A onda de revisionismo das decisões tomadas no auge da Operação Lava Jato pode afetar uma disputa empresarial bilionária que coloca a holding J&F, dos irmãos Batista, em lado oposto ao da empresa Paper Excellence (PE), que pertence à família indonésia Widjaja.
Em pedido direcionado ao ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, na segunda-feira, 6, a J&F alega ter sido alvo de um “achaque” pelos investigadores da Lava Jato e de operações correlatas, o que teria levado o grupo a se desfazer de ativos. Entre eles, segundo a empresa, está a Eldorado Celulose.
A J&F requer a extensão dos efeitos da decisão de Toffoli que anulou, em setembro, as provas do acordo de leniência da antiga Odebrecht, rebatizada de Novonor.
A operação Lava Jato revelou um esquema de cartel entre empreiteiras, corrupção de agentes públicos por empresários, operações de caixa dois eleitoral, lavagem de dinheiro e outros crimes. Empresas e executivos envolvidos firmaram acordos de leniência (no caso de pessoas jurídicas) e delação premiada (para pessoas físicas), nos quais confessaram a participação em ilícitos, em troca de uma redução de pena.
O Grupo de Trabalho Antissuborno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) demonstrou preocupação com a decisão de Toffoli.
Os irmãos Joesley e Wesley Batista, do grupo J&F, sacudiram o mundo político em 2017, quando implicaram políticos em denúncias de corrupção que fizeram à Procuradoria-Geral da República. Eles confessaram ter distribuído milhões de reais em propina e caixa dois eleitoral para 1.893 políticos para obter benefício para as empresas do grupo J&F.
Na época, Joesley Batista fez uma gravação de Michel Temer, dentro do Palácio do Jaburu, sem o consentimento do então presidente da República. A crise política instalada desestabilizou Brasília. O ex-presidente foi absolvido pela Justiça da acusação feita pela PGR na época. Os executivos foram presos por suspeita de omitirem informações na delação premiada; Wesley também foi acusado de usar informações privilegiadas para lucrar no mercado financeiro.
Em 2020, os irmãos foram autorizados pela Justiça a voltar a exercer funções executivas nas empresas do grupo J&F, dono da JBS, maior empresa de proteína animal do mundo. E, no fim de outubro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) absolveu Joesley e Wesley de três acusações de uso de informação privilegiada para operar no mercado financeiro.
Agora, a J&F busca a suspensão do pagamento do acordo de leniência firmado com o Ministério Público Federal na época; acesso ao material colhido na Operação Spoofing - que tem troca de mensagens entre o ex-juiz Sergio Moro e procuradores, sobre as investigações -; e também a “suspensão de todos os negócios jurídicos de caráter patrimonial decorrentes da situação de inconstitucionalidade estrutural e abusiva em que se desenvolveram as Operações Lava Jato e suas decorrentes, Greenfield, Sépsis, Cui Bono”.
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É este último pedido que pode influenciar os rumos da disputa empresarial entre J&F e Paper Excellence pelo comando da Eldorado. A J&F alega, no pedido a Toffoli, que a “única alternativa” que teve durante as investigações foi realizar “a venda açodada de ativos valiosos, principalmente a Eldorado”.
A Paper Excellence afirma que o movimento da J&F é um “malabarismo jurídico para tentar anular um contrato legítimo firmado entre as duas empresas” e que o pedido feito ao Supremo é baseado em “informações inverídicas”.
A J&F afirma que a Paper Excellence tenta “distorcer mais uma vez os fatos para prejudicar direitos da J&F”. A holding dos irmãos Batista alega que não requer ao STF anulação “de qualquer documento ou decisão” e diz que requer acesso a provas que “podem ter contaminado a legalidade da negociação de seu acordo de leniência”. “Há evidências dessas irregularidades, suficientes para suspender os pagamentos do acordo e a eficácia de todos os documentos que tenham sido assinados em decorrência dessas ilegalidades”, afirma a J&F, sem citar na nota enviada ao Estadão o pedido feito ao STF de “suspensão de todos os negócios jurídicos de caráter patrimonial” realizados pela empresa, no contexto da Lava Jato. (Veja abaixo as manifestações das duas empresas, na íntegra.)
