Os efeitos do clima e do câmbio sobre os preços não devem dar trégua para inflação neste final de ano e também no início de 2025. A disparada das cotações dos alimentos, em especial da carne bovina por causa da estiagem de setembro, e a desvalorização do real em relação ao dólar – de cerca de 20% acumulada neste ano até outubro – vão continuar provocando estragos nos preços e espalhando a inflação, preveem economistas especializados em preços ouvidos pelo Estadão.
Em 12 meses até outubro, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a medida oficial de inflação do País, acumula alta de 4,76%, superando o teto da meta de inflação (4,5%). Apesar disso, especialistas não veem a inflação como descontrolada. Mas admitem que o cenário inflacionário é desconfortável e foco de preocupação, tendo em vista o regime de metas de inflação.
A prova disso é que o Comitê de Política Monetária do BC aumentou a dose da alta dos juros para 0,5 ponto porcentual na reunião da última quarta-feira, 6, e subiu a taxa básica para 11,25% ao ano para conter a inflação. Na reunião anterior, os juros tinham avançado 0,25 ponto porcentual.
Com atividade aquecida, desemprego em baixa e renda em alta, o cenário tem se mostrado, mês a mês, favorável aos reajustes de preços. E eles vem se espalhando pela economia.
Em outubro, 62% dos 377 itens que compõem o IPCA registraram alta de preços, segundo o IBGE. No mês anterior, o índice de difusão, como é chamado tecnicamente, tinha sido de 56%. No grupo alimentos, a difusão passou de 59% em setembro para 67% em outubro e nos demais itens de 55% para 57%, no mesmo período. “A inflação está mais difusa”, afirma a economista Maria Andreia Parente, técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Para avaliar como anda a inflação, normalmente a economista reagrupa os itens do IPCA em quatro grandes grupos: alimentos, bens industriais, serviços e preços administrados. Neste ano, ela constatou que preços dos quatro grupos que compõem o IPCA têm sido afetados por algum dos três motivos: clima, câmbio ou mercado de trabalho aquecido. “Foi um pouquinho de cada coisa”, observa ela.
Maria Andreia compara a situação atual da inflação a uma pessoa doente. Quando a infecção está num ponto específico é mais fácil escolher o tratamento para conter a moléstia. No entanto, quando a doença começa a se espalhar, um remédio não basta: é preciso combinar vários para atacar pontos diferentes ou aumentar a dose do remédio, diz a economista. No caso da inflação, o remédio é a taxa de juros. “É um pouco o que está acontecendo nesses últimos meses com a inflação.”
Repasse acelerado
Também a economista Andréa Angelo, estrategista para inflação da Warren Investimentos, vê uma aceleração da difusão da inflação nos próximos meses. Ela revisou a projeção do IPCA deste ano de 4,60% para 4,75% por conta da pressão dos alimentos, puxada pela carne bovina.
A sua projeção é de que os preços dos alimentos consumidos em casa subam neste ano cerca de 8%, mais que o dobro da inflação total. Somada à disparada da alimentação, a desvalorização do real em relação ao dólar foi outro fator que fez a economista aumentar a estimativa do IPCA para 2024.
“O tempo de repasse do efeito do câmbio para os preços está cada vez mais rápido”, observa a estrategista. O motivo desse movimento, na opinião dela, é o ritmo forte da atividade e o mercado de trabalho pujante. “Isso tende a intensificar o repasse.”
No Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), por exemplo, 61,56% dos preços registraram alta em outubro. No grupo alimentação, o índice de difusão foi ainda maior, beirou 67%.
“Estamos com uma difusão alta, o ideal seria abaixo de 50%”, diz o economista Guilherme Moreira, coordenador do IPC da Fipe. Ele observa que a difusão da inflação no indicador está sendo puxada pelos alimentos, o que representa um grande risco para o espalhamento da inflação.
A alta dos preços da comida e a elevação das despesas com habitação – no caso o reajuste da tarifa de energia elétrica que chegou a bandeira vermelha nível 2 em outubro pela falta de chuvas – têm grande poder de espalhar a inflação, alerta.
Isso porque, juntos, esses dois grupos respondem pela maior fatia das despesas das famílias. Quando os preços dos alimentos e dos gastos com habitação sobem, eles provocam perda do poder de compra e as famílias tentam uma compensação. “Geralmente os prestadores de serviços têm como parâmetro para aumentar seus preços a conta do supermercado”, afirma Moreira.
Indexação formal
Além dos alimentos funcionarem, na prática, como um parâmetro para reajustar outros preços, existe a indexação formal que realimenta a inflação. Parte do que está ocorrendo com a inflação deste ano terá reflexos na inflação do ano que vem.
O economista da LCA Consultores Fabio Romão diz que em razão do câmbio e da pressão das commodities, especialmente dos bovinos, o Índice Geral de preços de Mercado (IGP-M), que é o indexador dos aluguéis, por exemplo, pode fechar 2024 com uma alta de 6% a 6,5%.
“Isso é indexação não só para agora, mas também para 2025, pensando no aluguel e na conta das distribuidoras de energia que consideram o IGP-M nas tarifas”, afirma.
Mais da metade do IGP-M (60%), indicador de preços apurado pela Fundação Getulio Vargas, vem dos preços no atacado (IPA), formados por matérias-primas agropecuárias e minerais, ambas cotadas em dólar. E o IGP-M é o indexador de vários outros preços que entram na composição do IPCA.
Outro foco de pressão na inflação, na opinião de Romão, é o câmbio desvalorizado que tira a possibilidade de uma eventual queda nos preços dos combustíveis, por exemplo, o que poderia aliviar o IPCA.
Com vitória de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, a perspectiva inicial é de que o real se desvalorize ainda mais em relação ao dólar. “Infelizmente é lenha na fogueira da inflação”, diz o economista da LCA.
A disparada do boi
Pela piora dos preços dos alimentos e do câmbio, ele elevou recentemente a projeção de inflação de 2024 de 4,5% para 4,6% e alterou de 4% para 4,1% o IPCA do ano que vem. Depois de uma deflação de 0,5% dos preços dos alimentos no domicílio em 2023, Romão projeta alta de 8% para este ano e de 4,2% para 2025.
Nas contas do economista, o preço dos bovinos no atacado deve encerrar 2024 com reajuste de 33% e as carnes em geral, incluindo aves e suínos, no IPCA devem ter uma elevação de 17%, a maior alta no varejo desde 2020.
Mesmo que os bovinos não subam na mesma proporção de 2024, tudo indica que haverá pressões das carnes para o ano que vem. Segundo Romão, a estiagem afetou a produtividade e as exportações aumentaram. Esses fatores reduziram a oferta doméstica.
“A arroba do boi que hoje está em R$ 320 e veio de R$ 260 pode subir ainda mais”, prevê Andréa Angelo, da Warren Investimentos. Segundo a economista, a oferta de carne recuou porque diminuiu o abate de fêmeas devido ao ciclo da pecuária. Com isso, a carne ficou mais escassa e cara e esse movimento deve continuar ao longo do primeiro trimestre de 2025.
O comportamento do preço das proteínas, especialmente da carne bovina, é um sinalizador da tendência da inflação de alimentos, diz a economista. E a carne bovina é um vetor de alta da inflação de 2025. Para o ano que vem, a Andréa projeta um IPCA geral de 4,5%, podendo chegar a 4,7%. “É como se não tivesse desaceleração da inflação (em relação a este ano)”, compara.
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