Integrantes de fundos de pensão de estatais lançam manifesto contra ingerência de Lula em entidades

Com quase 25 mil adesões de funcionários da ativa e aposentados do Banco do Brasil, da Petrobras, da Caixa e dos Correios, documento se opõe ao uso de planos fechados de previdência pelo governo para impulsionar obras do PAC

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Foto do author José Fucs
Atualização:

A intenção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de voltar a usar os grandes fundos de pensão de empresas estatais para bancar investimentos em obras de infraestrutura, em especial nos projetos PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), como aconteceu em governos anteriores do PT, está gerando reações em série de participantes das entidades.

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Preocupados com uma nova onda de interferência política na gestão do patrimônio dos fundos, que tiveram prejuízos bilionários no passado recente e em alguns casos precisaram promover um aumento significativo nas contribuições para cobrir as perdas, os participantes lançaram um manifesto digital em que criticam a iniciativa do governo e defendem a realização de investimentos que não coloquem em risco o pagamento das aposentadorias.

Segundo números divulgados pelo grupo, o manifesto, lançado no fim de agosto, obteve quase 25 mil adesões de integrantes da ativa e aposentados dos fundos do Banco do Brasil (Previ), da Petrobras (Petros), da Caixa (Funcef) e dos Correios (Postalis), cujo patrimônio total alcançava cerca R$ 510 bilhões no fim de 2023, de acordo com dados da Abrapp (Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar).

Manifesto de participantes de fundos de pensão de estatais, como o Previ, do Banco do Brasil, afirma que patrimônio "não está à disposição da União, para aplicação em projetos de seu interesse" Foto: Fernando Bizerra/Agencia Senado

Embora representem apenas 3,9% dos 630 mil participantes e assistidos das quatro instituições, as adesões ao manifesto, que circulou no grupo Fundos de Pensão Unidos do Telegram e do WhatsApp e foi compartilhado nas redes sociais de associações independentes de segurados, revelam uma resistência aguerrida aos planos de Lula, de usar novamente o dinheiro dos trabalhadores para a realização de investimentos públicos de retorno duvidoso.

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“Os recursos dos fundos de pensão são privados. Não são recursos públicos à disposição do Orçamento da União para aplicação em projetos de seu interesse. Destinam-se, unicamente, ao pagamento de benefícios de aposentadoria complementar concedidos e a conceder”, diz o manifesto, organizado por integrantes dos quatros grandes fundos.

“Os participantes não podem admitir ingerências nos seus fundos de pensão, principalmente quando eles são fomentados a praticar atos que já se revelaram danosos no passado”, acrescenta o documento, dirigido a Lula, ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e aos presidentes do CNPC (Conselho Nacional de Previdência Complementar), da Previc (Superintendência Nacional de Previdência Complementar), do TCU (Tribunal de Contas da União), da CGU (Controladoria-Geral da União) e do CMN (Conselho Monetário Nacional).

No manifesto, os organizadores incluem o e-mail assessoriaconsultor@gmail.com para envio das respostas dos destinatários, mas dizem preferir que isso seja feito por meio de “atitudes ou providências efetivas” dos órgãos e representantes do governo que receberam o documento, principalmente os de regulação e de supervisão do setor.

Servidores

Diversas associações de integrantes dos quatro fundos apoiaram o manifesto e se colocaram publicamente contra a iniciativa do governo, como a Apaprevi, entidade que defende os interesses dos participantes e assistidos do Previ e da Cassi (administradora de planos de saúde fundada por funcionários do BB em 1944), a Fenae (Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal) e a AVPP (Associação Virtual dos participantes do Fundo de Pensão Petros).

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Numa outra frente, o movimento contra a iniciativa do governo envolve também, conforme reportagem publicada pelo Estadão, os participantes do fundo dos servidores federais do Executivo e do Legislativo (Funpresp-Exe), que lançaram seu próprio abaixo-assinado, no qual defendem a criação de uma modalidade de investimento mais conservadora, com aplicação exclusiva em títulos públicos, para “blindar” a gestão do patrimônio contra ingerências políticas e reduzir riscos de mercado.

Um vídeo sobre o manifesto, produzido por Edvaldo Souza, que se apresenta como participante da Previ e presidente da Apaprevi, divulgado quando o grupo havia conseguido cerca de seis mil adesões em apenas 24 horas, viralizou nas redes sociais e entre funcionários e aposentados da entidade e de outros fundos de pensão de estatais.

“Esse manifesto é para mostrar a nossa discordância e a indignação a respeito da ingerência externa que está ocorrendo em nossos fundos de pensão por parte do governo”, afirma Souza, um dos que organizaram o documento, ao lado de participantes do Petros, do Funcef e do Postalis.