“Dentre as diversas ilegalidades perpetradas, destacamos a imposição, pelo MPF lavajatista, da venda de ativos pertencentes ao grupo J&F como condição prévia para celebração do acordo. Na crise deflagrada pela Lava Jato em 2017 (publicidade da colaboração), a J&F se via pressionada pelo MPF para firmar acordo de leniência exageradamente abusivo ao mesmo tempo em que precisava vender ativos a preços desvantajosos para o momento. Aqueles que adquiriram os ativos, por sua vez, exigiam o acordo de leniência assinado”, alega a empresa, no pedido encaminhado ao STF, ao qual a reportagem do Estadão teve acesso.
A J&F e a Paper Excellence têm contratado grandes escritórios de advocacia do País para o caso. O pedido enviado ao STF, no entanto, é assinado somente pelo diretor jurídico da J&F, Francisco de Assis. Em 2017, ele foi um dos delatores que assinou colaboração com a Procuradoria-Geral da República na qual confessou participação em ilícitos.
Em setembro de 2017, a J&F vendeu a Eldorado para a empresa Paper Excellence. O valor acertado na transação, que marcava a entrada dos asiáticos no Brasil, foi de R$ 15 bilhões. No ano seguinte, no entanto, as duas empresas entraram em uma disputa arbitral na qual a J&F buscava impedir que o controle fosse transferido para a Paper. Desde então, uma briga jurídica se desenrola em diferentes instâncias judiciais. Atualmente, a empresa continua sendo controlada pelo grupo dos irmãos Batista.
Na mesma época da venda da Eldorado, a J&F fechou um acordo de leniência com o Ministério Público Federal para pagar R$ 10,3 bilhões em 25 anos, como multa e ressarcimento pelos crimes cometidos e confessados aos investigadores. Neste ano, o valor foi reduzido pelo MPF para R$ 3,5 bilhões, após pedido da empresa.
Caso tenha o pedido acolhido por Toffoli, a J&F pode evitar que o controle da Eldorado seja passado para a Paper Excellence, caso haja uma nova decisão favorável à empresa asiática na justiça. (Leia mais informações sobre a disputa jurídica abaixo.)
A J&F cita no pedido ao STF outras operações, além da venda da Eldorado, feitas pelo grupo na mesma época e pela mesma razão - a busca pela capitalização da holding dos irmãos Batista em meio à Lava Jato e à necessidade de pactuar com as autoridades o pagamento de uma multa bilionária.
A empresa argumenta que “por estar à mercê dos abusos da Lava Jato, viu-se forçada a realizar diversos negócios jurídicos patrimoniais desvantajosos”. “A título de exemplo, pode-se citar as vendas da Eldorado, da Vigor e da Alpargatas, que, à época, somavam quantia de aproximadamente 24 Bilhões (R$)”, diz a J&F ao Supremo.
A desova de ativos da J&F em 2017, ano em que os Batista fizeram um acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República (PGR), incluiu a venda do controle da Alpargatas – dona da Havaianas – para Itaúsa (holding de investimentos do Itaú) e Cambuhy/Brasil Warrant (braços de investimento da família Moreira Salles), por R$ 3,5 bilhões em dinheiro. Em outubro do mesmo ano, os irmãos Batista concluíram a venda da Vigor para a companhia mexicana Lala, que pagou R$ 5 bilhões para ficar com a empresa de lácteos.
A única operação que é alvo de disputa, no entanto, e central no pedido ao Supremo, é a de venda da Eldorado, citada 20 vezes na petição destinada a Toffoli. A J&F alega que houve um “conluio” para a realização da venda da empresa de papel e celulose.
“Dito de outro modo, o valor teratológico da multa contida na leniência forçou a venda de ativos, esse era o ‘preço’ da alforria imposta pela Lava Jato. Justamente para não perder tudo, houve a venda da Eldorado, venda esta que beneficiaria diretamente o empresário Josmar Verillo, que mantinha diálogos com o procurador Anselmo Lopes – coordenador da Lava Jato na Operação Greenfield. Demais disso, como o Joesley Batista havia sido afastado do comando empresarial desde outubro de 2016, a venda dos ativos seria condição para livrar o empresário do Procedimento Investigatório Criminal (PIC)”, escreve o advogado Francisco de Assis, em nome da J&F.
Verillo representava a Transparência Brasil, no período da negociação dos acordos de leniência, e depois da chegada da Paper Excellence ao País se tornou um dos executivos da empresa.
