oferecido é que nas compras acima de R$ 100, o cliente ganha duas passagens de ônibus. Também sob o slogan “Faça o seu rancho que eu deixo em casa”, clientes que moram num raio de até dois quilômetros da loja poderão ter a compra entregue em domicílio.
O empresário lembra que usava essas ferramentas de compra e venda de mercadorias nos anos 1990. “Hoje estou fazendo qualquer negócio para não perder cliente.” Ele diz ter conseguido manter a frequência dos compradores em suas lojas nos últimos meses.
Com a chegada das chuvas na região Amazônica, a perspectiva, segundo Assayag, é de que os rios recuperem o nível de água e a taxa da seca cobrada pelos operadores logísticos acabe a partir da segunda metade de dezembro. Assim, quem sabe, a inflação local poderá refluir.
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