Ipea: Bolsa Família não reduz população ocupada, mas eleva preço mínimo do trabalho dos mais pobres

Proporção de pessoas ocupadas em domicílios com algum beneficiário do Bolsa Família subiu a 46,8% em 2023, após alta no valor do benefício

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Os programas de transferência de renda do governo federal, como o Bolsa Família, não têm reduzido a proporção de pessoas trabalhando no Brasil, mas sim provocado uma elevação no preço mínimo do trabalho dos mais pobres, aponta um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) feito com exclusividade para o Broadcast.

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A proporção de pessoas ocupadas - seja no mercado formal seja no informal - em domicílios com algum beneficiário do Bolsa Família subiu a 46,8% em 2023, depois do aumento no valor do benefício. O resultado é superior à fatia de 46,3% de ocupados em domicílios beneficiados vista em 2019, no pré-pandemia de covid-19, quando o programa de transferência de renda “estava desidratado”, apontou o pesquisador Marcos Hecksher, autor do estudo do Ipea.

O avanço na ocupação nos lares com o benefício foi puxado pela formalidade: a proporção de ocupados em trabalho formal, com contribuição previdenciária, nos domicílios beneficiados pelo Bolsa Família aumentou de 12,6% em 2019 para 14,8% em 2023. Já a proporção de ocupados na informalidade nesses lares diminuiu de 33,7% em 2019 para 32,0% em 2023.

Nos domicílios sem Bolsa Família, a proporção de ocupados também subiu: de 58,3% em 2019 para 60,3% em 2023. Nesses lares, a parcela de ocupados na formalidade cresceu de 39,9% para 42,8% no período, e a fatia na informalidade diminuiu de 18,4% para 17,5%

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O estudo do Ipea tem como base os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Estudo do Ipea aponta que proporção de pessoas ocupadas em domicílios com algum beneficiário do Bolsa Família subiu para 46,8% em 2023 Foto: Rafael Zart/ASCOM/MDSA

Dados

Segundo Hecksher, autor do estudo, os programas de transferência de renda têm como impacto primordial a queda da miséria e da pobreza no País. Quanto ao reflexo no mercado de trabalho, o aumento da renda em circulação na economia leva ainda a uma geração de postos de trabalho, via maior demanda por bens e serviços, diz.

“O Bolsa Família não reduz a proporção de pessoas que trabalha no Brasil, mais alta hoje do que em qualquer momento dos últimos dez anos. O que ele faz é elevar o preço mínimo do trabalho dos mais pobres, que deixam de aceitar condições precárias demais e passam a exigir valores menos aviltantes para oferecer seu trabalho “, apontou Hecksher.

O pesquisador do Ipea cita que um estudo do Banco Mundial, publicado em setembro de 2021, apontava para um aumento da oferta de vagas formais em lugares onde havia maior incidência de pagamento do Bolsa Família.

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“Não diminui a quantidade de trabalhadores, aumenta os postos de trabalho ocupados em lugares onde tem mais Bolsa Família. Então é uma coisa que acaba estimulando o crescimento econômico e o crescimento do emprego, e não desestimulando. O que acontece é que as pessoas mais pobres passam a exigir um salário mais alto para trabalhar, o que de certa forma é bom, porque você está evitando que as pessoas aceitem trabalho semiescravo, por exemplo. E isso ajuda a reduzir tanto a pobreza como a desigualdade”, explicou Hecksher.

A proporção de pessoas ocupadas - seja no mercado formal seja no informal - em domicílios com algum beneficiário do Bolsa Família subiu a 46,8% em 2023, depois do incremento no valor do benefício Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Comparação com o pré-pandemia

Em relação ao pré-pandemia, houve redução na proporção de desempregados e aumento na fatia de inativos tanto nos domicílios com Bolsa Família quanto nos lares sem o benefício. Nas moradias com o Bolsa Família, a proporção de desempregados caiu de 11,5% em 2019 para 8,7% em 2023, e nas casas sem o benefício, de 6,8% para 3,9%. Quanto aos inativos, a proporção subiu de 42,2% em 2019 para 44,5% em 2023 nos lares com o programa de governo, e de 34,9% para 35,8% nas moradias sem o programa.

O ano de 2024 foi marcado por um aquecimento ainda maior do mercado de trabalho. A taxa de participação – que mostra a proporção de pessoas em idade de trabalhar que estão efetivamente ocupadas ou em busca de uma vaga – subiu de 62,1% no trimestre encerrado em julho para 62,6% no trimestre terminado em outubro de 2024.

