A ampliação da cobertura do Auxílio Brasil reduziu a pobreza no País, mas a queda não acompanhou a magnitude de alta nos desembolsos de recursos do programa, segundo estudos da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) obtidos com exclusividade pelo Estadão/Broadcast. Os dados sugerem a necessidade de uma mudança de metodologia e aprimoramento no cadastro das famílias para uma maior eficácia, dizem especialistas.
A proporção de brasileiros vivendo na pobreza caiu de 25,1% no quarto trimestre de 2021 para 22,7% no primeiro trimestre de 2022, descendo a 21,7% no segundo trimestre e 19,4% no terceiro trimestre de 2022, o menor patamar registrado desde 2018.
Já a fatia da população em situação de pobreza extrema caiu de 7,8%, no quarto trimestre de 2021 para 6,5% no primeiro trimestre deste ano, descendo a 5,8% no segundo trimestre e 3,2% no terceiro trimestre de 2022, a menor taxa de toda série histórica, inclusive no período de maior cobertura do auxílio emergencial, calculou Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
O pesquisador lembra que, no mesmo período, houve uma brusca mudança do orçamento do Auxílio Brasil, passando de cerca de R$ 3,3 bilhões por mês (40 bilhões anualizados) para mais de R$ 7,5 bilhões (90 bilhões anualizados) entre o final de 2021 e o início de 2022, e, finalmente, para R$ 12 bilhões mensais (144 bilhões anualizados), entre junho e agosto deste ano.
Ou seja, enquanto o gasto mensal com o Auxílio Brasil quase quadruplicou em apenas um ano, o contingente de pobres caiu cerca de 22% entre o terceiro trimestre de 2021 e o terceiro trimestre de 2022. A população miserável foi reduzida em 55%, apontam os dados do estudo da FGV.
“O Auxílio Brasil é um cobertor longo e mal desenhado, que deixa uma parte dos mais pobres descoberta, enquanto cobre quem não precisa e dá cobertura extra a quem só precisa de um lençol fino”, apontou Marcos Hecksher, pesquisador do Ipea.
Para Hecksher, o Auxílio Brasil ampliou o orçamento das transferências de renda, mas piorou muito o desenho de política pública em relação ao Bolsa Família original.
“Se o Congresso entende ser possível manter o orçamento mensal do período eleitoral e a média por família de R$ 600, ótimo, mas é essencial melhorar a distribuição e recuperar a lógica do Bolsa Família de dar mais às famílias com menor renda per capita. Tem família grande e mais pobre que precisa de mais que R$ 600 para superar a miséria e família pequena e menos pobre que pode passar a receber menos que R$ 600 (que não pode ser o piso por família) para não continuarmos com um cobertor grande que deixa as mais pobres mal cobertas. Além disso, há uma proporção relevante de famílias pobres totalmente descobertas a serem incluídas e uma proporção maior ainda de famílias cobertas que, mesmo sem o benefício, já tinham renda superior à mais alta linha internacional de pobreza da ONU, ou seja, não precisam de auxílio”, ressaltou Hecksher.
O pesquisador do Ipea lembra que, com o Auxílio Brasil, passou a ser possível um casal de baixa renda obter dois benefícios de R$ 600 se ambos se declararem como solteiros, o que provocou um salto na proporção de famílias registradas formadas por apenas uma ou duas pessoas.
“É importante retirar esse incentivo adverso e, se possível, estimular beneficiários e agentes públicos a corrigirem o cadastro”, defendeu Hecksher.
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A mudança na metodologia de distribuição de recursos do Bolsa Família para o modelo do atual Auxílio Brasil, feita pelo governo de Jair Bolsonaro, piorou a qualidade de distribuição de recursos, fazendo o poder público desembolsar mais verbas que o necessário, concordou Daniel Duque, da FGV.
“A gente poderia gastar muito menos para obter o mesmo resultado”, apontou Daniel Duque. “O que está ocorrendo é que famílias numerosas estão recebendo em termos per capita muito menos do que famílias pequenas. Obviamente as famílias mais numerosas são mais vulneráveis, mais propensas às condições de pobreza. É não só um desenho que dá incentivos ruins, mas também um desenho que focaliza mal essa injeção e recursos”, explicou Duque.
Pelos critérios dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas e recomendações do Banco Mundial, a pobreza extrema engloba pessoas com renda disponível familiar per capita inferior a US$ 1,90 por dia, o equivalente a R$ 173 por mês, na conversão feita pelo Ipea pelo método de Paridade de Poder de Compra – que não leva em conta a cotação da taxa de câmbio, mas o valor necessário para comprar a mesma quantidade de bens e serviços no mercado interno de cada país em comparação com o mercado nos Estados Unidos. Já a população que vive abaixo da linha de pobreza é aquela com renda disponível de US$ 5,50 por dia, ou R$ 502 por mês.