“Vocês têm acompanhado as notícias de que o governo e os presidentes dos fundos de pensão se reuniram recentemente. O objetivo é tentar convencer os presidentes dos fundos a aplicar em infraestrutura em nosso país, porque o governo não tem o orçamento necessário para fazê-lo. No entanto, os nossos recursos não são para financiamento de obras públicas. Os nossos recursos têm o objetivo de pagar as nossas aposentadorias e precisam ser aplicados em ativos seguros, com boa rentabilidade e liquidez. E a aplicação em recursos de infraestrutura já deu muito errado no passado.”

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Flexibilização

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Souza, que não retornou os contatos feitos pelo Estadão, cita como exemplo no vídeo o caso da Sete Brasil (empresa que forneceria navios-sonda para exploração do pré-sal). A Sete entrou com pedido de falência na Justiça em março e estava envolvida no escândalo do petrolão, o propinoduto pelo qual “vazaram” bilhões de reais da Petrobras nas gestões anteriores do PT.

Segundo Souza, o Previ investiu R$ 180 milhões na Sete e dez anos depois conseguiu receber de volta R$ 190 milhões (retorno de 5,5% no período), graças a um acordo feito com a Petrobras. “Se esses recursos fossem aplicados em bons ativos, nós poderíamos ter mais do que o dobro do que isso em dez anos”, diz. Ele menciona também o caso da Invepar (Investimentos e Participações em Infraestrutura) e afirma que o Previ, o Petros e o Funcef investiram bilhões na empresa, que hoje está com patrimônio líquido negativo. As dívidas superam seus ativos em cerca de R$ 3,5 bilhões.

“Pobres trabalhadores das estatais brasileiras que, mais uma vez, verão os recursos suados de suas aposentadorias serem drenados para obras sem fim, que frequentemente são embargadas e se tornam objeto de litígios na Justiça”, afirma a economista Martha Seillier, ex-diretora do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e ex-secretária especial do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), ao comentar os planos de Lula.

O alarme contra a possível reedição da estratégia fracassada do passado pelo atual governo, que levou à mobilização de participantes dos principais fundos e à apresentação do manifesto, soou em 21 de agosto, com a publicação de uma reportagem pelo jornal O Globo sobre a reunião realizada por Lula com os dirigentes das instituições – mencionada por Souza no vídeo – para tratar do apoio a obras públicas federais e da flexibilização nos critérios de investimento.

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A reunião teria contado também com a presença de Haddad e do diretor-superintendente da Previc, Ricardo Pena. Haddad alegou que as alterações em estudo nas normas de investimento dos fundos representam apenas uma “mudança regulatória”. Pena, que teve uma primeira passagem pelo comando da Previc em 2010 e 2011, negou sua presença no encontro, em nota divulgada pela assessoria de imprensa do órgão ao Estadão. O jornal ainda procurou o Previ, o Petros, o Funcef e o Postalis para falar sobre as intenções de Lula, mas as assessorias de imprensa dos fundos informaram que eles não iriam comentar o assunto.

“A Previc não participou da referida reunião com o presidente da República”, diz a nota do órgão. “Os fundos de pensão seguem regras rígidas. Toda decisão precisa ter aderência ao plano de investimentos, ser aprovada pelo comitê de investimento e pela diretoria da entidade, envolvendo um amplo e complexo processo decisório. Portanto, as regras de governança impedem qualquer tipo de ingerência política.”

A Previc disse também na nota que “não existe ‘flexibilização’ das regras de investimento”, endurecidas no governo Temer, após as perdas bilionárias registradas nos governos do PT em vários fundos de pensão das estatais. Na época, os fundos se tornaram também alvos de CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) e de investigações da Polícia Federal, sob acusação de malfeitos na gestão.

De acordo com a nota, o que a Previc pretende é alterar a Resolução 4994/2022, do CMN, que rege os investimentos dos fundos de pensão, para adaptá-la à Resolução 175/2022, da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), que criou novos produtos de investimento, como o Fiagro (Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais) e títulos com lastro em créditos de carbono.

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A mudança deverá incluir também a possibilidade de as entidades investirem em debêntures de infraestrutura, lançadas por Haddad neste ano, que é outra forma de viabilizar investimentos dos fundos no PAC, como pretende Lula, além de acabar com a restrição para aplicações em imóveis e a obrigatoriedade de venda de todos os ativos existentes na área até 2030.

“A Previc avaliou tecnicamente a viabilidade de cada produto para as fundações de previdência complementar”, afirma a nota. “Caso não seja atualizada a Resolução 4994/2022, do CMN, os fundos de pensão estarão impedidos de aplicar em boas oportunidades de investimento, com impacto na rentabilização das reservas de seus planos, em prejuízo do patrimônio de participantes e assistidos.”