A taxa de participação opera em patamar ligeiramente acima do registrado ao fim de 2013, quando a taxa de desemprego também estava nas mínimas históricas, em 6,3%. Apesar da melhora, o resultado permanece abaixo do nível pré-pandemia. No quarto trimestre de 2019, a taxa de participação era de 63,6%, com uma taxa de desemprego de 11,1%.

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O fenômeno pode ser explicado por uma melhora na oferta de empregos e nos rendimentos familiares, liberando assim os jovens que antes precisavam deixar os estudos para trabalhar e reforçar a renda familiar, avaliou Adriana Beringuy, coordenadora de Trabalho e Rendimento do IBGE. A tendência de uma taxa participação mais baixa em relação ao pré-covid persiste apenas nas faixas etárias mais jovens.

“Com a melhoria dos indicadores, seja de ocupação, seja de rendimentos, essas pessoas mais jovens ou estudantes, que deixavam os estudos e se incorporavam à ocupação, ou que dividiam o tempo entre estudo e trabalho, é possível que essas pessoas, dada a melhoria da renda da família, possam se afastar do trabalho para se dedicarem a atividades não laborais”, disse Beringuy. “É possível que esse movimento esteja associado com essa dinâmica de melhoria do mercado de trabalho.”

Na faixa etária em idade escolar, de 14 a 17 anos, a taxa de participação foi de 16,4% no terceiro trimestre de 2024, ante 18,7% no quarto trimestre de 2019. Entre os jovens de 18 a 24 anos, a taxa foi de 69,1% no terceiro trimestre deste ano ante 70% no quarto trimestre de 2019, e na faixa de 25 a 39 anos, ficou em 81,6% ante 83,1% no pré-covid. Na direção oposta, houve aumento na participação nas idades mais avançadas: a taxa do grupo entre 40 a 59 anos subiu de 74,5% no quarto trimestre de 2019 para 75,4% no terceiro trimestre de 2024; e no grupo de 60 anos ou mais, de 24% para 24,6%.

“O fato é que, agora em 2024, está aumentando a taxa de participação. Ela está no nível que era o normal de 2012 até o começo 2017. Ela não está baixa, ela está normal”, analisou Hecksher, do Ipea. “Alguém propõe reeditar o achatamento real do benefício do Bolsa Família e as filas de famílias elegíveis que ficavam descobertas de 2017 a 2020 para tentar aumentar a taxa de participação em um ponto porcentual? Espero que não. O Brasil não precisa promover pobreza para aumentar o emprego, pelo contrário.”

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Cenário

Para Lucas Assis, analista da Tendências Consultoria Integrada, o resultado atual da taxa de participação sugere uma melhora relativa do cenário mesmo em relação ao pré-pandemia.

“A expectativa é de manutenção da taxa de desocupação em patamares baixos nos próximos trimestres, o que reforça o quadro de escassez de mão de obra em setores específicos, ampliando o poder de barganha dos trabalhadores nas negociações salariais e pressionando custos produtivos e preços”, afirmou Assis sobre a valorização da mão de obra, em análise.

O mercado de trabalho aquecido tem colecionado diferentes recordes positivos, com sucessivos aumentos na população ocupada e na massa salarial em circulação na economia. A taxa de desemprego desceu a 6,2% no trimestre terminado em outubro de 2024, o menor resultado em toda a série histórica da Pnad Contínua, iniciada em 2012.

O bom resultado é decorrente da Reforma Trabalhista, mas também de uma taxa de participação mais baixa que no patamar pré-pandemia, segundo Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

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“A gente sabe que tem questões demográficas inexoráveis, mas tivemos aumento de educação, então a composição também educacional, a composição dos trabalhadores melhora, deveria aumentar a taxa de participação, e não diminuir. Mas aí os estudos mostram que é muito efeito dessas políticas equivocadas, excessivas, de transferência de renda. Não é contra quem realmente precisa, mas foi muito descaracterizado a questão do Bolsa Família, o valor, que famílias, a forma das famílias, a gente viu aí todos os estudos mostrando um problema muito de desenho da política e eficácia da política”, afirmou Matos em seminário do Ibre/FGV em parceria com O Estado de S. Paulo, no último dia 17.

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