O Ipea lembra que o Brasil registrou em 2021 o maior aumento anual da pobreza em mais de trinta anos, devido ao prolongamento da pandemia de covid-19 num momento de redução nos programas de transferências de renda. O instituto considera os microdados sobre a renda obtida de todas as fontes na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O nível de pobreza no Brasil em 2021 foi o pior da década e de toda a série histórica da Pnad Contínua: 29,4% da população brasileira viviam na pobreza em 2021 (ante 24,7% em 2020 e 25,7% em 2019, no pré-pandemia) e 9,2% estavam em situação de miséria (ante 6,3% de miseráveis em 2020 e 7,6% em 2019).
“Embora os números não possam ser diretamente comparados aos da antiga PNAD, é plausível supor que a pobreza extrema retornou ao patamar de meados dos anos 2000″, apontaram os pesquisadores Marcos Hecksher, Pedro Ferreira de Souza e Rafael Osorio, em Nota Técnica do Ipea.
A melhora em 2020, no primeiro ano da pandemia de covid-19, foi impulsionada pelo pagamento do Auxílio emergencial, mas, no período seguinte a redução dessas transferências provocou o movimento oposto.
As transferências sociais são relativamente bem focalizadas, com efeitos maiores para as linhas de pobreza com valores mais baixos, mas ainda insuficientes diante do objetivo constitucional estabelecido em 1988 de “erradicar a pobreza”, escreveram os pesquisadores do Ipea em nota técnica.
“A escalada da pobreza em 2021 decorreu da rápida retração no volume das transferências em um contexto em que o mercado de trabalho para os mais pobres parou de piorar, mas não chegou a dar sinais de recuperação”, diz o documento do instituto.
Marcos Hecksher acredita que a melhor proposta para o novo Bolsa Família, a ser implementado em 2023 pelo novo governo seja abandonar a promessa eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva de manter o piso de R$ 600 por família para priorizar uma complementação na renda familiar per capita atual, para que alcancem a linha de pobreza mais alta da ONU, de US$ 5,50 diários.
“Isso custa metade do Auxílio Brasil com o piso de R$ 600. Se o orçamento mensal atual do Auxílio Brasil for mantido, é possível adicionar benefícios por criança de até 6 anos ou mesmo por menor de idade até 17 anos. E ainda sobra dinheiro para outros benefícios, como um bônus por concluinte do ensino médio”, calculou Hecksher. “O mais importante e plenamente possível agora é cumprir a promessa dos constituintes de 1988, como Lula e Alckmin, que firmaram a erradicação da pobreza como um dos objetivos fundamentais do Brasil (art. 3º, III). A linha da ONU que define a primeira meta dos ODS oferece uma métrica mundialmente reconhecida para esse objetivo fundamental do país e do mundo. Manter os R$ 600 por família significa deixar essa meta em segundo lugar”, acrescentou.
De acordo com Daniel Duque, erradicar totalmente a pobreza extrema é uma tarefa difícil não só em termos de orçamento, mas também operacionalmente.
“É mais uma questão mesmo de encontrar essas famílias. Você precisa saber quem são elas, quanto elas precisam, e isso fica mais difícil em alguns contextos mais distantes do País”, mencionou Duque, da FGV.
Segundo ele, é preciso aprimorar o método de inclusão das famílias no cadastro do benefício, fazendo uma busca ativa, por exemplo, em vez de esperar que elas se cadastrem.
“A gente está falando de famílias que já teriam direito ao programa, não é uma questão de expandir o número de beneficiários. Expandir seria beneficiar quem está na outra margem, quem não está atualmente incluído na elegibilidade (do programa). Os que estão na faixa de elegibilidade e estão abaixo da linha da pobreza, é uma questão mesmo de encontrar do que de aumentar o número de beneficiários”, frisou Duque.
O pesquisador do Ibre/FGV acredita que a política de transferência de renda seria mais eficaz se o desenho atual voltasse ao formato original, o do Bolsa Família.
“Mas seria muito difícil fazer isso politicamente depois do valor simbólico do que se tornou esses R$ 600. Dificilmente as famílias admitiriam ganhar menos do que os R$ 600 de agora. Acho que a solução seria manter esse valor nominal por dois ou três anos, e a partir daí sim ou retomar ou criar um novo ou semelhante desenho ao do Bolsa Família. Era um programa muito eficiente porque com aquele desenho ele conseguia combater a extrema pobreza de forma muito barata”, sugeriu Duque.
O estudo da FGV teve como base as informações coletadas pela Pnad Contínua, do IBGE, mas também números de beneficiários do Auxílio Brasil divulgados pelo Ministério da Cidadania.
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