Esquema do PT

Apesar das restrições legais criadas no governo Temer para evitar interferência política nos investimentos dos fundos, a mudança promovida na cúpula do Previ e a possível troca de comando no Funcef, apoiadas por Lula, reforçaram a percepção de que o esquema implementado em governos anteriores do PT acabará se impondo, como ocorreu com a nomeação de políticos e sindicalistas para a direção das estatais, proibida pela legislação aprovada em 2016, mas liberada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) nos casos formalizados antes do julgamento do processo sobre a questão pela Corte.

O sindicalista João Fukunaga, presidente do Previ, foi afastado duas vezes do cargo pela Justiça por não ser considerado habilitado para exercê-lo 

O caso do sindicalista João Luiz Fukunaga, que assumiu o comando da Previ, maior fundo de pensão da América Latina, com mais de R$ 200 bilhões em ativos, depois de ter sido afastado duas vezes do cargo pela Justiça por não ser considerado habilitado para a função, é emblemático.

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Embora tenha sido considerado apto para o posto pelo TCU e recebido “atestado de habilitação” da Previc, Fukunaga – que foi indicado pelo governo Lula para a presidência da Previ em fevereiro de 2023 – atuava como secretário de Organização e Suporte Administrativo no Sindicato dos Bancários de São Paulo. Por não atender ao requisito de ter três anos de atividade, no mínimo, nas áreas financeira, administrativa, contábil, jurídica, atuária, de fiscalização, de previdência ou de auditoria, exigido pela legislação para participar da diretoria executiva de caixas de previdência, a ascensão de Fukunaga deixou patente o caráter político de sua indicação e ampliou os temores dos participantes da Previ de que a gestão dos investimentos da entidade possa voltar a prejudicar seus interesses.

“Que experiência tinha o Sr. João Fukunaga? Nenhuma em fundos de pensão ou como gestor de ativos”, diz Souza, da Apaprevi, em publicação feita na página da associação no Facebook. “Nós, associados e participantes da Previ, devemos ficar vigilantes sobre a utilização de nossos recursos, tão duramente construídos ao longo de décadas de vida laboral”.

A possível troca do atual presidente do Funcef, Ricardo Pontes, que trabalha há mais de trinta anos na Caixa, por Ricardo Back, atual chefe de gabinete de Alexandre Padilha, ministro de Relações Institucionais, é outro caso que reforça a percepção de “(re)aparelhamento” dos grandes fundos de pensão das estatais, para viabilizar a estratégia de Lula, de usar o patrimônio das entidades para bancar projetos do governo.

Conforme informação publicada pelo site Metrópoles, a indicação de Back – que é formado em jornalismo e atuava na XP Investimentos como sócio e responsável pela área de análise política antes de trabalhar com Padilha – foi feita há quinze dias por Haddad ao presidente da Caixa, Carlos Vieira, mas a mudança, para ser confirmada, ainda tem de ser aprovada pelo conselho do Funcef.

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Até agora, porém, segundo a nota sobre a questão enviada pela assessoria de imprensa do fundo ao Estadão, a entidade não foi comunicada sobre “eventual troca” no comando. “O presidente do Funcef, Ricardo Pontes, cujo mandato vai até 2027, segue normalmente sua rotina de trabalho”, diz a nota.

Desde já, pelo sim ou pelo não, os participantes do Funcef, que tem um patrimônio de R$ 100 bilhões e cerca de 140 mil segurados entre funcionários da ativa e aposentados, estão se mobilizando contra a substituição de Pontes, que é formado em administração e vem gerando bons resultados à frente da instituição. “As entidades representativas dos empregados e aposentados da Caixa receberam com imensa preocupação a informação de que haverá troca de comando na Funcef, com a substituição do atual presidente Ricardo Pontes”, diz nota da Fenacef, que reúne diferentes associações de participantes do plano de aposentadoria da Caixa. “Essa suposta intervenção na Funcef, com a troca de comando, traz preocupação às entidades com a possibilidade de interferência política e gestão temerária por agentes externos.”

Depois de todas as perdas e irregularidades ocorridas com os fundos de pensão das estatais nos governos do PT e das mudanças promovidas na legislação no governo Temer para protegê-los contra interferências políticas, muitos analistas imaginaram que uma nova era tinha se iniciado na gestão do patrimônio das entidades. E até foi assim que a coisa funcionou por algum tempo. Mas, decorridos apenas dois anos do governo Lula 3, a sensação que se tem é de que o País está voltando no tempo, ao resgatar práticas que deixaram um rombo bilionário pelo caminho, a ser quitado durante anos, muitas vezes, pelos próprios participantes dos fundos, tanto da ativa como aposentados, e também pelas estatais.