“Ao olharmos para o passado, verificamos que a venda da Eldorado se apresentava como premissa imposta pelo MPF para celebração da leniência”, alega a holding dos irmãos Batista.
Situação atual
O pedido ao Supremo acontece em um momento em que a disputa entre a J&F e a Paper, pela Eldorado Celulose, se desenrola em outras frentes, após seis anos de disputa. Falta apenas um voto para a empresa estrangeira ganhar em segunda instância o processo movido pela J&F para anular a arbitragem que perdeu, em 2020, para definir quem teria direito a ficar com a empresa.
Depois de um ano de recursos, impedimentos e conflitos de competências no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), dois desembargadores, Franco de Godoi e Alexandre Lazzarini, julgaram, em setembro, que a sentença arbitral deve ser mantida, obrigando a J&F a transferir todas as suas ações da Eldorado. Os dois também defendem a imposição de multa de R$ 30 milhões contra a J&F por “litigância de má-fé”.
O terceiro desembargador a votar será Eduardo Azuma Nishi, que pediu vista dos autos, para estudar o processo, e a expectativa é que tome uma decisão até o fim do ano. A parte que tiver três votos favoráveis vence o processo, que pode ser levado ainda ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Apesar da possível derrota da J&F no TJ-SP, a transferência da empresa não pode acontecer no momento, uma vez que o Tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul (TRF-4) publicou decisão impedindo a transferência de ações da Eldorado para a Paper. A decisão aconteceu com base numa ação popular movida pelo ex-prefeito de Chapecó (SC), Luciano Buligon, e debate a proibição de compra de terras por estrangeiros.
O duelo entre a holding dos irmãos Batista e a Paper Excellence movimentou desde 2018 gigantes da política e da advocacia nacional, que já estiveram na defesa ou consultoria de um dos lados, como o então advogado e hoje ministro do STF, Cristiano Zanin, o constitucionalista e ex-presidente da República Michel Temer, o ex-ministro Ricardo Lewandowski, o advogado e amigo pessoal do ex-presidente Jair Bolsonaro Frederick Wassef e as maiores bancas de advogados do País.
Outro lado
A Paper Excellence enviou nota de manifestação ao Estadão, na qual diz:
“A Paper Excellence lamenta mais este malabarismo jurídico da J&F para tentar anular um contrato legítimo firmado entre as duas empresas”. “O pedido feito pela J&F ao Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (07/11) -- mais um que busca anular a venda da Eldorado Celulose -- é baseado em informações inverídicas na tentativa de se criar uma narrativa fantasiosa, sem qualquer respaldo fático ou jurídico”, afirma a empresa, em nota.
A J&F afronta e desrespeita a mais alta corte do país ao elaborar uma petição permeada de mentiras descabidas e fáceis de serem desconstruídas. Um exemplo é quando cita a suposta interferência de um consultor da Paper que sequer atuava na empresa na época em que a compra da Eldorado Celulose foi fechada. Há cinco anos, a J&F tenta de todas as maneiras descumprir o contrato com uma das maiores empresas de papel e celulose do mundo e que já adquiriu várias grandes empresas em outros países de forma bem-sucedida.
No Brasil, após a J&F resolver não entregar a empresa que vendeu, a Paper Excellence venceu por unanimidade o processo de arbitragem e já tem decisões favoráveis no Tribunal de Justiça de São Paulo. A J&F segue usando de sua costumeira e conhecida má-fé, da qual inclusive já foi penalizada judicialmente, para sobrecarregar o judiciário brasileiro com mais um pedido sem qualquer fundamento legal. A Paper Excellence jamais deixou de confiar no Judiciário e no Brasil, onde planeja continuar investindo, gerando emprego e renda.”.
A assessoria da J&F enviou nota de manifestação ao Estadão, na qual afirma:
“A J&F Investimentos lamenta que a Paper Excellence tente distorcer mais uma vez os fatos para prejudicar direitos da J&F. O pedido da J&F não requer anulação de qualquer documento ou decisão. A empresa requer acesso a provas das irregularidades que podem ter contaminado a legalidade da negociação de seu acordo de leniência e, eventualmente, podem revelar ilícitos cometidos por terceiros contra o grupo J&F. Em diálogos da Spoofing já divulgados pela imprensa, há evidências dessas irregularidades, suficientes para suspender os pagamentos do acordo e a eficácia de todos os documentos que tenham sido assinados em decorrência dessas ilegalidades.”.
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